1. INTRODUÇÃO
Apesar da confirmação dos Estados Unidos enquanto potência mundial, o fim da Guerra Fria dá espaço a possibilidades de construção de um cenário internacional descentralizado. De áreas de livre comércio a uniões aduaneiras, cada país da América do Sul participa de um ou mais acordos de integração de caráter, natureza e profundidade variados. Nesses termos, o MERCOSUL seria a expressão mais bem-sucedida do dito novo regionalismo sul-americano1.
Criado no início dos anos 1990, o MERCOSUL constitui um espaço regulatório comum, visando melhorar as condições de competitividade e integração dos Estados-parte no cenário internacional. Na sua fase inicial, prevaleceu um programa de liberalização do comércio interno como base para a inserção no processo de globalização total da economia. Seguindo o caminho do regionalismo aberto e em consonância com o seu passado histórico, uma integração atlântica norteou a política externa do bloco durante esse período. Essa opção de integração está assim centrada em particular nos Estados Unidos e na União Europeia (UE).
Em dezembro de 1995, a União Europeia convida o MERCOSUL a assinar um acordo-quadro de cooperação inter-regional2. A partir dessa data, os blocos passaram a estabelecer um diálogo regular para apresentar pontos de vista sobre os quais havia convergência. O intuito era de preparar o caminho para negociações ambiciosas de livre comércio e, consequentemente, selar um acordo comercial para além daqueles cobertos e assumidos no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC3. Com a recente assinatura do Acordo de Associação entre o MERCOSUL e a União Europeia, o bloco retoma um certo dinamismo e reafirma essa opção de orientação.
O presente artigo tem como objetivo central analisar as razões para a assinatura de um acordo de livre comércio entre MERCOSUL e União Europeia em 2019, assim como as suas perspectivas e limites em uma lógica de integração econômica. Assim, buscamos responder à problemática: até que ponto o Acordo de Associação UE-MERCOSUL pode contribuir para a inserção e valorização do MERCOSUL no sistema internacional de forma coerente.
Nossa hipótese de estudo é a seguinte: o Acordo de Associação marca o retorno das políticas multilateralistas, decisivas para o fortalecimento da competitividade comercial dos países signatários - sobretudo a pedra angular do bloco sul-americano, Argentina e Brasil. Esse artigo parte então de uma análise de perspectivas complementares: (I) uma breve evolução das relações entre o MERCOSUL e a UE para melhor situar o acordo, (II) as razões econômicas e geoestratégicas que levam a MERCOSUL a estabelecer uma relação direta com a UE através desse acordo e (III) analisará os limites desse. Por fim, serão delineadas pistas de reflexão.
2. AS DINÂMICAS DO ACORDO DE ASSOCIAÇÃO UE-MERCOSUL
2.1. A evolução das relações entre UE-MERCOSUL
O quadro inter-regional UE-MERCOSUL se tornou uma base a partir da qual a União iniciou o diálogo com os países do bloco sul-americano. Nesse contexto, apresentaremos de forma sucinta a evolução histórica das relações entre UE-MERCOSUL.
a) Origens do bloco sul-americano
O MERCOSUL seria a expressão mais bem-sucedida do regionalismo aberto do continente sul-americano4. Nascido num contexto global particular de retomada das políticas regionalistas, o bloco é uma iniciativa de integração construída sobre uma pedra angular da região: a parceria estratégica entre Argentina e Brasil. A aproximação entre os gigantes da região foi pensada como um instrumento para consolidar as democracias renascidas e um meio para prevenir conflitos e neutralizar as rivalidades históricas. Assim, as fronteiras passaram a ser vistas como uma área de cooperação capaz de enfrentar desafios transnacionais5.
Em seu processo de redemocratização e reorientação econômica, Argentina e Brasil assinaram a Declaração do Iguaçu (1985), estabelecendo as bases para o desenvolvimento de suas relações bilaterais e sua integração ao mercado internacional. Posteriormente, assinaram o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento (1988), a fim de estabelecer (dentro de um período máximo de dez anos) um espaço econômico comum através da liberalização total do comércio recíproco e da eliminação de todas as barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio de bens e serviços. De fato, o fim da Guerra Fria impulsiona a construção de um cenário internacional descentralizado. É através do Ata de Buenos Aires (1990) que Argentina e Brasil preveem a sua plena integração aduaneira. Também nesse mesmo ano, os governos do Paraguai e do Uruguai manifestam interesse em aderir a essa iniciativa de integração. Criando o MERCOSUL, tem-se a assinatura do Tratado de Assunção em 19916.
O bloco serviu primeiramente de salvaguarda contra tendências autoritárias. Contudo, as preocupações com a estabilidade democrática foram gradualmente substituídas pela opção liberal do Consenso de Washington7. Nos primeiros parágrafos do Tratado de Assunção, os Estados-parte consideram a expansão de seus mercados nacionais como: uma condição fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico, e uma resposta adequada à evolução do sistema internacional. Assim, com base na reciprocidade de direitos e obrigações, o Tratado de Assunção foi estabelecido como uma forma de integração através do livre comércio entre os países signatários. O objetivo central desse seria constituir um mercado comum, seguindo o modelo da Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia). A título ilustrativo, o artigo 5º do Tratado de Assunção estabelece os principais instrumentos para a criação de um mercado comum, tais como um Programa de Liberação do Comércio. Trata-se de uma redução tarifária progressiva, linear e automática, acompanhada da eliminação de restrições ao comércio, a fim de se chegar a uma tarifa zero.
O Tratado de Assunção inaugurou, portanto, o período de transição para a criação de um mercado comum, previsto para ser estabelecido até 31 de dezembro de 1994. De todo modo, é assinado em 1995 um protocolo adicional ao tratado, que estabelece uma regra de consenso no processo decisório e ratifica a personalidade jurídica do MERCOSUL no contexto do Direito internacional8. Esse autoriza o bloco a negociar acordos com países terceiros, blocos econômicos e organizações internacionais9. Em resumo, no decorrer do processo de integração, a agenda do bloco sul-americano tem sido progressivamente ampliada.
b) Ambições e valores compartilhados
Com a queda do Muro de Berlim, o sistema internacional entra em uma nova etapa da globalização. Impulsionada pelos centros mais desenvolvidos (notadamente os Estados Unidos e a União Europeia), a formação de novos regionalismos em um mundo multipolar substituiu em grande medida as relações bilaterais10. A partir dessa formação, o conceito de regionalismo aberto é entendido como uma integração comercial associada à liberalização do comércio e dos fatores de produção. Integrar significaria então reduzir distorções nas políticas internas e deslocar fronteiras nacionais ao se aproximar do mercado internacional. Nesse sentido, o regionalismo seria semelhante ao multilateralismo: na medida em que ambos derivam da negociação, do compromisso e do Estado de direito.
Uma vez que a União Europeia (então, Comunidade Econômica Europeia) se consolidou no campo do regionalismo, o bloco europeu molda os polos de integração regional na cena internacional. Com isso, advêm as discussões entre o MERCOSUL e a CEE. A evolução desse diálogo levou à criação de um Comitê Consultivo Conjunto de Assistência Técnica e Institucional em 1991 e a assinatura de um Acordo de Cooperação Institucional entre UE-MERCOSUL em 1992. O fato de a UE ter dado preferência a relações multilaterais com o bloco sul-americano não a impediu de manter relações e concluir parcerias ditas estratégicas de maneira bilateral com outros países da região e mesmo com os Estados-parte do bloco.
Em 1992, a UE então assinou, ao mesmo tempo (mas separadamente), com os Estados-parte um acordo de cooperação de terceira geração de mesmo conteúdo. Esse incluía uma “cláusula democrática”, garantindo “o respeito aos princípios básicos que fazem parte de um património de valores comuns”, e uma “cláusula evolutiva”, dando aos signatários a possibilidade de complementar e aumentar o nível de integração e cooperação regional11. Ao abrigo do artigo XXIV do GATT, essa gama de acordos deu abertura para o convite da União para a assinatura de um o Acordo Quadro Inter-regional de Cooperação entre UE-MERCOSUL em 1995. Primeira decisão do MERCOSUL sujeita ao Direito internacional, o início da relação entre os blocos parte da ideia de criar uma associação inter-regional de natureza política e econômica, visando liberalizar reciprocamente o comércio, promover a estratégia de investimento das empresas e reforçar a cooperação política a nível internacional.
O grau de ambição deste acordo está na capacidade de ir além da tradicional relação centro-periferia. Com o intuito de preparar o caminho para negociações em matéria de livre-comércio, os blocos passam a desenvolver um contato regular e institucionalizado. Em termos de cooperação regional, o MERCOSUL estava inclinado para o modelo regional europeu não só por esse ser portador de valores potencialmente universais (direitos humanos, aos direitos sociais, ao desenvolvimento sustentável, à diversidade cultural, à democracia, etc.), mas também por esse ter criado um ambiente de “paz, estabilidade e prosperidade” graças a estruturas institucionais únicas12.
Assim, do início dos anos 1990 até o final de 2004, a União Europeia encorajou os países do MERCOSUL a adoptar uma abordagem supranacional em cooperação com a lógica do Estado de direito. Nesse viés, a adoção de uma personalidade jurídica de direito internacional permitiria ao bloco sul-americano seguir uma lógica de consulta regional a fim de que esse possa falar a uma só voz nas negociações internacionais. Com o adensamento das relações entre os blocos, o MERCOSUL teve a União Europeia como o principal investidor externo, assim como o segundo maior parceiro comercial (depois dos Estados Unidos). Isso foi decisivo para a recusa pelos países do MERCOSUL a participar do projeto de integração econômica das Américas (ALCA), promovido por Washington. A aproximação da União e as negociações para um acordo de associação inter-regional foram vistas pelos gigantes do MERCOSUL como favoráveis para a consolidação do bloco sul-americano e o reconhecimento internacional.
A partir do Acordo Quadro Inter-regional (1995), foi assinado em 1999 um mandato de negociação e criado um fórum de negociação do acordo - o Comitê de Negociações Birregionais (CNB) 13.A primeira reunião do CNB foi realizada em Buenos Aires em 2000. No âmbito da pasta comercial, foram definidos e criados os princípios gerais, os objetivos, assim como três grupos técnicos para abordar os diferentes temas da agenda. Ao longo dos CNB, para além das crises internas do MERCOSUL, a grande maioria dos países europeus mostrou pouco ou nenhum interesse pelas discussões entre os blocos. Isto levou ao enfraquecimento do diálogo político. Finalmente, as negociações UE-MERCOSUL foram suspensas em 2004, visto que a oferta da UE não parecia ser considerada suficientemente equilibrada, sobretudo no que se refere ao protecionismo induzido pela Política Agrícola Comum (PAC).
De ambos os lados, a falta de vontade política pareceu prevalecer. O período de 2003 a 2016 é em particular marcado pela ascensão de governos progressistas nos países do MERCOSUL. Esses governos priorizaram o desenvolvimento de uma economia local autônoma. Contudo, desde 2016, o bloco passou a um novo cenário: as mudanças na orientação política dos governos argentino e brasileiro (juntamente com uma série de transformações estruturais) levaram o MERCOSUL a um impulso neoliberal em sua agenda de inserção internacional nos mercados mundiais. Com a assinatura do acordo de livre comércio com a União Europeia em 2019, as preocupações estratégicas da pedra angular do bloco parecem assim retomar uma visão globalizada, aberta notadamente a relações com países atlânticos.
2.2. As razões para a retomada do diálogo político inter-regional
Desde sua criação, o MERCOSUL tem se apresentado como um espaço comum que cria oportunidades de intercâmbio comercial e investimento através da integração competitiva das economias nacionais no mercado internacional. O bloco conduz assim a negociações com vários países e grupos de países através da elaboração de acordos de livre comércio. Dentro deste contexto, a relação UE-MERCOSUL parece enfim decolar após anos de negociação.
a) Os novos atores no cenário internacional
Os Estados-parte do MERCOSUL são países periféricos do Atlântico. Sua localização geográfica e seu patrimônio colonial favoreceram a dependência econômica, política e social dos países europeus. Logo, com a mudança do epicentro econômico global do Atlântico para a região Ásia-Pacífico, a orientação geopolítica do bloco tem sido posta em questão14. A União Europeia acompanha essas mudanças graduais e a difusão do poder global implícita à ascensão da China e de outros países asiáticos. Ademais, o ranking das economias mundiais mostra que os países europeus estão perdendo lugar em favor dos países emergentes15.
A China representa mais de 20% do total das exportações brasileiras e pouco mais de 7% das exportações argentinas. Enquanto isso, o Japão (segunda maior economia asiática) responde por cerca de 3% dos intercâmbios comerciais dos gigantes do bloco. Por sua vez, a Coréia (terceira economia asiática) responde por 2% do total da cesta de exportações dos países em questão. Apenas a Índia está próxima do nível da China para a Argentina, o que não é o caso do Brasil, onde o bloco como um todo responde por menos de 316. O gigante asiático se consolida assim como o terceiro destino das exportações argentinas (7,4% em 2017), longe do Brasil (16% em 2017), mas muito próximo dos Estados Unidos (7,8% em 2017). O caso é semelhante para os produtos brasileiros17.
Apesar da concentração nos valores entre 2013 e 2016, na inserção de produtos argentinos e brasileiros no mercado internacional, a evolução do peso da China em suas exportações totais é um elemento importante a ser levado em consideração. Na análise de uma alternativa de inserção global Ásia-Pacífico para o MERCOSUL, a estratégia converge necessariamente no estudo das relações econômicas com a China (independentemente das estratégias discursivas do bloco regional). Entretanto, uma possível inserção baseada no privilégio das relações comerciais com a China esbarra em uma série de limitações. Em países como o Brasil, a abertura à China coloca em questão os grandes projetos dos setores industriais do Estado e a liderança das indústrias manufatureiras brasileiras. Na verdade, 96% e 91%, respectivamente, das exportações de manufaturados da Argentina e do Brasil são diretamente ou parcialmente ameaçadas pela concorrência do gigante asiático18.
Desde 2004 a China tem investido continuamente em infraestrutura, transporte e tecnologia nos Estados-parte. Também está se posicionando no setor automotivo ou de compras públicas e está se tornando um cliente chave para as matérias-primas, bem como o principal fornecedor de produtos manufaturados do continente19. Em 2008, foi lançado um “Livro Branco”, no qual são identificados os objetivos chineses na América do Sul. Para tanto, Pequim adotou uma série de iniciativas diplomáticas para acompanhar e consolidar sua presença na região, como o diálogo China-MERCOSUL. No entanto, esse diálogo enfrenta uma série de desafios. No atual contexto de incertezas, a estagnação econômica, a queda dos preços das commodities e as pressões fiscais enfrentadas pelos Estados-parte evidenciam as tensões entre os setores agroexportadores e industriais20.
Essas tensões têm tido o potencial de gerar realinhamentos políticos, influenciando as decisões de política econômica externa do bloco sul-americano. Contudo, o capital privado europeu tem ainda uma importância decisiva para o desenvolvimento e fortalecimento das indústrias dos Estados-parte. Através da selagem do acordo de livre-comércio, o MERCOSUL visa consolidar os investimentos europeus e se demarcar no cenário internacional, enquanto a União Europeia almeja alcançar mais benefícios comerciais para suas multinacionais e reforçar seu reconhecimento como ator internacional21.
b) O retorno do inter-regionalismo econômico
A UE tem uma espécie de formato de acordo de livre comércio com toda uma série de seções. Em 2019, foram concluídas as negociações sobre a seção comercial do acordo entre o MERCOSUL e a União Europeia. O diálogo entre os blocos parece natural, uma vez considerada a posição atlântica dos países do bloco e sua herança colonial (em termos de ideias e instituições seguindo o modelo europeu, em particular). Contudo, as negociações estavam bloqueadas há vários anos, principalmente devido à falta de consenso em questões como: marcos regulatórios, compras públicas, propriedade intelectual, regras sanitárias, tarifas alfandegárias. Neste momento em que o mundo está cada vez mais fragmentado e as regras que regem o sistema internacional vem sendo desafiadas, a retomada das negociações comerciais sublinha o compromisso dos blocos regionais com a abertura econômica e com o fortalecimento das condições multilaterais.
Em termos práticos, o aumento do comércio de mercadorias entre os blocos é mais acentuado a partir de 2003. Contudo, a crise econômica global se reflete em 2009 em uma queda significativa das exportações da UE para o MERCOSUL e ainda mais nas importações do MERCOSUL. Desde 2015, a evolução das importações do MERCOSUL e da UE tem seguido uma tendência semelhante à das exportações22. É possível observar uma retração significativa dos intercâmbios entre 2002 e 2011, com a diminuição de cerca de 8 pontos percentuais. Isto é consequente a perda de competitividade das exportações europeias, em comparação com outros centros mundiais de exportação, em particular da Ásia-Pacífico. De 2011 até hoje, embora ligeiramente, a participação europeia começou a se recuperar.
De 2007 a 2020, a UE responde de 59,9% a 50,1% das exportações e 40,1% a 48,9% das importações do MERCOSUL. Embora a tendência seja ligeiramente ascendente se compararmos 2009 e 2011, este gráfico sugere que o comércio UE-MERCOSUL tenta retomar o crescimento contínuo vivido nos anos 1990. A MERCOSUL foi responsável por pouco mais de 2% do comércio externo total da UE em 2019 e foi o décimo primeiro parceiro comercial mais importante da UE. De fato, o MERCOSUL importa majoritariamente bens industrializados da UE e exporta principalmente commodities, energia e produtos alimentícios. A partir disso, podemos ver que a Alemanha está se afirmando como uma real potência exportadora da UE, regularmente em excesso. No primeiro semestre de 2020, só a Alemanha foi responsável por 31,5% das exportações de mercadorias da UE para o MERCOSUL. O segundo maior país da UE em exportações para o MERCOSUL é a Itália com 11%, seguida da França com 10,1%.
Para a UE, por outro lado, o acordo de cooperação com o MERCOSUL representa uma oportunidade de revigorar sua inserção europeia nos mercados sul-americanos, diante da crescente concorrência dos países da região Ásia-Pacífico. Além disso, este acordo gera menos resistência entre os industriais brasileiros e argentinos do que um possível acordo similar com a China, uma vez que a presença de produtos manufaturados europeus já foi internalizada pelos players locais. Para os setores exportadores de commodities, principalmente agroexportadores, o Acordo de Associação gera a esperança de recuperar um espaço através da obtenção de preferências tarifárias em um mercado altamente protegido por barreiras de vários tipos. Por outro lado, apesar das expectativas, esse não abre realmente a possibilidade de melhorar a inserção de produtos manufaturados em competição com países terceiros da UE. Para tanto, seria necessário um jogo produtivo além dos efeitos de um acordo de livre comércio.
Apesar dos possíveis custos deste acordo, o acordo de livre-comércio com a UE apresenta um equilíbrio mais favorável para sua materialização na equação das considerações ideológicas, geopolíticas e materiais dos países do MERCOSUL. Dada a falta de internalização de padrões comuns, o bloco sul-americano está em uma posição fraca nas negociações. A instabilidade e a pluralidade de regras são um fator de incerteza no MERCOSUL, sendo determinante na confiança dos operadores econômicos. Além disso, há também o contexto de declínio do comércio entre os blocos e a mudança do motor econômico internacional para a Ásia-Pacífico. Tudo isso coloca em questão a viabilidade desse acordo como estratégia para a integração global do MERCOSUL.
2.3. Os limites do Acordo UE-MERCOSUL
Ao longo de vinte anos de negociações, as discussões entre o MERCOSUL e a União Europeia trataram de resolver diversos pontos divergentes a fim de se chegar ao Acordo de Associação UE-MERCOSUL. Contudo, existem ainda posicionamentos divergentes no interior de ambos os blocos que podem influenciar negativamente no processo de ratificação desse.
a) As divergências sobre questões fundamentais
Durante todo o período de negociações, a questão agrícola foi um tema sensível do Acordo de Associação. O MERCOSUL assinalou por anos a lacuna na interpretação pela UE do artigo XXIV do GATT, devido essa excluir a liberalização de bens sensíveis - em particular agrícolas e agroindustriais. Apesar do respeito à moção do Parlamento Europeu preservando os interesses dos produtores agrícolas europeus nas negociações comerciais com o MERCOSUL23, alguns países do bloco europeu ainda consideram o acordo como uma ameaça aos subsídios à produção e exportação, concedidos no âmbito da PAC24. A liberalização de investimentos, serviços e compras públicas também é vista ainda, por analistas, como uma ameaça à política industrial de ambos os blocos. Haveria particularmente impactos negativos no setor automobilístico. Ademais, o dossiê sobre a proteção dos direitos de propriedade intelectual apresentado pelos negociadores europeus colocaria também sérios problemas para os produtores argentinos e brasileiros em particular.
Os interesses da União Europeia em estabelecer um acordo com o MERCOSUL competem cada vez mais com a expansão econômica das potências asiáticas emergentes. Por conseguinte, além das dificuldades de exercer influência política nos países do bloco sul-americano, tem havido uma fase de declínio econômico europeu no intercâmbio comercial entre os blocos. Os fluxos de comércio e investimento caíram acentuadamente frente aos anos 1990, principalmente com o resultado do lento crescimento das economias europeias.
O processo de globalização econômica ao submeter as economias europeias ao teste da intensificação da concorrência internacional levanta muitos desafios à política comercial comum do bloco europeu. Apesar disso, a UE é tradicionalmente percebida como uma “grande potência” no campo do comércio, devido a sua capacidade de “falar a uma só voz” em negociações multilaterais. Na verdade, estas relações comerciais UE-MERCOSUL são semelhantes ao padrão tradicional de centro-periferia. A grande maioria das exportações da UE para o MERCOSUL são produtos manufaturados, enquanto para o MERCOSUL por sua vez são produtos primários. Portanto, a participação do bloco sul-americano é modesta no comércio internacional: de 4% em 1980 e mal ultrapassou os 5% em 2019 (aproximadamente a participação da economia francesa), enquanto a União Europeia quadruplicou sua contribuição no mesmo período25.
Apesar de o MERCOSUL ser uma potência agroindustrial, o projeto de integração regional sul-americano decepciona as expectativas europeias, no sentido de que, o MERCOSUL não conseguiu ainda criar um órgão de negociação coletiva (como a Comissão Europeia), nem finalizar a união aduaneira, nem adotar legislação comum em áreas que são objeto de negociações entre os dois blocos regionais, (como serviços, investimentos ou compras governamentais). Contudo, o MERCOSUL confirmou a sua ambição geral de melhorar a união aduaneira ou mesmo de satisfazer a condição de oferta da UE quando decidiu aprovar a eliminação gradual da dupla cobrança da TEC a partir da decisão do Conselho do Mercado Comum de 2012. A vontade de criar um mecanismo de distribuição das receitas aduaneiras e um código aduaneiro foi também endossada. Em uma comparação norte-sul, o intercâmbio comercial entre os blocos está em superávit para a UE26. Assim, ambos os blocos desenvolvem um diálogo sobre setores que lhes são caros (agroindústrias, automobilístico, farmacêutico, serviços, etc.) a fim de se demarcarem em um cenário mundial cada vez mais heterogêneo.
b) As assimetrias no interior do MERCOSUL
Os Estados-parte do MERCOSUL apresentam um território altamente assimétrico, caracterizado por fraturas socioeconômicas e descontinuidades. As produções agrícolas e industriais, assim como as melhores condições de vida da população, estão concentradas nas regiões costeiras, enquanto os baixos indicadores de PIB e IDH caracterizam grandes áreas localizadas principalmente no interior dos países. Entre 2003 e 2009, os Estados-parte desfrutaram de uma fase de alta prosperidade. As taxas de crescimento foram altas, em média 5% e até 8% a 9% em alguns países, que se beneficiaram particularmente bem da demanda asiática e do aumento dos preços das commodities.
Ao longo dos últimos anos, a China está investindo dezenas de bilhões de dólares nas economias da América do Sul para garantir uma base para o seu abastecimento de recursos naturais27. Os investimentos chineses favorecem principalmente a energia (54,7%), minerais (22,3%), aço (11,8%), atividades portuárias (3,4%), energia elétrica (3,3%) e recentemente o setor do agronegócio (compra de terras para produção de soja para o mercado chinês28. Além disso, o gigante asiático exporta para esses países principalmente bens manufaturados (têxteis, eletrodomésticos, equipamentos automotivos) a preços reduzidos, graças a um yuan desvalorizado. Essa competição afeta severamente as indústrias nacionais e contribui para deslocar os produtos manufaturados de seus mercados naturais, especialmente porque o valor da moeda interna permanece elevado.
Os países do MERCOSUL permanecem em sua maioria fiéis ao modelo de industrialização “substituta”. Na verdade, esses estão presos ao sucesso inicial enquanto fornecedores de matérias-primas e produtos agrícolas. De acordo com uma lógica de extroversão e “vantagens comparativas”, os países têm se industrializado sob a restrição da situação econômica para satisfazer seu mercado interno. Por exemplo, mais de 70% das exportações do MERCOSUL para a China em 2020, que se tornou o seu maior mercado, consistiam em produtos agrícolas ou minerais (petróleo, minerais, café, açúcar, tabaco, carne e soja). Alguns países menos complexos do bloco correm o risco de doença holandesa, com a exportação única e a extrema volatilidade dos preços internacionais das commodities29.Na Argentina, por exemplo, alguns analistas estão preocupados que o país se torne uma “República da Soja”, sacrificando tudo para o produto do momento.
Mesmo que a China tenha sido inicialmente recebida como uma oportunidade econômica e comercial, atualmente as autoridades dos Estados-parte querem abrir-se a relações comerciais pluralistas. Tanto a Comissão Europeia quanto os Estados Ibéricos, particularmente Portugal, cuja política externa sempre considerou o gigante lusófono da região como um parceiro privilegiado30. Assim, a evolução do MERCOSUL e mesmo seu destino aparece intimamente ligada ao Brasil uma vez que este responde por mais 60% do PIB do bloco. O Brasil é, por conseguinte, o principal beneficiário da abertura, gozando assim de maior autonomia econômica e política, comparado aos vizinhos da região que são também considerados países emergentes.
A integração regional cria efeitos de polarização resultantes de forças centrípetas e centrífugas. As forças centrípetas são os fatores tecnológicos e monetários, enquanto as centrífugas são os fatores sociais. Essas forças conduzem a processos cumulativos no centro que podem ser perversos para as periferias desfavorecidas. O centro é uma zona atrativa, capaz de criar externalidades favoráveis ao crescimento - como uma aglomeração industrial. Portanto, para reduzir a vulnerabilidade da periferia, os efeitos da polarização exigem transferências, mecanismos de compensação e políticas de ordenamento do território a fim de reduzir as desigualdades de desenvolvimento a nível regional. No caso do MERCOSUL, a XXVII Cúpula do Mercosul aprovou a criação do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) em 2004 e se tornou operacional a partir de 200631. Para o então Ministro Celso Amorim, responsável pelo Ministério das Relações Estrangeiras sob o governo Lula da Silva (2003-2010), o FOCEM e seu Parlamento testemunharam a dimensão política, econômica e social da união regional e o seu “forte senso de solidariedade” 32
Os avanços na construção de novas instituições políticas e o compromisso com os mecanismos sociais contrastam com os escassos progressos alcançados em termos de integração produtiva e comercial. O enfraquecimento das economias locais conduz a um aumento das desigualdades sociais. Além disso, há um problema na adoção de normas: assim que a implementação de normas é negligenciada (sem consequências para os Estados-parte), os governos podem se beneficiar da assinatura de acordos, ao mesmo tempo em que economizam custos de controle33. O FOCEM seria, portanto, a ilustração de uma lacuna entre o discurso oficial e a modéstia dos modos de ação dos Estados-partes no que tange a cooperação entre os mesmos. Os governos facilmente adotam uma política, mas negligenciam sua implementação.
Enfim, no que se refere especificamente ao acordo de associação com a União Europeia, os Estados-parte do MERCOSUL se colocam em uma posição declarada de re-primarização de suas economias: matérias-primas sendo exportadas em contrapartida de medicamentos por exemplo34. Com a entrada de produtos europeus mais baratos no mercado regional, haveria uma substituição dos produtos produzidos na economia local. O mercado da UE está 66% aberto, enquanto o mercado do Mercosul é de apenas 13%35O risco de quebra total da indústria local se torna assim evidente. Em termos relativos, as indústrias argentinas mais afetadas seriam a automobilística (28% de seu emprego em risco), a autopeças (28%) e a metalmecânica (20%). Ademais, estima-se que apenas na Argentina cerca de 186.000 empregos industriais (133.000 registrados e 53.000 não registrados) poderão ser perdidos com a ratificação do acordo36. O acordo de associação pode privar os Estados-parte de um certo equilíbrio econômico entre a parte agrícola e industrial, assim como colocar em risco o intercâmbio entre outros países sul-americanos.
3. CONCLUSÃO
O terreno político do Mercosul está bastante movimentado. A ascensão ao poder dos governos de Macri e de Bolsonaro fez com que a assinatura do acordo entre a UE e o Mercosul fosse desbloqueada. Esses governos neoliberais trocaram o modelo onde temos uma economia local, regional, com certas proteções, por uma economia globalizada. Com a reviravolta eleitoral na Argentina e a instabilidade política no Brasil, o MERCOSUL enfrenta um novo cenário que não pode ser entendido sem referência a transformações estruturais de longo prazo.
As transformações do mercado internacional, com o surgimento de novos players, significaram no curto prazo a possibilidade de ampliação dos campos de atuação autônomos, suportados pelos novos recursos resultantes do boom das matérias primas e da expansão das possibilidades de financiamento internacional. No entanto, isto tem mostrado seus limites no médio prazo, com especialização produtiva levando a políticas liberais ortodoxas e uma forte retração dos setores industriais que enfrentam forte competição nos mercados manufaturados nacionais e regionais.
A implementação do Acordo de Associação entre o MERCOSUL e a União Europeia parece afirmar uma vontade de retorno de uma política comercial de viés multilateralista. Com isso, tem-se criação de uma área de integração econômica imponente tanto em termos do mercado potencial que abrangeria (750 milhões de consumidores), como do comércio que poderia gerar (mais de 84 bilhões de euros por ano, segundo o CESE). No geral, o acordo seria um ativo em termos de criação de empregos e crescimento, à luz das conclusões dos estudos de impacto de julho de 2011. Se for ambicioso, o PIB da UE e do MERCOSUL aumentaria 0,2% e 0,3%, respectivamente. A União Europeia visa ser reconhecida como ator importante no cenário internacional. Por sua vez, além de atrair novos investimentos e diversificar suas relações comerciais, o MERCOSUL pretende ganhar visibilidade no cenário internacional.
De fato, a eliminação de barreiras tarifárias tornaria as economias inter-regionais ainda mais competitivas. Contudo, afetaria fortemente setores industriais que já se encontram em dificuldades. Ao mesmo tempo, a especialização produtiva deixa esses países sujeitos a: instabilidade macroeconômica e vulnerabilidade ligada a flutuações nos preços das matérias primas; ausência de políticas de redistribuição para compensar os perdedores; o déficit na absorção de mão de obra; etc. Ademais, o acordo tem também uma consequência ambiental onde a elevação da exportação de grãos pode por exemplo conduzir a um aumento do desmatamento da Amazônia.
Apesar de sua assinatura em junho de 2019, o acordo de associação entre UE-MERCOSUL está longe de ser colocado em prática. Como se trata de um mandato de 1999, todos os parlamentos nacionais dos Estados-partes têm que concordar. Há assim ainda um longo caminho a ser percorrido para esse ser ratificado pelos parlamentos que se encontram divididos em questões de direitos sociais, desenvolvimento sustentável, etc. Enfim, apesar das contínuas declarações contrárias do atual governo brasileiro, o MERCOSUL mostra-se um espaço fundamental na estratégia de abertura e integração internacional dos países signatários.
Em conclusão, a assinatura do acordo de associação é uma oportunidade para refletir sobre as evoluções e os desafios a vir, tendo em vista a importância do MERCOSUL na consolidação da paz e da democracia como eixo da identidade e do desenvolvimento do bloco sul-americano.