1. INTRODUÇÃO: ou para não ser um casmurro: transdisciplinariedade e Direito Internacional
Estou muito feliz que você me fez essa pergunta, já que muitas vezes eu encontro com pessoas que me chamam de pessimista. Em primeiro lugar, em um nível pessoal, isto não é verdade em todos os casos. Em segundo lugar, os conceitos de pessimismo e de otimismo não têm nada a ver com o pensamento. Debord citou muitas vezes uma carta de Marx, dizendo que “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Qualquer pensamento radical sempre adota a posição mais extrema de desespero. Simone Weil disse: “Eu não gosto daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias”. Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem de desesperança. E isso não está na altura do otimismo?1.
The bad artist imitate, the great artists steal, Banksy2.
Acessa-se, sem muito esperar, o Instagram. Entre fotos e mais fotos de sorrisos, viagens, pratos e eventos gastronômicos, e muita, mas muita propaganda das mais variadas mercadorias e serviços, depara-se com a seguinte imagem: uma pomba branca, de asas abertas e levando em seu bico um ramo de oliveira - imagem que, como sabemos, é associada à paz e à esperança de dias mais propícios à convivência pacífica entre os povos -, mas que, no entanto, está vestida com um colete à prova de balas e encontra-se sob a mira de uma arma de grosso calibre, cujo agente ameaçador, em razão da tecnologia empregada, pode estar a uma distância considerável de seu alvo. Impossível não sentir, ao mesmo tempo, um pesar pela realidade representada pela imagem, como também ver se formar no rosto um sorriso, se não de condescendência, mas de cansaço e de compreensão de que a afirmação confuciana - “uma imagem vale mais que mil palavras” - é, em muitos aspectos, verdadeira.
A imagem acima descrita, e que se encontra registrada em um muro da cidade de Belém, na Cisjordânia, é do artista plástico contemporâneo Banksy, cuja obra, em grande medida, se manifesta por meio de uma das formas mais democráticas e acessíveis nos dias atuais, a streetart, essa estranha miscelânea de pichos, desenhos e mensagens de elevação ou vulgaridade que marcam as atuais (grandes) cidades do mundo como verdadeiras tatuagens de um corpo que parece demandar, para expressar toda a complexidade de sua identidade, muito mais do que o próprio corpo: é preciso ser marcada, desenhada e coberta de imagens e mensagens que teriam ou têm o condão de as comunicar e dar inteligibilidade3.
É certo, entretanto, que o mundo da arte em geral, e da pintura em particular, não é estranha ao Direito Internacional. Se ficarmos, por exemplo, no evento magno que deu origem ao sistema westfaliano, teremos tanto no âmbito da literatura -Der abenteuerliche Simplicius Simplicissimus, de Hans Jakob Christoffel von Grimmelshausen, novela satírica escrita em 1648 e publicada em 1649, que narra as (des)venturas de seu personagem no curso da Guerra dos Trinta Anos em terras germânicas, cujos fatos e circunstâncias são filtrados por uma disposição de espírito que faz jus a seu nome4 -, como no da pintura, obras de qualidade invulgar que procuraram retratar esse fato importantíssimo para a história da disciplina.
Um exemplo dentre os últimos é o quadro que pertence à National Gallery de Londres, de autoria de Gerard ter Borch II, intitulado “The Swearing of the Oath of Ratification of the Treaty of Münster”, de 1648, e que retrata o ato de ratificação do Tratado de Münster nesse mesmo ano, com o qual se pôs termo à Guerra dos Oitenta Anos entre a Holanda e a Espanha, e que toma parte, historicamente, dos tratados que compõem à Paz de Westfália.
A pintura retrata o encontro das delegações holandesa (os seis homens ao centro da mesa) e espanhola (os dois homens à direita) na Ratskammer da Prefeitura de Münster, no momento em que ratificam, simultaneamente, as duas versões do Tratado. Ponto interessante é que, à extrema esquerda do quadro e junto à delegação espanhola, foi retratado um padre franciscano, e à extrema esquerda, um autorretrato do pintor. A composição tem, no todo, setenta e sete homens. A solenidade com que a imagem foi feita evidencia, doutra parte, o seu caráter oficial, como seja, a pretensão de retratar, para os seus contemporâneos e para a posteridade, o evento tal como ele, pretensamente, ocorreu, bem como a importância do ato e dos atores envolvidos.
O presente trabalho, no entanto, intenta aproximar, desde uma perspectiva transdisciplinar, uma possível interlocução entre Direito Internacional, street art e filosofia política, cujo principal objetivo é o de demonstrar, de um lado, que os problemas sentidos pela comunidade de internacionalistas é compartilhada por outras formas de expressão da razão e da emoção humanas, mas sem a usual contenção que a Ciência Jurídica interpõe como parâmetro de fazer-se ciência para ser-se relevante e aceitável, aqui representada pela figura do casmurro5, e de outro lado perceber, desde esta perspectiva transdisciplinar, que é possível não somente enriquecer-se o discurso jurídico, mas também torná-lo relevante e audível por outros campos da razão e da emoção humanas, e com isso permitir-se, quem sabe, o diálogo entre saberes.
A transdisciplinariedade que guia este trabalho é identificada a partir das lições do filósofo italiano Giorgio Agamben e o seu conceito de paradigma.
2. POSSIBILIDADES E EXIGÊNCIAS DA INTERLOCUÇÃO ENTRE DIREITO INTERNACIONAL, FILOSOFIA POLÍTICA E STREET ART
Afirma-se que existe interlocução quando, e somente quando, as disciplinas que se põem a dialogar, seja por um ato pessoal (em um artigo orientado pela transdisciplinariedade, por exemplo) ou coletivo (em um artigo coletivo escrito por autores de duas ou mais áreas do conhecimento, mas também numa mesa redonda ou ciclo de conferências etc), abdicam, cada qual, de sua pretensão à hegemonia discursiva e à apresentação da “palavra final”6, e se abraça a exigência da construção de uma narrativa construída pelo diálogo plural, cujo resultado é a presença, nesse relato, de todos os campos chamados à sua composição.
A interlocução, portanto, constitui-se numa exigência. Mas o que vem a ser uma exigência? Qual o seu estatuto epistemológico? Conforme Giorgio Agamben7,
Uma exigência nunca coincide com as categorias modais com as quais estamos familiarizados. O objeto da exigência não é nem necessário nem contingente, não é possível nem impossível. Pode-se dizer, entretanto, que uma coisa “exige” ou demanda (a) outra quando ocorre que, se a primeira coisa é, a outra também tem que ser, sem que, necessariamente, a primeira esteja logicamente implicada na segunda ou forçando-a a existir no âmbito dos fatos. Uma exigência é simplesmente algo além de toda necessidade e de toda possibilidade. É similar a uma promessa que somente pode ser cumprida por aquele que a recebe.
Se os tempos que hoje correm tendem a impedir o diálogo e a construção de alternativas às catástrofes que nos abatem, a interlocução entre disciplinas constitui-se, a todo rigor, numa exigência de nosso tempo, e que somente pode ser assumida por aquele que internaliza o cumprimento da promessa contida no ideal emancipatório concernente aos princípios que fundamentam o Direito Internacional dos Direitos Humanos e à Democracia e uma filosofia política de natureza crítica.
Disso não se segue, doutra banda, que a interlocução terá, como efeito concreto, a alteração da realidade. Por ser, ao mesmo tempo, uma postura e um procedimento, terá, necessariamente, aquela topologia que Michel Foucault tão bem descreveu em O que é a crítica? Crítica e Aufklärung, isto é, a exterioridade, uma vez que, tendo a pretensão de desempenhar o papel de polícia (criticar o poder e a verdade), não tem a capacidade de fazer a lei8.
Como já afirmado, o cumprimento dessa exigência de interlocução no presente trabalho se dará a partir do conceito agambeniano de paradigma.
Todos, de uma forma ou de outra, principalmente os que fazem das comunidades universitárias sua forma de vida, usam, correta ou incorretamente, o conceito de paradigma e suas variações nas mais diversas acepções epistemológicas possíveis. Paradigma, portanto, será ou um conceito epistemológico ou um chavão/muleta linguística em uso corrente na vida acadêmica ou mesmo fora.
Por que esse conceito é importante para o presente trabalho? Simplesmente porque Agamben define o seu trabalho intelectual essencialmente como arqueológico e paradigmático. Em 2006, numa entrevista dada a Flávia Costa, Agamben assim definiu o seu pensamento:
Meu método é arqueológico e paradigmático num sentido muito próximo ao de Foucault, mas não completamente coincidente com ele. Trata-se, diante das dicotomias que estruturam nossa cultura, de ir além das exceções que as têm produzido, porém não para encontrar um estado cronologicamente originário, mas, ao contrário, para poder compreender a situação na qual nos encontramos. A arqueologia é, nesse sentido, a única via de acesso ao presente. Porém, superar a lógica binária significa, sobretudo, ser capaz de transformar cada vez mais as dicotomias em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de demarcação. Lógica do campo contra lógica da substância. Significa, entre outras coisas, que entre A e B se dá um terceiro elemento que não pode ser, entretanto, um novo elemento homogêneo e similar aos anteriores: ele não é outra coisa que a neutralização e a transformação dos dois primeiros. Significa, enfim, trabalhar por paradigmas, neutralizando a falsa dicotomia entre universal e particular. Um paradigma (o termo em grego quer dizer simplesmente “exemplo”) é um fenômeno particular que, enquanto tal, vale por todos os casos do mesmo gênero e adquire assim a capacidade de construir um conjunto problemático mais vasto. Nesse sentido, o panóptico em Foucault e o duplo corpo do rei em Kantorowicz são paradigmas que abrem um novo horizonte para a investigação histórica, subtraindo-a aos contextos metonímicos cronológicos (França, o século XVIII). No mesmo sentido, em meu trabalho, lancei mão constantemente dos paradigmas: o homo sacer não é somente uma figura obscura do direito romano arcaico, senão também a cifra para compreender a biopolítica contemporânea. O mesmo pode ser dito do “muçulmano” em Auschwitz e do estado de exceção9.
Esse conceito foi mais bem desenvolvido por Agamben em seu Signatura Rerum: Sul Metodo10. Assim, segundo ele, o seu pensamento é paradigmático, e não histórico, sendo essa afirmação importante por dois motivos: a uma, para defenestrar os críticos que pretendem ver em seu trabalho o mesmo défice que se tentou apontar no de Foucault - o de que ele fazia história, e não filosofia -, e a duas, para se compreender corretamente o que ele pretende descrever em termos filosóficos quando se utiliza de conceitos como homo sacer, estado de exceção, biopolítica, teologia econômica, teologia política etc, e que estão presentes em sua obra.
Para Agamben, o paradigma é compreendido desde a obra de Aristóteles, que em sua Retórica, afirmou que o exemplo - que ele utiliza como sinônimo de paradigma - não concerne à parte em relação ao todo, nem ao todo em relação à parte, mas sim que este atine a uma relação da parte consigo mesma. O exemplo, por isso, não se move do particular ao geral - indução -, nem do geral para o particular - dedução -, mas sim que o exemplo se move do particular para o particular, manifestando a sua própria singularidade.
Nesta relação da parte consigo mesma ocorre uma neutralização das substâncias, surgindo um novo elemento - o exemplo -, que em sua singularidade não gera uma oposição - ou A ou B -, mas sim uma tensão bipolar - entre A e B surge um tercium genus antes oculto, um novo elemento -, e com ela, um novo contexto ontológico capaz de explicar ambas as polaridades11.
Um exemplo significativo em sua obra é o homo sacer. O homo sacer era uma figura pertencente ao direito romano arcaico que identificava uma pessoa condenada pela sociedade por ter praticado um determinado ilícito, sendo, em razão disso, posta numa zona de gris entre o direito divino e o direito humano, tornando-se, pois, em uma vida insacrificável, porém matável. O que isto quer significar? Que essa pessoa, em razão da sua condenação (sacer esto), somente pertencia à esfera do direito humano na medida em que qualquer um que a encontrasse poderia matá-la, sem com isso atrair a imputabilidade jurídico-penal pela prática do homicídio. Era, portanto, matável. De outro giro, o homo sacer não poderia ser oferecido em oblação aos deuses, porquanto excluído da esfera do direito divino. Era, portanto, insacrificável12.
Se o homo sacer é um paradigma, é porque desde o mesmo se pode levantar três hipóteses bastante interessantes acerca da relação entre vida, poder e direito13:
a) que o princípio da sacralidade da vida humana, reitor da política moderna, deve ser interpretado como o ponto de indecidibilidade em que a vida humana, embora sacra e inviolável por força das normas jurídicas, se torna matável sempre que se instaura o estado de exceção, entendido, em sentido político, como a suspensão voluntária da vigência do ordenamento jurídico;
b) como primeira consequência, a principal característica da política moderna é a de gerar homines sacri, já que aquela se funda, desde sempre sobre a vida, como seja, é desde sempre uma biopolítica. Com efeito, essa teoria da filosofia política contemporânea se caracteriza pela crítica que faz ao fato de que a gestão da vida biológica pelo poder estatal implica no estabelecimento de políticas sanitaristas e em práticas eugenistas, bem como na adoção de políticas humanitárias, isto é, em atos de gestão política que têm por finalidade a depuração das doenças e pestes que possam criar riscos à população, como também, na adoção de políticas que, pelo exercício da violência ou mesmo da guerra, pretendem salvar a vida humana. O que qualifica, neste sentido, a biopolítica é que a vida humana, nas suas manifestações mais comezinhas - nascimento, morte, trabalho, sexualidade, saúde etc - se torna em objeto de controle do poder político, podendo, em muitos casos, converter-se numa tanatopolítica, valer dizer, numa gestão econômica da morte daqueles sobre quem se decide serem portadores de “uma vida indigna de ser vivida”; e
c) como segunda consequência, como o estado de exceção se tem tornado a regra no regime político ocidental, todos os homens são passíveis de se tornarem homines sacri, seja na figura do refugiado, do além-comatoso, dos favelados que são os alvos preferenciais das políticas de segurança pública ou pelos assistidos de ajuda humanitária, cujas vidas, embora sacras e invioláveis, são matáveis sempre que uma decisão jurídico-política os declarem portadores de uma vida que não merece ser vivida.
Para o presente trabalho será exemplar, isto é, paradigmática, a obra de Banksy abaixo reproduzida, e que foi extraída da página que o artista mantém no Instagram, e que será mais bem analisada e discutida no tópico que segue.
3. BANKSY E O DO DIREITO INTERNACIONAL
De Banksy, mesmo, pouco se sabe além daquilo que ele tenha revelado de si14, por exemplo, no documentário “Exit Throught the Gift Shop” - que venceu nessa categoria o Oscar de 2011, competindo, dentre outros, com o filme sobre a obra do artista plástico brasileiro Vik Muniz, Lixo Extraordinário -, uma vez que ele decidiu adotar a persona que dá visibilidade pública à sua obra, ocultando, nesse sentido, a própria. Com isso, a discussão acerca da (real) identidade de Banksy - se uma pessoa ou um grupo de artistas, por exemplo - se tornou em um fenômeno cultural par excellence, espocando cá e lá matérias que tentam identificar o indivíduo por trás da persona15. A prática, como se sabe, não é estranha ao mundo das artes em geral, bastando lembrar, nesse sentido, que ela foi adotada pelo grupo de hard rock Kiss durante muito tempo, isto é, desde 1973, com a formação da banda e o lançamento do primeiro álbum em 1974 -Kiss -, até 1983, quando foi divulgado o seu décimo primeiro álbum -Lick it up -, no qual eles apareceram na capa do disco sem as famosas máscaras.
Interessante lembrar que a ocultação da identidade do artista e a adoção de uma persona que lhe dá visibilidade pode ser remontada à origem do teatro grego e à civitas romana.
Com efeito, a palavra grega que dá origem à expressão pessoa na conotação ora estudada -πρόσωπον[prósopon; no plural πρόσωπα, prosopa]; a outra é ύπόστασιϛ[hypostasis], sendo que esta última geralmente é empregada no contexto da ontologia ocidental para identificar a substância, o próprio ser - originou-se, segundo Boécio,
daquelas pessoas que nas comédias e tragédias representavam homens; pois pessoa vem de “apresentar-se”, porque devido à concavidade, necessariamente se fazia mais intenso o som. Os gregos chamaram a estas pessoas prosopa, posto que punham sobre a face e os olhos para ocultar o rosto16.
Já no contexto romano, o conceito de prosopa-máscara passou a identificar a própria identidade do cidadão romano, uma vez que
Persona significa na origem “máscara” e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social. Assim, em Roma, cada indivíduo era identificado por um nome que exprimia a sua pertença a uma gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua vez, definida pela máscara de cera do antepassado que cada família patrícia guardava no átrio de sua casa. Daqui a fazer persona a “personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos ritos da vida social, a distância é curta e persona acabou por significar a capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre. Quanto ao escravo, do mesmo modo que não tinha nem antepassados, nem máscara, nem nome, não podia também ter uma “pessoa”, uma capacidade jurídica (servus non habet pernsonam)17 (destaque no original).
Importante lembrar que a obra de Banksy não pode ser circunscrita somente à streetart. Nada obstante tenha sido esta forma artística aquela que lhe deu visibilidade desde sua (possível) cidade-natal, Bristol18, hoje ela se dispersa em diversas formas, desde a vídeo instalação, passando pela performance, chegando a outras que se situam no limiar entre todas as outras, como, por exemplo, o parque “Dismaland” (a Disneylândia para anarquistas)19, e o denominado “hotel com a pior vista do mundo”, o “Walled off Hotel”, que foi por ele aberto com o apoio de outros artistas na cidade de Belém, na Cisjordânia, em frente ao muro construído por Israel na zona ocupada da Palestina20, muro que foi considerado como uma violação ao Direito Internacional pela Corte Internacional de Justiça no Parecer Consultivo “Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestine Territory”21.
Outro ponto interessante de sua produção artística concerne ao fato de que em recente pesquisa junto à opinião pública inglesa acerca da obra de arte que os súditos da rainha mais apreciavam, o grafite/quadro “The Girl with Baloon” de Banksy foi a escolhida22, à frente, por exemplo, dos clássicos pintores ingleses - e altamente rentáveis - J.M.W. Turner, Antony Gormley e John Constable23 -, o que levou a crítica especializada a, em muitos casos, tachar à opinião pública de ignorante e estúpida24.
Essa dissociação entre opinião pública e crítica especializada, mais do que demonstrar a inexistência de uma ponte entre os dois âmbitos de apreciação estética, evidencia o próprio auto encerramento da crítica e do mundo da arte num círculo pouco afeito, se não completamente ignorado e ignorante à externalidade na qual vive, como se, entre os dois polos, existisse, quando menos, uma aporia, se não uma anfibologia, isto é, uma impossibilidade de predicação e compreensão que os impede de se comunicar e se compreender.
Feitas estas ligeiras considerações biobibliográficas de Banksy, passemos a analisar a obra que escolhemos para firmar a interlocução entre Direito Internacional e streetart.
4. SI VIS PACEM PARA BELLUM
a paz continua a ser, como sempre foi, uma trégua entre duas guerras25.
A obra de Banksy que escolhemos foi aquela inicialmente relatada no presente trabalho, e que se encontra abaixo reproduzida.
Como o sabe qualquer professor da disciplina, um dos primeiros problemas que é preciso ser enfrentado na compreensão dessa imagem desde uma interlocução com o Direito Internacional é a necessária distinção entre conflito e guerra, internacional ou não.
Com efeito, ao ler-se o disposto nos artigos 1.1 e 2.3 da Carta das Nações Unidas, o que o Sistema da Carta busca assegurar não é a inexistência de conflitos, conceito que pode ser interpretado desde aquele que é dado pela ciência processual - pretensão resistida de interesse, no caso, nacionais ou internacionais entre Estados -, mas a guerra, entendida em sentido jurídico-internacional, conforme Oppenheim, como a contenda entre dois ou mais Estados por meio de suas forças armadas, com o propósito de sobrepor um ao outro e impor condições de paz aprazíveis ao vitorioso”26. Com efeito, segundo já afirmara Rousseau,
Não é, pois, a guerra uma relação de homem para homem, mas uma relação de Estado para Estado, na qual os particulares apenas acidentalmente são inimigos, não na qualidade de homens, nem mesmo como cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado não pode ter como inimigo senão outro Estado, nunca homens, entendido que entre coisas de naturezas diversas é impossível fixar uma verdadeira relação27.
Hans Kelsen, em seus comentários à Carta das Nações Unidas, assim se manifestou sobre esta distinção:
The peace maintenance or restoration of which is a purpose of the United Nations is characterised (sic) as international peace. In ordinary language, international peace is a condition of absence of force in the relations among the states… Hence the Principles formulated as obligations of Members: to settle international disputes by peaceful means and to refrain from threat or use of the force, apply also to non-members states28.
Em síntese, no Sistema da Carta objetiva-se a manutenção da paz internacional - entendida como a inexistência de conflitos armados entre Estados, obrigação que se estende inclusive para aqueles Estados que não são membros das Nações Unidas (artigo 2, 5 e 6 da Carta) -, mas não os conflitos de interesses. Se estes existirem, constitui-se em obrigação internacional dos Estados buscarem a solução do diferendo por formas pacíficas (artigo 2, 3 da Carta), que sendo uma obrigação de comportamento, abre um amplíssimo espaço para que eles escolham o meio de se obter a solução do conflito, conforme expresso no princípio de livre escolha dos meios (Declaração de Manila sobre a Solução Pacífica de Conflitos Internacionais, Resolução 37/10 da Assembleia Geral das Nações Unidas)29.
Contextualizada, no entanto, a imagem de Banksy, é bastante claro que ele não se preocupou em retratar o problema das diversas guerras que espocaram desde a aprovação da Carta das Nações Unidas em 1945, mas os fracassos dos acordos de paz entre Israel e a Palestina, aos quais se poderia jungir as diversas Resoluções das Nações Unidas que busca(ra)m impor limites vis-à-vis aos contendores, desde a proibição da ampliação de novos assentamentos judeus em terras palestinas aos bombardeios em terras israelenses promovidos pelo Hamas, passando, por obviedade, pela adoção, por Israel, de uma genuína política de Apartheid em relação aos árabes e palestinos que vivem em Israel e na Cisjordânia, que se acentuou, da perspectiva constitucional, com a aprovação da Lei do Estado-Nação que declara Israel Estado judeu30, e a recente declaração unilateral de que ele pretende exercer soberania sobre as Colinas de Golã, até o momento reconhecida somente pelos Estados Unidos.
Entretanto, a questão mais interessante da imagem é o fato de ela expor, imageticamente, um conhecido princípio das relações internacionais que pode ser sintetizado na sentença que Gerald Flavius Vegetius Renatus cunhou em seu Epitoma Rei Militaris, segundo a qual “gitur qui desiderat pacem praeparet bellum;”31, popularmente conhecida “si vis pace para bellum”: se queres a paz, prepara-te para a guerra.
Conforme demonstrou Christopher Allmand em seu The De Re Militari of Vegetius. The reception, transmission and legacy of a roman text in the middle ages, a obra de Vegetius se constituiu numa das principais referências da polemologia e de estratégia militar durante largos séculos, tendo influenciado a obra de autores tão importantes como John de Salisbury, Alfonso X e suas Siete Partidas, Jean Juvénal e Maquiavel, mormente pelo fato de este autor ter posto a relação guerra-paz não numa perspectiva transcendental tão comum ao pensamento medieval, mas realista, uma vez que o ponto central de sua concepção polemológica funda-se sobre o conceito de prudentia, pois o estar preparado para a guerra “involved the provision of adequate arms, and in particular armour, and proper training in the use of both, as well as the creation of a psychological background favourable to those about to go into battle ”32. Mas não somente a preparação material, como também a de natureza psicológica e de formação e treinamento contínuo dos soldados, uma vez que Vegetius defendeu consistentemente a importância da formação moral das tropas,
emphasising that the state of mind of those actively participating in war could be a crucial factor in deciding the outcome of events. Fear was one such factor to which Vegetius made reference, directly or indirectly, on several occasions. Men, he argued, were not naturally brave, but might become so with training, as weapons properly used helped to inspire confidence. The part to be played by morale was something which Vegetius understood very well. More than once he underlined the need for every commander to address his men before battle, a practical step to encourage confidence in their ability to defeat the enemy. Over the centuries the leader’s stirring address became an essential part of any description of a battle about to take place33.
Essa concepção polemológica parece, em muitos sentidos, distante do pensamento contemporâneo que pretendeu, pelo menos desde o entre guerras, proscrever a guerra como meio de solução de controvérsias internacionais34, tendo mesmo, logo após o término da Segunda Guerra, erigido o sistema internacional da Carta, cuja meta mais ambiciosa é aquela que se encontra inscrita nas palavras iniciais do preâmbulo: “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade”.
Com efeito, conforme afirmado por Prosper Weil, “La Charte des Nations Unies substitué au “modéle de Westphalie”, caractérisé par la force comme principale source de légitimité, le “modéle de la Charte” qui refuse toute légitimité au recours à la force”35, pelo que o jus ad bellum restou convertido no jus contra bellum e no jus in bellum na forma da legítima defesa, individual, mas principalmente coletiva36.
Que o sistema da Carta tenha abolido a legitimidade da guerra como forma de solução de controvérsias internacionais não implica em afirmar-se, no mesmo passo, que os Estados tenham renunciado ou devam renunciar à máxima de Vegetibus, e não devam se preparar para a guerra, caso ela venha a espocar há qualquer momento.
Tanto isso se constitui num truísmo das relações internacionais em qualquer época, que a própria Carta da Nações Unidas, em seu capítulo VII, institui tanto a legitimidade da legítima defesa individual em face de uma agressão armada (artigo 51)37, uma vez que, da perspectiva tanto do Direito Internacional como do Direito Penal Internacional, a agressão armada é qualificada como espécie de crime internacional próprio (artigo 5º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional), ensejando a persecução penal internacional direta pelos tribunais penais internacionais, bem como a imputação de responsabilidade internacional pelo cometimento de ato ilícito internacional excepcionalmente grave (exceptionally serious wronful act), como também o Conselho de Segurança, na qualidade de garante da segurança e da paz internacionais, pode adotar todas as medidas necessárias para obrigar a um Estado que tenha praticado uma agressão internacional a cessá-la, inclusive mediante a intervenção armada internacional, para a qual os Estados membro deverão prestar colaboração, bem como acatar as resoluções de natureza substantiva proferidas pelo órgão (artigos 45-50 da Carta).
Royo Villanova, em obra precursora dos estudos entre literatura e Direito Internacional - Cervantes e o Direito das Gentes, de 1907, assim asseverou este truísmo:
Entretanto, há muitos que estranham quando se afirma que a finalidade das armas é a paz (e Conferência da Paz se chamou àquela que se reuniu na Haia com o frustrado propósito do desarmamento) e, no entanto, D. Quixote afirma, no referido discurso, que “a finalidade das armas é a paz, que é o maior bem que os homens possam desejar nessa vida”. Assim traduzia D. Quixote o célebre apotegma si vis pacem para bellum cada vez mais comprovado pela triste e reiterada experiência dos povos. A causa da guerra não fundamenta tanto na força dos poderosos como na fraqueza dos débeis. Se Espanha tivesse conhecido sua debilidade ou tivesse se inteirado da fortaleza dos ianques, certamente que não teria ido à guerra. Se Rússia, ao mesmo tempo em que rogava a Deus pela paz na generosa iniciativa de Nicolau II, continuasse a se preparar (no original, rogando à Dios por la paz ; hubiesse seguido dando al mazo) de provisões e armamentos, não teria o Japão se atrevido a perturbar a paz dos Czares. Isso significa as alianças na Europa conforme a afirmação pacífica de Soberanos e Chanceleres.
Essa acumulação de forças em extraordinários armamentos são uma garantia da paz pela inquietude que assalta os ânimos dos estadistas face à ideia de turbá-la, rompendo hostilidades cujo começo é sabido, mas cujas consequências ninguém poderia calcular. Dize-o bem D. Quixote: “a finalidade das armas é a paz”38.
Para Royo Villanova, devia a Rússia, enquanto rogava a Deus pela paz, “hubiesse seguido dando al mazo” pois, para ficarmos em mais expressão cervantina, em matéria de defesa nacional, “tanto se pierde por carta de más como por carta de menos”, sendo esse princípio político uma exigência ainda persistente nas relações internacionais entre os Estados, nada obstante todo o rechaço - devido e necessário - à guerra.
CONCLUSÃO, OU DO ABANDONO
A própria natureza do presente escrito - mais um ensaio que um artigo científico - afasta(ria) a exigência de uma “conclusão”, pelo menos aquela definida pela metodologia na forma da lógica da pesquisa científica - problema/hipótese - pesquisa - resultado = conclusão. Talvez fosse possível aplicar, no presente caso, a lógica agambeniana do abandono, por ele definida no penúltimo volume da série Homo Sacer39.
No entanto, ante a prevalência dos casmurros/apolíneos na comunidade científica sobre os dionisíacos, procurar-se-á nas linhas abaixo sintetizar uma espécie de conclusão, assim consignada:
1. A interlocução entre saberes e o método transdisciplinar é uma exigência contemporânea. Enquanto exigência, a única possibilidade de sair do âmbito da potência de não para a potência de sim, e com isso fazer-se ato, é se assumir a promessa de defesa renhida, consistente e permanente dos princípios fundamentais da comunidade internacional, sintetizadas, ao modo kantiano, no conceito de dignidade humana, isto é; quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade40.
2. A paz que se busca assegurar pelo Direito Internacional contemporâneo é aquela caracterizada pela ausência de um conflito armado entre dois os mais Estados. Nada no sistema da Carta ilide ou infirma a existência de um conflito de interesses entre os Estados. As principais exigências, caso eles surjam, são que: a) seja solucionado de forma pacífica, e b) que os Estados se abstenham do uso da força ou de ameaça como forma de compelir à contraparte à solução do conflito. No entanto, nesse âmbito, aos Estados se assegura uma ampla discricionariedade internacional.
3. Nesse sentido, como tem sido indicado por Pastor Ridruejo, a característica mais destacada da sociedade internacional contemporânea é a de se encontrar numa fase de transição de uma sociedade de justaposição - modelo westfaliano de Estados independentes -, para uma sociedade de cooperação - modelo da Carta -, em que, ao lado dos interesses particulares dos Estados, passa-se a ter um maior compartilhamento de interesses e valores universais e/ou comuns que devem ser protegidos não pelo Estado, mas pelos Estados a partir de um regime de cooperação que tem na juridicização (Direitos Internacionais Especiais), na institucionalização (constituição de Organizações Internacionais e/ou regimes internacionais) e na jurisdicionalização (sistemas judiciais ou quase-judiciais de soluções de controvérsias) as suas marcas mais significativas41. Entretanto, as conhecidas deficiências do Direito Internacional, sinteticamente alocadas por este autor nas expressões “carências institucionais” e “politização alargada”42, somente poderão ser mitigadas não com a infirmação das jurisdições nacionais (rectius: soberania), mas com a exigência de atuação concreta e institucionalmente adequada dos Estados na defesa dos valores e interesses comuns da humanidade.
4. Até que se opere aquela transição acima indicada, os Estados continuarão sendo os principais atores internacionais, seguindo, pois, desde uma perspectiva do realismo político, a máxima de Vegetibus.
5. A unir as duas concepções, ter-se como guia a lição que Pastor Ridruejo consignou: para ser-se idealista é preciso, antes de tudo, ser-se realista, isto é, sustentar a necessidade de aperfeiçoamento dessas instituições com pés firmes na realidade das relações internacionais tal como elas efetivamente se concretizam e de conformidade com o Direito Internacional posto43, e não em ideais (ainda) inatingíveis e moralizações que tendem a excluir a própria esfera política de que se revestem as relações entre Estados.