1. INTRODUÇÃO
Não seria exagero assentar que as relações entre a Europa e a América Latina e o Caribe talvez sejam as mais longevas e intensas da era moderna do sistema internacional vestfaliano, baseado em interações entre Estados soberanos. Desde as grandes navegações, passando pelo período das independências e ao longo dos séculos XX e XXI, europeus e latino-americanos mantêm intercâmbio não apenas econômico-comercial, mas também político e cultural, eis que instituições, filosofias e ideias atravessam o Atlântico nos dois sentidos em um fluxo contínuo e rico de trocas.
É nesse contexto que a Europa se consolida como a maior investidora direta na América Latina e o Caribe. Seja na conjuntura colonial, seja no período pós-independências, empresas e investidores europeus são dominantes nos ativos estrangeiros mantidos em solo latino-americano, a despeito da marcante presença dos Estados Unidos que, desde a Doutrina Monroe de 1823, buscam consolidar sua hegemonia ao Sul do Rio Grande. Ao longo dos séculos XIX e XX, tanto Washington quanto os principais países europeus competirão pela predominância na exportação de capitais e importação de bens das nações latino-americanas, conjuntura essa que apenas recentemente vem sofrendo alterações significativas, a partir da entrada da China e de outros países asiáticos na corrida.
De acordo com o mais recente relatório da CEPAL, cerca de 20% montante total das fusões e aquisições concretizadas em 2018 na região devem-se a empresas asiáticas, sobretudo chinesas1. Por outro lado, a Europa ainda detém cerca de 40% dos ativos acumulados de Investimento Estrangeiro Direito (IED), sendo esta presença particularmente marcante na América do Sul, ao passo que as inversões dos Estados Unidos têm maior presença principalmente nos países da América Central e Caribe. Analisando-se os investimentos por país, percebe-se que o IED europeu é dominado principalmente pela Espanha, que representou 29% dos investimentos europeus em projetos novos na região e 29% do valor das fusões e aquisições europeias no período 2005-2017. Alemanha (16%), Reino Unido (13%), Itália (12%) e França (11%) são os outros países investidores mais destacados em projetos novos na região.
Nessa relação Centro-Periferia, em que a América Latina insere-se primordialmente como Estado hospedeiro, o Direito dos Investimentos evoluiu de forma não linear, tendo em vista a sensível dicotomia entre soberania e capitais estrangeiros. Nesse sentido, é seguro afirmar que a predominância de uma posição mais protecionista e defensiva ante os ativos externos intercalou-se com momentos de maior abertura e liberalização da regulação do setor.
Mais recentemente, em 7 de abril de 2017, os quatro Estados-membros originais do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) concluíram o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos do MERCOSUL (PCFI)2, entrando em vigor no plano mercosulino em 30 de julho de 2019. Inspirado no formato brasileiro de Acordo de Cooperação e Facilitação de Investimentos (ACFI), o novo texto assumiu caráter eminentemente defensivo ante a presença massiva de capitais estrangeiros, focando, por exemplo, na prevenção de controvérsias e em arbitragens ao formato Estado-Estado, além de excluir qualquer previsão sobre desapropriação indireta.
Tal postura refletiu-se também na conclusão, em 28 de junho de 2019, do Acordo de Associação entre o MERCOSUL e a União Europeia, que prevê o livre-comércio para uma série de setores econômicos, bem como a instituição de normas comuns como regras de origem, compras governamentais e medidas sanitárias e fitossanitárias3. Conquanto o texto final ainda dependa da aprovação dos 27 parlamentos nacionais da União Europeia e dos quatro Estados-membros do MERCOSUL, podendo ser modificado neste período, é notória a ausência de um capítulo destinado ao setor de investimentos, o que poderia indicar posições contrastantes entre os países sul-americanos e seus congêneres europeus acerca do Direito dos Investimentos.
Este trabalho, portanto, reconstituirá um breve histórico da inserção da América Latina na conformação do Direito Internacional dos Investimentos, a fim de melhor contextualizar o quadro em que se deu a conclusão do Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos do MERCOSUL. Em seguida, analisar-se-ão as peculiaridades do PCFI vis-à-vis do padrão médio dos acordos bilaterais de investimentos (BITs, em inglês) assinados pelos Estados mercosulinos ao longo dos anos 1980 e 1990 - com exceção do Brasil -, buscando-se compreender a ratio das novas normas de investimentos.
2. A EVOLUÇÃO DO DIREITO DOS INVESTIMENTOS ENTRE EUROPA E AMÉRICA LATINA E CARIBE
O fluxo de investimentos entre Europa e América Latina e Caribe é tão antigo quanto as próprias relações econômicas entre os continentes, inauguradas ainda com as grandes navegações. Ao longo do período das colônias, predominaram as trocas comerciais, organizadas de acordo com o padrão dos monopólios coloniais na produção e comercialização de produtos primários destinados aos principais mercados da Europa. Nesse sentido, a presença econômica Europeia fazia-se sentir muito mais no intercâmbio de bens, não se verificando ainda a presença de ativos estrangeiros que se aproximassem do conceito moderno de investimentos.
Esse panorama começa a alterar-se com a emergência das primeiras independências nacionais na América Latina e no Caribe, no alvorecer do século XIX. A partir do surgimento de novos ordenamentos jurídicos soberanos no Novo Mundo, a presença econômica europeia teve de readequar-se: os antigos monopólios deram lugar a privilégios alfandegários e tratados comerciais desiguais entre os novos Estados americanos e suas antigas metrópoles. Mais ainda, a Revolução Industrial abriu espaço para a exportação de capitais europeus na forma de ativos como a construção de ferrovias, ligação de linhas de telégrafos e até a instalação das primeiras oficinas de produtos manufaturados.
Tem-se início, portanto, ao fluxo dos investimentos, na acepção moderna do conceito, entre as duas margens do Atlântico. Nesse intercâmbio, praticamente de via única, a Europa posicionava-se como exportadora de capitais, ao passo que as novas nações da América Latina e Caribe perfaziam típicos Estados hospedeiros receptores de ativos estrangeiros. E numa época de notória corrida imperialista das potências europeias por mercados promissores na “periferia”, não raros eram os tratados desiguais que asseguravam amplos direitos e garantias aos investidores, como a imunidade perante tribunais internos do Estado hospedeiro, deslocando os julgamentos para tribunais mistos ou até cortes arbitrais, bem como meios ágeis de execução de dívidas e indenizações em caso de inadimplementos obrigacionais do país onde estão localizados os investimentos. Por fim, caso ainda não houvesse uma solução satisfativa, recorria-se legitimamente à força4.
Nesse contexto, ainda que não houvesse qualquer instrumento convencional que garantisse esses privilégios e imunidades, o investidor também poderia socorrer-se por meio do secular instituto da proteção diplomática, pelo qual seu Estado nacional se sub-roga de seus direitos para litigar, em causa própria, em face do Estado hospedeiro suposto violador. À luz do Direito Internacional clássico, a proteção internacional justifica-se em razão de o indivíduo não possuir personalidade jurídica na esfera internacional, carecendo, portanto, de capacidade postulatória para demandar internacionalmente outro Estado.
Contudo, a despeito dos questionamentos jurídicos em torno deste instituto - como a dúvida acerca da legitimidade ordinária ou extraordinária do Estado em litigar, além da suposta obrigação deste mesmo Estado em reverter as indenizações ao seu nacional -, o fato é que a proteção diplomática permitia às potências europeias o exercício de todo seu poder econômico e militar na imposição de sua vontade em caso de controvérsia com Estados hospedeiros em torno da temática dos investimentos.
Não à toa, ao longo da segunda metade do século XIX, juristas e pensadores latino-americanos começam a lapidar doutrinas jurídicas destinadas a limitar as excessivas garantias prestadas ao investidor estrangeiro, na tentativa de restabelecer a paridade de armas entre ambas as partes. A primeira e talvez mais conhecida delas é a Doutrina Calvo, elaborada pelo jurisconsulto uruguaio Carlos Calvo, que condicionava a recepção de investimentos estrangeiros à renúncia ao instituto da proteção diplomática, vinculando o investidor à jurisdição interna do Estado hospedeiro5.
Já a Doutrina Drago, construída pelo chanceler argentino Luís María Drago, vedava em absoluto o uso da força para a resolução de controvérsias relativas a cobranças de dívidas. Impressionado com o bombardeiro de potências europeias aos portos da Venezuela, em 1902, como forma de indução ao pagamento da dívida soberana venezuelana, Drago logrou êxito em aprovar sua doutrina por ocasião da III Conferência Panamericana do Rio de Janeiro, em 19066.
A Doutrina Calvo e a Doutrina Drago forneciam subsídios jurídicos para que Estados hospedeiros questionassem o excesso de direitos e garantias exigidos por investidores estrangeiros ao longo do século XX, multiplicando as controvérsias em torno de investimentos. A partir da década de 1930, a nacionalização de empresas estado-unidenses e europeias por governos nacionalistas na América Latina, em especial o México, atraiu a atenção para o direito das expropriações de ativos estrangeiros e para a indenização “justa” e “efetiva”. Em outras palavras, não havia consenso acerca do aplicabilidade e extensão dessas normas jurídicas, mormente na questão de nacionalizações nas áreas exploração de recursos naturais, como óleo e gás.
Essa oposição crescente entre países exportadores de capital e Estados hospedeiros, reproduzindo arranjo “Centro-Periferia”, acentuou-se com as descolonizações na África e Ásia, eis que os novos Estados egressos desses processos consideraram-se como detentores do direito ao desenvolvimento e não participantes de um suposto direito costumeiro de proteção ao investimento. Símbolo desse novo momento foi a aprovação, na Assembleia Geral da ONU, da Declaração das Nações Unidas Sobre a Soberania Permanente Sobre os Recursos Naturais de 1962, que garantia amplamente o direito de expropriação de ativos.
Fruto do pensamento “periférico” daquele momento, os Estados-membros do Pacto Andino7 celebraram, em 1970, um código comum de investimentos recíproco e externo, consubstanciado na Decisão n. 24 da Comissão do Acordo de Cartagena. A mens legis do texto indicava que os países do bloco buscavam equilibrar a recepção dos investimentos estrangeiros com a manutenção de sua autonomia política e principalmente econômica. Dessa forma, por exemplo, o código reconhecia expressamente a preferência pelas empresas nacionais, impunha limites na remessa de lucros e determinava inclusive a obrigação de participação de capital nacional nas sociedades estrangeiras que ali se instalassem8.
Tal protecionismo não foi bem recebido pelos Estados emissores do “Centro”, havendo inclusive dissensos internos. Após o golpe que instalara a ditadura neoliberal do general Augusto Pinochet, o Chile empreendeu esforços para revisar a Decisão n. 24. Contudo, diante da irredutibilidade dos demais membros, o governo chileno decidiu retirar-se do Pacto Andino. Não obstante, com o passar dos anos, o código de investimentos foi progressivamente flexibilizado, primeiro pela Decisão n. 220 de 1987 e, sem seguida, pela Decisão n. 291 de 1991, que contemplou a entrada irrestrita de investimentos estrangeiros, bem como a não-discriminação e a ausência de limites na remessa de lucros9.
De outra ponta, uma coalizão composta majoritariamente de países desenvolvidos reuniu-se no âmbito no Banco Mundial (BIRD) para elaborar multilateralmente uma convenção que finalmente regulamentasse as regras de investimentos estrangeiros. Apesar de não ser necessariamente uma ideia inovadora, a turbulência no cenário internacional serviu como catalisador de vontades, resultando na Convenção sobre Resolução de Conflitos relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de outros Estados, assinada em Washington em 18 de março de 1965.
Tal instrumento, que entrou em vigor logo no ano seguinte de sua assinatura, inova radicalmente ao criar o Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos (CIRCI-ICSID), responsável por resolver controvérsias diretamente entre investidor e Estado hospedeiro por meio de arbitragem própria. Esse mecanismo peculiar de resolução de controvérsias acabou por representar um nicho de negócios fechado e altamente especializado em que advogados de bancas internacionais de advocacia privada revezam-se como árbitros, em um círculo vicioso10.
A Convenção de Washington, em conjunto com seu mecanismo arbitral de resolução de disputas, atraiu inicialmente a ratificação em peso dos países desenvolvidos, eis que seu foco era justamente a proteção ao investimento estrangeiro. Importantes nações do mundo em desenvolvimento, principalmente na América Latina e no Caribe, não aderiram ao tratado, vinculando-se aos preceitos da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI) e do G-77.
Contudo, com o fim da Guerra Fria e a derrocada do bloco socialista-soviético, a doutrina do liberalismo econômico, representada pelo “Consenso de Washington”, impeliu países em desenvolvimento a ratificarem a Convenção do ICSID de forma a criar ambientes seguros e receptivos para investimentos estrangeiros, que contribuiriam para a prosperidade econômica. Nessa toada, a grande maioria das nações latino-americanas e caribenhas aderiu à Convenção de Washington ao longo das décadas de 1980 e 1990, com exceção, apenas, de Bolívia, Brasil, Cuba, Equador, Suriname e Venezuela11.
Logo de início, a América Latina e o Caribe configurou-se como um dos blocos regionais mais ativos no ICSID, não apenas nas propostas de aperfeiçoamento da Convenção de Washington, como também através das arbitragens instauradas por investidores estrangeiros. Atualmente, em âmbito global, 155 Estados já ratificaram e, portanto, são partes deste tratado, representando um dos instrumentos multilaterais de Direito Internacional Econômico com mais ratificações na História.
3. A PECULIAR POSIÇÃO DO BRASIL EM MATÉRIA DE INVESTIMENTOS
Notória exceção, nesse contexto, é o Brasil, não apenas por seu peso na produção bruta mundial, mas sobretudo por sua posição peculiar frente à temática dos investimentos estrangeiros. Tendo a maior economia da América Latina e do Caribe, naturalmente o país recebe a maior quantidade de Investimento Estrangeiro Direto da região, ainda que não se ajuste aos preceitos liberais da Convenção de Washington. Mais ainda, no auge da tensão Centro-Periferia, o país notabilizou-se por famosos casos de expropriação de ativos estrangeiros, como os casos da Bond and Share e da ITT, ambos no Rio Grande do Sul.
Nesse contexto, em parecer que subsidiou a posição brasileira quando elaboração da Convenção de Washington, o Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, Augusto de Rezende Rocha, considerou o novo mecanismo como uma indevida interferência do “imperialismo econômico e financeiro”, não sendo crível que um Estado soberano com instituições jurídicas sólidas tenha de ceder competências para tribunais internacionais, mormente em matéria regulatória de âmbito estritamente interno12.
Contudo, conforme apontam Ely Caetano Xavier Júnior e Fábio Morosini, nos últimos 40 anos, a posição brasileira em relação à regulação dos investimentos oscilou entre uma posição mais conservadora e reticente, dominada pela lógica Norte-Sul e pela predominância do Brasil enquanto Estado receptor, seguida de um protagonismo na formulação de normas para o setor, em que a economia brasileira assumiu a condição de Estado exportador de capitais a partir do eixo Sul-Sul13.
Na primeira “onda”, segundo os autores, o contexto liberalizante do final da Guerra Fria contribuiu para que o governo brasileiro cedesse parcialmente sua resistência e assinasse 14 tratados bilaterais de investimento com importantes países exportadores de capital ao longo da década de 199014. Esses instrumentos previam dispositivos típicos dos principais BITs daquele período, como uma definição ampla de investimentos, favorável ao investidor, cláusulas abertas prevendo o “padrão justo e equitativo” e até arbitragem ad hoc ou no âmbito do ICSID (tratados assinados com Itália e Portugal), ainda que não houvesse referências à possibilidade de utilização de seu mecanismo suplementar.
O Congresso Nacional, entretanto, atrasou o processo de aprovação desses instrumentos, impedindo-os de serem ratificados e de produzir efeitos. Por fim, com a troca democrática de governo no início do século XXI, tais tratados não foram considerados mais politicamente interessantes à economia nacional15, o que sepultou de vez a chance de o Brasil ser parte em um BIT. O conteúdo demasiado liberalizante, segundo Ely Xavier Júnior e Fábio Tomasini, foi determinante para o malogro desses tratados16.
O retorno à histórica posição reticente brasileira em matéria de investimentos, contudo, durou relativamente pouco, eis que, em razão de seu expressivo crescimento econômico, capitaneado pelo boom das commodities, o Brasil passou à condição de notório exportador de capitais, principalmente no contexto da América Latina e do Caribe. Dessa forma, a postura defensiva frente aos investimentos estrangeiros deveria naturalmente mudar, passando para uma posição mais assertiva e receptiva às inversões, já que boa parte delas, agora, seria de empresas brasileiras.
Essa “virada” ganhou concretude, em 2015, com a formulação original da minuta de Acordo de Cooperação e Facilitação de Investimentos (ACFI), modelo de tratado de investimentos elaborado por uma força tarefa inter-ministerial composta pelo Itamaraty, pelo Ministério da Fazenda, pelo então Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e pela Câmara de Comércio Exterior (CAMEX). Conforme destacam Erica Capella Fernandes e Jete Jane Fiorati, em vez de visar à proteção irrestrita do investimento estrangeiro, mesmo que através de arbitragem investidor-Estado, o ACFI brasileiro é mais equilibrado, contendo três pilares: a) mitigação de riscos; b) governança institucional; c) agendas temáticas para cooperação e facilitação dos investimentos17.
Comparado aos BITs assinados pelo próprio Brasil ao longo da década de 1990, o modelo de ACFI notabiliza-se por prever (i) maior autonomia regulatória do Estado hospedeiro; (ii) maior transparência, ressaltada, inclusive, nos preâmbulos; (iii) definição mais estrita de investimento e de investidor, de forma a minimizar abusos; (iv) cláusula de nação mais favorecida e tratamento nacional, sem qualquer referência a cláusulas de proteção e segurança jurídica ao investidor e ao “padrão mínimo internacional” de “tratamento justo e equitativo”, seja como garantia autônoma, seja como standard de norma costumeira internacional; (v) criação de “pontos focais” (Ombusmen), representados por agências governamentais escolhidas por cada país imbuídas da missão de facilitar a promoção de investimentos nos respectivos ordenamentos nacionais e de prevenir eventuais conflitos; (vi) direito à expropriação lastreada no interesse nacional, sem referências à “pronta indenização” e à indenização indireta; e (vi) arbitragem Estado-Estado, apenas.
Dado o novo status de país exportador de capital, o Brasil tratou de assinar os primeiros ACFIs com países que representam importantes espaços de atuação de empresas brasileiras, especialmente na África e na América Latina e no Caribe. Até a conclusão deste trabalho, o Brasil já havia assinado, no total, 13 ACFIs bilaterais com países integrantes do eixo Sul-Sul, embora boa parte desses instrumentos ainda dependa de ratificação no Parlamento brasileiro18. Além disso, ainda que a conjuntura política-econômica tenha alterado-se com a inauguração do novo governo em janeiro de 2019, os primeiros movimentos indicam não apenas a manutenção do modelo de ACFI, como também sua expansão para países como a Índia19.
4. A EVOLUÇÃO DA NORMATIZAÇÃO DE INVESTIMENTOS NO MERCOSUL
Pensado e arquitetado originalmente como um bloco regional de livre-comércio que visava a alcançar o mercado comum, no contexto da liberalização econômica da década de 1990, o Mercosul tratou desde logo de regulamentar os investimentos estrangeiros tanto no nível intra-zona quanto no nível extra-zona. Nesse sentido, em 1993, o Conselho Mercado Comum (CMC) aprovou a Decisão n. 11/93, que continha o Protocolo de Colônia para a Promoção e Proteção Recíproca de Investimentos no MERCOSUL, focando nos investimentos recíprocos entre os quatro membros originais do bloco (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai).
Fruto de seu tempo, sendo influenciado pelos preceitos do Consenso de Washington20, o Protocolo de Colônia previa um conceito amplo e aberto de investimento, abarcando o controle acionário, dívidas soberanas e títulos de crédito21. O texto também regulamentava favoravelmente ao investidor os temas de expropriação e de indenização “pronta e efetiva”22, permitindo ainda a livre transferência de ativos, lucros e sub-rogações, de modo análogo ao início da experiência andina. Além disso, inspirando-se no exemplo do NAFTA, o Protocolo de Colônia também previa três vias de solução de controvérsias: (i) recurso aos tribunais internos do Estado hospedeiro; (ii) recurso ao mecanismo de solução de controvérsias próprio do MERCOSUL, nos termos do então Protocolo de Brasília de 1991; e (iii) instauração de arbitragem organizada ou sob os auspícios do ICSID, para o qual os Estados ainda não partes da Convenção de Washington dariam consentimento instantâneo, ou por meio de tribunal arbitral ad hoc regido pelas normas da UNCITRAL.
Na opinião de Natasha Suñé e de Raphael Vasconcelos23, tal mecanismo de solução de controvérsias, ao prever uma espécie de forum shopping com alternativas exteriores às normas do MERCOSUL, não apenas enfraquecia o processo de consolidação das normas do próprio bloco, como também entrava em choque com a própria posição histórica do Brasil de distância frente ao ICSID. Por essas e outras razões, o Protocolo de Colônia nunca entrou em vigor, sendo ratificado apenas pela Argentina24.
Para regulamentar os investimentos extrazona, o Conselho do Mercado Comum (“CMC”) adotou, no início de 1994, a Decisão n. 11/94, que aprovou o Protocolo sobre Promoção e Proteção Recíproca de Investimentos Provenientes de Estados Não Partes do MERCOSUL, mais conhecido como Protocolo de Buenos Aires. Analogicamente ao Protocolo de Colônia, tal texto buscou harmonizar as regras dos quatro Estados-membros do bloco de recepção de investimentos estrangeiros, evitando-se eventuais distorções nos fluxos de capitais e tratamento mais favorável a investidor de fora do MERCOSUL25.
No que tange à solução de controvérsias, o Protocolo de Buenos Aires vai além, possibilitando não somente as três vias já previstas no Protocolo de Colônia, como também arranjos alternativos de composição de tribunal arbitral. Por isso, tal instrumento não foi ratificado pelo Brasil, o que a produção de seus efeitos para os demais membros da união aduaneira26.
Desse modo, diante do impasse, os Estado-membros do MERCOSUL adotaram a Decisão CMC n.o 30/2010, que, a um só tempo, revogou as decisões que previam o Protocolo de Colônia e o Protocolo de Buenos Aires e estabeleceu as diretrizes para um novo acordo de investimentos que regulamentasse o setor no bloco. Frise-se que este documento já evidenciava certa “correção de rumos”, tendo em vista a definição de diretrizes como a solução de controvérsia Estado-Estado, em consonância com o Protocolo de Olivos, e a liberalização conforme “as restrições em lista”27.
Assim, sem desviar-se das metas previstas na Decisão CMC n.o 30/2010, os quatros Estados-membros finalmente aprovam, em 07 de abril de 2017, o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos do MERCOSUL, destinado a suprir a lacuna dos investimentos intrazona e a atualizar a normativa regulatória de investimentos para adequá-la ao espírito do modelo brasileiro de ACFI.
5. O PROTOCOLO DE COOPERAÇÃO E FACILITAÇÃO DE INVESTIMENTOS DO MERCOSUL
Criado para substituir o finado Protocolo de Colônia, regulando os investimentos intra-zona28, o PCFI do MERCOSUL difere substancialmente de seu predecessor em vários aspectos. Logo em seu preâmbulo, nota-se a correção de rumos e o caráter manifestamente defensivo do novo texto. Se o Protocolo de Colônia almejava laconicamente, da perspectiva do investidor, a “promoción y la protección de tales inversiones sobre la base de un acuerdo contribuirá a estimular la iniciativa económica individual e incrementará la prosperidade en los cuatro Estados”, o PCFI reconhece o “papel fundamental do investimento na promoção do desenvolvimento sustentável, do crescimento econômico, da redução da pobreza, da criação de empregos, da expansão da capacidade produtiva e do desenvolvimento humano”. Ou seja, os benefícios puramente econômicos dos investimentos dão lugar, agora, a sua função social, instrumentalizando-os para o desenvolvimento humano e sustentável das nações, com objetivos de redução da pobreza e criação de emprego.
A definição de investimento, por sua vez, sofre considerável redução, mormente pela inovação trazida pelo art. 3º (3.1) do PCFI, que exclui categoricamente deste conceito jurídico os (i) títulos de dívida pública; (ii) os investimento em carteira e portfólio; (iii) as reclamações pecuniárias decorrentes exclusivamente de contratos comerciais para a venda de bens ou serviços; (iv) qualquer custo ou outras obrigações econômicas assumidas pelo investidor ou por seu investimento antes do estabelecimento do investimento.
Da mesma forma, visando à exclusão da incidência de normas costumeiras internacionais relativas ao “standard mínimo” geralmente invocadas por países desenvolvidos em arbitragens internacionais de investimentos, o art. 4º (3) do Protocolo especifica que “os padrões de ‘tratamento justo e equitativo’, de ‘plena segurança e proteção’ e a fase de pré-estabelecimento não são cobertos pelo presente Protocolo”. Tal dispositivo representa uma “virada de 180 graus” em relação ao art. 3º (1) do Protocolo de Colônia, que assegurava “en todo momento un tratamiento justo y equitativo a las inversiones de inversores de otra Parte Contratante y no perjudicará sugestión, mantenimiento, uso, goce o disposición a través de medidas injustificadas o discriminatórias”. Dessa forma, o novo instrumento afasta a aplicação de normas costumeiras internacionais sobre investimentos, normas estas que poderiam ser aplicadas para resolução de controvérsias no bojo do Protocolo de Colônia29.
Nesse sentido, o art. 4º (1) do PCFI garante apenas ao investidor um tratamento “em conformidade com o devido processo legal”. Já quanto à não discriminação, o art. 5º (1) diz que “um tratamento é menos favorável se alterar as condições de concorrência em favor dos seus próprios investidores e seus investimentos, em comparação com os investidores de outros Estados Partes e seus investimentos”.
Além disso, de modo análogo aos ACFIs bilaterais ratificados pelo Brasil, o PCFI somente prevê a desapropriação direta em seu art. 6º, que poderá ser realizada (i) por utilidade pública, interesse público ou interesse social; (ii) de forma não discriminatória; (iii) mediante o pagamento de uma indenização efetiva; e (iv) em conformidade com o devido processo legal. Apesar de este dispositivo não ser claro, a melhor exegese recomenda que todos estes requisitos sejam cumulativos.
Já a expropriação indireta, bastante invocada por países desenvolvidos em face de países latino-americanos e caribenhos no âmbito do ICSID, foi expressamente excluída do texto, nos termos do art. 6º (6), que definiu apenas o conceito de expropriação direta: “Para maior certeza, o presente Protocolo prevê somente a desapropriação direta, em que um investimento é desapropriado diretamente mediante a transferência formal do título ou do direito de domínio, e não cobre a desapropriação indireta”.
Ainda nesse ponto, cumpre ressaltar que as regras para indenização dispostas no PCFI conservam maior cautela e respeito ao ordenamento nacional do Estado hospedeiro. Nesse sentido caminha o art. 6º (1) (a), que preconiza que a indenização deverá “ser paga sem demora indevida, em conformidade com o ordenamento jurídico do Estado Parte Anfitrião”. Ou seja, a indenização “pronta” e proporcional prevista em normas materiais na grande maioria dos BITs dá lugar a uma compensação mais ajustada à soberania do Estado.
Quanto às transferências de capital, chama a atenção o disposto no art. 9o (4), pelo qual é permitido aos Estados-membros criar medidas regulatórias restritivas às remessas externas durante crises no balanço de pagamentos, desde que em consonância com o Artigos do Convênio Constitutivo do Fundo Monetário Internacional. Para efeitos de comparação, o art. 5o (2) Protocolo de Colônia não apenas consagrava a absoluta liberdade de transferências, como chegava ao ponto de fixar os parâmetros para a taxa de câmbio da operação30.
A maior margem de manobra ao exercício das soberanias também é verificada no art. 11 do PCFI, que permite aos Estados-membros adotar “medidas prudenciais” para resguardar a estabilidade de seus respectivos setores financeiros. Assim, quando um Estado adotar medidas restritivas ou incompatíveis com o Protocolo, este deverá assegurar aos demais Estados-membros que as políticas “não serão utilizadas como um meio de contornar os compromissos ou obrigações ao amparo do presente Protocolo”.
Mas a grande novidade do PCFI, contudo, fica por conta da criação de pontos focais (“Ombudsman”), que terão como objetivo a facilitação e promoção de investimentos por meio de assistência técnica e jurídica ao investidor. De acordo com o texto, cada Estado-parte designa uma agência estatal nacional para servir como ponto focal, tendo o Brasil elegido o Ombudsman de Investimentos Diretos no âmbito da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), órgão este que já funcionava como ponto focal dos ACFIs bilaterais assinados por Brasília.
Ainda nos termos do art. 18 (3), os pontos focais terão, entre outras responsabilidades: (i) Interagir com os Pontos Focais Nacionais dos outros Estados Partes, em conformidade com o presente Protocolo; (ii) avaliar, em diálogo com as autoridades governamentais competentes do Estado Parte Anfitrião, eventuais sugestões e demandas de outro Estado Parte em matéria de investimentos ou de investidores deste Estado Parte e recomendará, quando seja pertinente, ações para melhorar o ambiente de investimentos; (iii) prevenir controvérsias em matéria de investimentos em coordenação com as autoridades governamentais competentes; (iv) fornecer informação sobre normas de alcance geral em matéria de investimentos; e (v) informar a Comissão (Comissão de Monitoramento do PCFI) sobre suas atividades e ações, quando o entenda necessário e se esforçará para atender às orientações da mesma.
Por fim, dada a inclinação à prevenção de controvérsias por meio de pontos focais e do diálogo intergovernamental (art. 23), o PCFI prevê somente a arbitragem no formato Estado-Estado, em uma reedição do antigo instituto da proteção diplomática e de modo análogo ao mecanismo de solução de controvérsias do Protocolo de Olivos de 2002 do MERCOSUL no que tange a matérias comerciais (art. 24). Saem, portanto, as vias alternativas de instauração de arbitragem por meio das regras do ICSID e da UNCITRAL, previstas no então Protocolo de Colônia.
Em suma, o PCFI conserva espírito defensivo, da perspectiva do Estado hospedeiro, em contraposição ao viés liberalizante e pró-investidor mantido não apenas pela Convenção de Washington de 1965, como também pelos inúmeros BITs concluídos entre as nações da América Latina e países desenvolvidos.
CONCLUSÃO
De todo o exposto, pode-se concluir que o Direito Internacional dos Investimentos desenvolveu-se de forma não linear na América Latina, oscilando entre momentos de protecionismo e períodos de maior liberalização, como ocorrido nas décadas de 1980 e 1990. O exercício da soberania sobre recursos naturais e outros setores sensíveis das economias nacionais surge como principal explicação para a tensão constante entre o capital estrangeiro e sua regulação nos Estados hospedeiros.
No capítulo mais recente deste contexto mais amplo, o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos do MERCOSUL (PCFI), em vigência no plano externo desde 30 de julho de 2019, representa a nova expressão da abordagem Sul-Sul, no tocante aos investimentos, empreendida desde o início do século XXI pelos países integrantes do Cone Sul, uma verdadeira “virada” em relação aos principais BITs assinados nas décadas precedentes. Dentre as principais características do novo PCFI do MERCOSUL, estão a cristalização de um conceito restrito de investimento, com exclusões expressas a temas polêmicos como instrumentos de dívidas públicas, bem como o afastamento da possibilidade de desapropriação indireta e da arbitragem investidor-Estado.
Ainda que tenha como escopo de aplicação apenas os investimentos intra-zona, o PCFI tem potencial para reconfigurar de maneira substancial o modo como são regulados os investimentos estrangeiros nos países do MERCOSUL. Além disso, no Brasil. Nem mesmo a conjuntura política interna alterou a estratégia maior de assinar ACFIs, o que pode indicar a perenidade do novo modelo de regulação do setor, principalmente nas relações Sul-Sul. A conferir.