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Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión

Print version ISSN 2307-5163On-line version ISSN 2304-7887

Rev. secr. Trib. perm. revis. vol.7 no.13 Asunción Mar. 2019

https://doi.org/10.16890/rstpr.a7.n13.p213 

Artículo Original

DIREITO INTERNACIONAL ANTICORRUPÇÃO NO BRASIL

DERECHO INTERNACIONAL ANTICORRUPCIÓN EN BRASIL

INTERNATIONAL ANTICORRUPTION LAW IN BRAZIL

Denise Neves-Abade1 

1Procuradora Regional da República, Brasil.


Resumo

O presenta artigo visa analisar a formação, por meio da adoção de diversos tratados, do chamado “direito internacional anticorrupção”, destacando seu vínculo atual com a proteção de direitos humanos, bem como focando sua implementação interna no Brasil.

Palavras-chave: Corrupção; Direito Internacional; Implementação; Monitoramento; Ministério Público; Direitos Humanos

Resumen

El presente artículo pretende analizar la formación, a través de la adopción de diversos tratados, del llamado “derecho internacional anticorrupción”, destacando su vínculo actual con la protección de derechos humanos, así como enfocando su implementación interna en Brasil.

Palabras clave: Corrupción; Derecho Internacional; Implementación; Monitoreo; Ministerio Fiscal; Derechos Humanos

Abstract

The article aims to analyze the formation, through the adoption of several treaties, of the so-called “international anti-corruption law”, highlighting its current link with the protection of human rights, as well as focusing its internal implementation in Brazil.

Keywords: Corruption; International Law; Implementation; Monitoring; Public Prosecution Service; Human Rights

INTRODUÇÃO

O estudo do tema do combate à corrupção na atualidade não pode se restringir à análise dos diplomas normativos internos. Com efeito, nota-se, nas últimas décadas, que a atenção e o destaque do combate à corrupção na seara internacional têm-se expandido fortemente, centrado em quatro objetivos: prevenir, detectar, punir e eliminar a corrupção. Além disso, nos últimos anos, consolidou-se consistente vínculo da luta anticorrupção com a temática da proteção de direitos humanos.

A luta anticorrupção é objeto de tratados internacionais e abordado com especial atenção em órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) como também nos órgãos internacionais de proteção de direitos humanos, uma vez que o fenômeno da corrupção implica na ausência de efetividade na implementação de direitos sociais - que compõem os direitos humanos, bem como viola o direito difuso à boa governança.

Há uma dupla natureza do combate à corrupção: (i) é fruto do dever do Estado de proteger e implementar direitos, em especial os direitos sociais e (ii) é medida de preservação do direito à boa governança, também denominado direito a uma administração íntegra. Consolida-se o “direito internacional anticorrupção”, que abarca diplomas convencionais de diversos quilates (no plano global e regional), bem como normas de soft law, como declarações e resoluções não vinculantes.

Assim, o presente artigo propõe-se a analisar três modos de implementação da luta internacional contra a corrupção, com foco na situação brasileira.

O primeiro modo é por intermédio do uso de mecanismos internacionais de acompanhamento dos tratados (“follow-up mechanisms”), como os existentes na Convenção Interamericana contra a Corrupção e na Convenção da ONU contra a Corrupção (Convenção de Mérida) para (i) chamar a atenção das deficiências normativas e institucionais brasileiras do combate à corrupção e (ii) exigir continuamente do Estado brasileiro medidas que supram essas deficiências.

O segundo modo é feito pelo uso da normatividade internacional contra a corrupção para obter eficiente cooperação jurídica internacional na temática. Tópicos importantes como dever de extraditar os acusados ou julgá-los (aut dedere aut judicare) ou a inoponibilidade de sigilo bancário para persecução de crimes de corrupção são consequências do dever de cooperar estabelecidos nos tratados anticorrupção.

O terceiro modo consiste no apelo a mecanismos que compôem a vigilância internacional dos direitos humanos, que, nas últimas décadas têm se debruçado sobre o combate à corrupção como forma de promoção de direitos humanos.

Em conclusão, será demonstrado que os mecanismos de implementação do “direito internacional anticorrupção” são múltiplos e podem (i) detectar as deficiências (algumas delas camufladas pela ausência de dados sobre o combate à corrupção), (ii) identificar mudanças necessárias e (iii) cobrar investimentos nos órgãos de fiscalização e repressão à corrupção, forçando o Estado brasileiro a fazer mais do que simplesmente ratificar tratados.

O DIREITO INTERNACIONAL ANTICORRUPÇÃO: FUNDAMENTOS E INSTRUMENTOS

Em geral, a corrupção consiste no exercício indevido do poder público para o ganho privado ou, dito de outra forma, a corrupção é o abuso da autoridade pública para o benefício privado1. Parte-se da premissa do uso ilícito do poder estatal para benefício a indivíduo, gerando prejuízos diretos ou indiretos a todos os integrantes da sociedade.

A gênese do direito internacional anticorrupção está na detecção de práticas de concorrência desleal advindas de subornos pagos a funcionários públicos estrangeiros para obtenção de vantagem competitiva sobre empresas rivais, na década de 70 do século passado, devendo ser destacados os esforços, nesse sentido, da Securities and Exchange Commmisision, dos Estados Unidos da América. Nos primeiros anos daquela década, foi descoberto amplo esquema de corrupção de autoridades estrangeiras (na Holanda, Itália, Alemanha, Japão e Arábia Saudita) por parte da empresa estadunidense Lockheed, que, assim, obtinha vultosos contratos de aquisição de aeronaves militares2.

Em reação a esse escândalo, foi editado nos EUA,em 1977, o Foreign Corrupt Practices Act3, que motivou as primeiras investigações de corrupção - mesmo que transnacional, ou seja, ando realizada por agentes norte-americanos fora das fronteiras daquele país. O FCPA fomentou a inclusão do combate à corrupção transnacional na pauta das organizações internacionais, uma vez que sua eficiência dependeria da conjunção de esforços dos diversos Estados envolvidos por meio de compromissos internacionais.

A partir dos anos 90 do século passado, o combate à corrupção começa a se desvencilhar do conceito de ação contra a concorrência desleal para abraçar o enfoque de defesa dos direitos humanos internacionalmente protegidos, em especial o direito difuso à boa governança (good governance)4.

A gramática dos direitos humanos foi introduzida na temática, porque comprovou-se que a corrupção tem impacto negativo em face de diversos direitos essenciais.

Em primeiro lugar, a corrupção dificulta a existência de recursos a serem utilizados na concretização dos direitos sociais. Por sua vez, a corrupção atenta contra o fortalecimento da democracia, uma vez que, ao permitir que o processo de decisões governamentais seja influenciado ilegitimamente por grupos corruptores, corrói a confiança e transparência nas relações entre governantes e governados. Em terceiro lugar, a corrupção ameaça a igualdade, ao permitir tratamento desigual por motivo odioso (o pagamento da propina ao agente público). Por fim, a corrupção afeta o adequado funcionamento da administração pública, afetando o direito difusa a uma administração íntegra.

A importância de se vincular à luta anticorrupção à violação de direitos pode ser medida tanto na sua faceta preventiva quanto repressiva. No tocante à prevenção, a cultura de respeito a direitos humanos divulga o direito difuso à uma administração proba, o que auxilia a transformação dos atos de corrupção em uma conduta socialmente nociva, ao invés de ser considerada uma prática inevitável e socialmente suportada. A existência do chamado “jeitinho” (ou “jeito”) brasileiro demonstra, para Rosenn, determinada acomodação de grupos sociais com práticas de corrupção voltadas a promover comportamentos de não submissão à lei, o que, a longo prazo, constitui “´sérios obstáculos ao desenvolvimento”5.

O respeito ao direito à igualdade é vulnerado por atos de corrupção, uma vez que a influência ilícita dos agentes estatais por meio de atos de particulares gera tratamento assimétrico injustificado. A reafirmação da igualdade e do respeito da legalidade, previne a prática de atos de corrupção e facilita à repressão, estimulando testemunhos ou outras formas de colaboração para que sejam expostas práticas invariavelmente clandestinas.

Também do ponto de vista preventivo, o respeito a diversos direitos, como a liberdade de expressão, de associação ou mesmo de informação contribuem para revelar atos de corrupção, o que repercute, a longo prazo, na formação de uma cultura anticorrupção na sociedade. A existência de associações privadas voltadas à fiscalização de atos estatais ou mesmo uma imprensa livre e independente aumentam a probabilidade de descoberta das práticas ilícitas, desestimulando os potenciais perpetradores.

No tocante à repressão aos atos de corrupção, o vínculo com a proteção de direitos humanos auxilia a revelar o ganho social que advém da criação de mecanismos anticorrupção em uma determinada sociedade. Não somente incrementa-se a proteção de direitos sociais, mas também se impede o uso de atos de corrupção voltados à utilização de agentes públicos em atos de opressão, como se vê no uso de policiais corrompidos em esquadrões da morte ou milícias.

Nesse contexto contemporâneo é que surgiram as Convenções da Organização dos Estados Americanos (OEA) e das Nações Unidas contra a Corrupção, que serão estudadas abaixo.

A CONVENÇÃO SOBRE O COMBATE DA CORRUPÇÃO DE FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS ESTRANGEIROS EM TRANSAÇÕES COMERCIAIS INTERNACIONAIS (CONVENÇÃO DA OCDE)

Até os anos 70 do século passado, a corrupção era tratada como um assunto interno que não justificava intervenção internacional sistemática. A partir de então, o controle da corrupção passou a ser visto como um objetivo de política internacional - até porque o dinheiro e as ações dos grupos corruptores e corruptos transpassam as fronteiras e desafiam a jurisdição interna dos países6.

Não por acaso a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) organizou em 1984 sua primeira recomendação anticorrupção - Antibribery Recommendation- na qual solicitava empenho aos seus Estados membros na repressão de subornos e práticas de corrupção que favorecessem ilegalmente determinada empresa ou negócio. A solicitação foi reiterada em nova recomendação editada em 1996, em que o Conselho da OCDE conclamou a vedação de dedução tributária prevista nas leis internas - como uma espécie de “despesa operacional” - de propinas pagas pelas empresas em atividades no exterior.

Seguindo a tendência, surgiu então, como marco internacional no combate à Corrupção, a Convenção sobre corrupção de funcionários públicos em transações comerciais internacionais, elaborada pela OCDE e posta à assinatura e ratificação a qualquer Estado, seja membro ou não, da organização7. O Brasil ratificou a Convenção da OCDE em agosto de 2000, que foi incorporada ao Direito brasileiro por meio do Decreto n.o 3.678, de 30 de novembro de 2000.

Trata-se de importante e pioneiro instrumento para o combate à corrupção transnacional, porque voltada à coibição de atos de corrupção exercidos por companhias multinacionais operando em mercados estrangeiros. O enfoque dessa normativa internacional, contudo, é voltado precipuamente à proteção da livre concorrência.

De fato, a Convenção determina, logo em seu artigo 1º, que “cada parte deverá tomar todas as medidas necessárias ao estabelecimento de que, segundo suas leis, é delito criminal qualquer pessoa intencionalmente oferecer, prometer ou dar qualquer vantagem pecuniária indevida ou de outra natureza, seja diretamente ou por intermediários, a um funcionário público estrangeiro, para esse funcionário ou para terceiros, causando a ação ou a omissão do funcionário no desempenho de suas funções oficiais, com a finalidade de realizar ou dificultar transações ou obter outra vantagem ilícita na condução de negócios internacionais”. A preocupação da OCDE com a concorrência desleal que advém da corrupção é bastante óbvia a partir da definição do escopo do ato criminoso e seu necessário liame com interesses negociais.

Ao ratificar a convenção em 2000, o Brasil concordou em criminalizar a conduta de oferecer, prometer ou dar vantagem indevida a funcionário público estrangeiro no intuito de determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional. Por esse motivo, para cumprir com suas obrigações assumidas internacionalmente e adequar a legislação nacional aos compromissos assumidos na Convenção, foi aprovada a Lei 10.467, de 11 de junho de 2002, que acrescentou o Capítulo II-A ao Código Penal (“crimes praticados por particular contra a administração pública estrangeira”), tipificando a corrupção ativa em transação comercial internacional, o tráfico de influência em transação comercial internacional, a ocultação ou dissimulação de produtos de crime praticado por particular contra a administração pública estrangeira e, definindo, para efeitos penais, “funcionário público estrangeiro”.

CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA A CORRUPÇÃO (CONVENÇÃO DA OEA)

Em 29 de março de 1996, em Caracas, Venezuela, foi firmada, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) a Convenção Interamericana contra a Corrupção, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002 e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 4.410, de 7 de outubro de 2002 . Foi a primeira convenção anticorrupção genérica no Direito Internacional, anterior à Convenção da ONU sobre a matéria (vide abaixo).

Seus objetivos são amplos: prevenir, criminalizar e investigar casos de corrupção no setor público, além de estimular a cooperação jurídica internacional entre os Estados na temática8.

Já em seu preâmbulo, os Estados reconhecem que a corrupção - que também é um dos meios usados pelo crime organizado - “solapa a legitimidade das instituições públicas, atenta contra a sociedade, a ordem moral e justiça, assim como o desenvolvimento dos povos”. Explicitamente, menciona o fortalecimento da democracia pelo combate à impunidade dos agentes corruptos.

A Convenção da OEA estabelece que o trato com o bem público é regido pelo princípio da publicidade, eficiência e equidade (artigo III, 5). Ou seja, em qualquer caso de contratação de serviço, obra ou investimento público há de se inquirir sobre a eficiência do gasto público. Ainda, no caso do estabelecimento de tarifas ou preços públicos, deve ser tomada em consideração a equidade nas relações com o usuário, impedindo a fixação de tarifas abusivas. Não existe para a Convenção a disponibilidade do administrador público quanto ao manejo das verbas públicas. De fato, o gasto desnecessário ou supérfluo, a realização de projetos inúteis ou mesmo o tratamento negligente da coisa pública são condutas vedadas9.

A Convenção da OEA determina que são atos de corrupção a solicitação ou a aceitação, direta ou indiretamente, por um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou de outros benefícios comodádivas, favores, promessas ou vantagens para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade em troca da realização ou omissão de qualquer ato no exercício de suas funções públicas. Essa modalidade de corrupção ativa é, assim, expressamente vedada.

Além disso, também é considerado ato de corrupção a oferta ou outorga, direta ou indiretamente, a um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou de outros benefícios como dádivas,favores, promessas ou vantagens a esse funcionário público ou outra pessoa ou entidade em troca da realização ou omissão de qualquer ato no exercício de suas funções públicas. Nesse caso, a corrupção passiva é também condenada.

Finalmente é também ato de corrupção proibido a realização, por parte de um funcionário público ou pessoa que exerça funções públicas, de qualquer ato ou omissão no exercício de suas funções, a fim de obter ilicitamente benefícios para si mesmo ou para um terceiro. Também a Convenção proíbe o aproveitamento doloso e ocultação dos bens obtidos por atos já citados de corrupção.

Na síntese de Carvalho Ramos, são quatro condutas elencadas como atos de corrupção pela Convenção da OEA. A primeira relativa à solicitação ou aceitação de benefício para fazer ou não-fazer ato de ofício. A segunda conduta é daquele que oferta ou outorga vantagem ao funcionário fazer ou deixar de fazer ato de ofício. A terceira conduta refere-se a forma de peculato consistente na realização de ato ou na omissão para obtenção de vantagem ilícita. E finalmente, o aproveitamento ou ocultação do proveito desses atos10.

Enfatize-se que, de acordo com o artigo XII da Convenção da OEA, não há exigência que os atos de corrupção acima elencados produzam prejuízo patrimonial ao Estado. A lesividade, portanto, pode ser ocasionada pela tentativa de cometimento do ato ou mesmo, quando concretizada, pela ofensa ao patrimônio moral da entidade, que abarca o ideal de honestidade e moralidade da coisa pública.

Há importante mandado internacional de criminalização do chamado “enriquecimento ilícito”, que consiste, à luz da Convenção, em “aumento do patrimônio de um funcionário público que exceda de modo significativo sua renda legítima durante o exercício de suas funções e que não possa justificar razoavelmente” (art. IX). Além disso, cada Estado parte da Convenção deve proibir e punir o “suborno transnacional”, ou seja, o oferecimento ou outorga de vantagens a funcionário estrangeiro para obtenção de favores relacionados a uma transação de natureza econômica ou comercial (mandado internacional de criminalização similar ao da Convenção da OCDE, já estudada acima).

A Convenção dispõe que todos os atos mencionados devem ser considerados crimes sujeitos à extradição ou julgamento no próprio Estado (aut dedere aut judicare). Os Estados prometem ampla assistência mútua, bem como cooperação e intercâmbio de experiências voltados para identificação das práticas lesivas e dos bens obtidos ilicitamente.

Quanto ao sigilo bancário, a Convenção determina que o Estado requerido não poderá negar-se a proporcionar a assistência solicitada pelo Estado requerente alegando sigilo bancário. Em contrapartida, o Estado requerente compromete-se a não usar informações protegidas por sigilo bancário que receba para propósito algum que não o do processo que motivou a solicitação, salvo com autorização do Estado Parte requerido (princípio da especialidade).

A CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO (CONVENÇÃO DE MÉRIDA)

A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC ou UNCAC, na sigla em inglês), negociada por anos em Viena, foi subscrita inicialmente por cento e onze países na cidade de Mérida, México, entre 9 e 11 de dezembro de 2003. Composta por 71 artigos, é o maior diploma internacional vinculante que trata de corrupção. No Brasil, a Convenção das Nações Unidas contra Corrupção foi ratificada pelo Decreto Legislativo nº 348, de 18 de maio de 2005, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006. O texto é bastante amplo e inclui desde estabelecimento de ferramentas para prevenir condutas como sanções e formas de recuperação dos ativos desviados11. Certamente a Convenção de Mérida constitui verdadeiro marco na luta contra a corrupção.

Embora seja a mais extensa, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção não foi, como visto acima, a pioneira a tratar do tema: tem como precedentes outros instrumentos internacionais, como a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e a Convenção Interamericana contra a Corrupção , da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Está dividida em oito capítulos: (i) disposições gerais, (ii) medidas preventivas12, (iii) penalização e aplicação da lei; (iv) cooperação internacional; (v) recuperação de ativos; (vi) assistência técnica e intercâmbio de informações entre agências; (vii) mecanismos de aplicação da Convenção e (viii) disposições finais.

Com relação às medidas preventivas estabelecidas na Convenção de Mérida, destacam-se as obrigações impostas aos países relativas (a) à afirmação e aplicação de políticas contra a corrupção, com estabelecimento de um órgão independente encarregado de aplicar tais políticas e promover práticas adequadas (artigos 5 e 6); (b) à garantia de plena vigência de princípios e critérios normativos de equidade, mérito, igualdade, eficiência e transparência na gestão pessoal do setor público (art. 7); (c) à criação e aplicação de códigos de conduta que, em conformidade com os princípios fundamentais do ordenamento interno, promovam a integridade, honestidade e responsabilidade entre os funcionários públicos (art. 8); (d) ao estabelecimento de sistemas apropriados de contratação pública, baseados na transparência e adoção de critérios objetivos (art. 9.1); (e) à promoção de transparência na gestão da Fazenda Pública (art. 9.2); (f) à garantia de acesso à informação púlbica e simplificação de procedimentos administrativos (art. 10); (g) à independência e integridade do Poder Judicial e do Ministério Público (art. 11) ; (h) à prevenção da corrupção e melhorias nas normas contábeis e de auditoria no setor privado e (i) à determinação de sanções civis, administrativas ou penais eficazes, proporcionais e dissuasivas no caso de descumprimento dessas medidas (art. 12.1). O texto determina ainda que os países signatários estimulem a participação ativa de pessoas e grupos da sociedade civil e organizações não-governamentais na prevenção e luta contra a corrupção (art. 13) e estabeleçam um amplo regime interno de regulamentação e supervisão de bancos e instituições financeiras em geral a fim de prevenir e detectar a lavagem de dinheiro (art. 14).

Com relação à matéria criminal, a Convenção de Mérida estabelece mandados internacionais de criminalização para que os Estados-parte tipifiquem penalmente: o suborno de funcionários públicos nacionais, estrangeiros e organizações internacionais públicas; malversação ou peculato, apropriação indébita ou outras formas de desvio de bens, tráfico de influência, abuso de função e enriquecimento ilícito de funcionários públicos, assim como suborno e peculato no setor privado; lavagem de dinheiro produto do delito, encobrimento do crime e obstrução à justiça. Impõe que os Estados-parte estabeleçam (i) responsabilidade penal, civil e administrativa das pessoas jurídicas; (ii) que nas modalidades delitivas mencionadas seja possível punir as diversas formas de participação e tentativa e (iii) que o conhecimento, intenção ou propósito que se requer como elemento de um crime tipificando observando-se a convenção possa ser inferido de circunstâncias fáticas objetivas.

Para assegurar a punição eficaz das condutas de corrupção, a Convenção obriga que cada Estado Parte estabeleça, no ordenamento jurídico interno, mecanismos apropriados para eliminar qualquer obstáculo que possa surgir como conseqüência da aplicação da legislação relativa ao sigilo bancário, para o caso de investigações penais de delitos de corrupção ou a ela relacionados (artigo 40).

Na mesma direção, o artigo 52 da Convenção de Mérida impõe aos Estados que adotem “medidas que sejam necessárias, em conformidade com sua legislação interna, para exigir das instituições financeiras que funcionam em seu território que verifiquem a identidade dos clientes, adotem medidas razoáveis para determinar a identidade dos beneficiários finais dosfundos depositados em contas vultosas, e intensifiquem seu escrutínio detoda conta solicitada ou mantida no ou pelo nome de pessoas que desempenhem ou tenham desempenhado funções públicas eminentes e de seusfamiliares e estreitos colaboradores”. De fato, não há como deixar de observar que para a manutenção da corrupção o secretismo é fundamental: os criminosos corruptos necessitam esconder o resultado de suas condutas ilícitas, passando pelo mecanismo de lavagem de dinheiro. Assim, normas rígidas de sigilo bancário propiciam ambiente que incentiva a corrupção e a consequente lavagem de ativos.13

Portanto, há repercussões significativas da Convenção de Mérida no campo criminal. Primeiramente, a Convenção exige que os países disponham de diferentes tipos de crime referentes a atos de corrupção, caso isso já não esteja previsto pelas leis nacionais. A Convenção é tida como inovadora, pois além de exigir a criminalização das chamadas “formas básicas de corrupção”, como suborno e desvio de fundos públicos, também almeja a criminalização de figuras novas, como a do tráfico de influência, proteção e cobertura de atos de corrupção, obstrução da justiça, lavagem de dinheiro e legalização de ativos ilícitos obtidos por meio de corrupção. A Convenção ainda incursiona pela corrupção no setor privado. Suas estipulações concernentes a tipificação de crimes são mandados internacionais de criminalização inovadores e que obrigam os Estados a legislar criminalmente.

No campo processual penal, os Estados partes anuíram em estabelecer marcos internacionais de cooperação, em todos os aspectos do combate à corrupção, o que gerou normas sobre a prevenção, investigação e punição dos criminosos. Para tanto, houve previsão de cooperação jurídica internacional e mecanismos de coleta e transferência de provas que poderão ser usadas em julgamentos em outros países, bem como previsão de extradição dos responsáveis. Há também o dever de adotar medidas que facilitem rastrear, congelar, apreender e confiscar os rendimentos da corrupção.

A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção também inova ao prever a obrigações dos Estados de continuamente refletir sobre a efetividade das medidas anticorrupção adotadas. Nesse sentido, o Brasil comprometeu-se, por exemplo, a avaliar periodicamente os instrumentos jurídicos a fim de determinar se são adequados para combater a corrupção (art. 5º).

A BUSCA DA IMPLEMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL ANTICORRUPÇÃO

A cooperação jurídica internacional contra a corrupção

Tratando a corrupção como fenômeno transnacional, evidentemente os instrumentos conferem especial destaque aos instrumentos de cooperação jurídica internacional.

A cooperação jurídica internacional consiste no conjunto de medidas e mecanismos pelos quais órgãos competentes dos Estados solicitam e prestam auxílio recíproco para realizar, em seu território, atos pré-processuais ou processuais que interessem à jurisdição estrangeira. Seu escopo primário é concretizar o direito de acesso à justiça penal. 14

Duas das principais e mais tradicionais espécies cooperacionais na esfera criminal são a extradição (espécie da cooperação jurídica internacional em matéria penal que visa a entrega de indivíduo para determinado Estado solicitante, para fins de submissão a processo penal ou à execução de pena criminal)15e a assistência jurídica internacional (conjunto de atos necessários para instituir ou facilitar a persecução de uma infração criminal, como envio de documentos ou colheita de provas)16.

A Convenção Interamericana, ao prever a cooperação jurídica internacional para os casos de corrupção, expressamente determina que, para melhor eficácia na repressão, que todos os atos ilícitos mencionados na Convenção devem ser considerados crimes sujeitos à extradição ou julgamento no próprio Estado (“aut dedere aut judicare”17). Os Estados prometem ampla assistência recíproca, bem como cooperação e intercâmbio de experiências voltados para identificação das práticas lesivas e dos bens porventura auferidos pelos criminosos. Nega-se no texto da convenção a hipótese de uso do sigilo bancário para a negativa de cooperação entre os Estados.

Na Convenção Interamericana contra a Corrupção, ainda, impõe-se que tanto para os casos de extradição como para os de assistência jurídica “o fato de os bens provenientes do ato de corrupção terem sido destinados a finalidades políticas ou a alegação de que um ato de corrupção foi cometido por motivações ou finalidades políticas não serão suficientes, por si sós, para considerá-lo como delito político ou como delito comum vinculado a um delito político” (art. XVII), em restrição à clássica exceção de delito político presentes nos antigos e mais tradicionais acordos e textos internacionais que abordam cooperação jurídica.

Já a Convenção da ONU sobre Corrupção, ao prever a assistência jurídica internacional, flexibiliza a exigência de dupla incriminação (embora estabeleça que os Estados Partes poderão negar-se a prestar assistência invocando a ausência de dupla incriminação), possibilitando ao Estado requerido, quando esteja em conformidade com os conceitos básicos de seu ordenamento jurídico, que preste assistência que não envolva medidas coercitivas.

Outra inovação com relação à cooperação jurídica está na Convenção de Mérida, que veda explicitamente a recusa de extraditar com alegação de que o delito envolve matéria fiscal.18 A vedação vai de encontro à tendência internacional de não mais permitir a recusa em cooperar com base nos delitos tributários, uma vez que acaba-se por acobertar outros delitos que podem estar encobertos pela cláusula, como crime organizado, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro etc.

A atuação do Ministério Público Federal

O Direito Internacional corre o risco de inefetividade pela ausência de mecanismos internacionais que assegurem a implementação doméstica séria e eficaz de suas normas. Isto porque, não raro, embora Estados ratifiquem tratados, os descumprem, alegando que os estão cumprindo, de acordo com a sua própria interpretação19. Com isso, o tratado (e suas obrigações) ficam esvaziadas, representando - no máximo -, um apelo retórico e um compromisso superficial do Estado. Os tratados tornam-se, assim, mais uma “carta de boas intenções” do que um ato internacional vinculante.

O melhor remédio para combater essa ausência de seriedade na implementação consiste na criação de órgãos internacionais que realizarão uma interpretação internacionalista compulsória do tratado, exigindo que o Estado desista de uma “interpretação nacionalista dos tratados” e passe a cumprir suas obrigações.

No caso das Convenções contra a corrupção analisadas acima (OCDE, OEA e da ONU), essa solução ideal não foi aceita pelos Estados. Entretanto, foram estabelecidos mecanismos de acompanhamento (“follow-up mechanisms”), pelos quais os Estados são avaliados por especialistas externos, recebem recomendações e são cobrados a cada nova rodada de acompanhamento. Wellington Saraiva concorda que “as convenções dependem da vontade política interna de cada signatário” e observa que a implementação das normativas também “pode ser estimulada pelo próprio mecanismo de avaliação, ao longo do qual de modo a gerar algum embaraço a seus representantes, na técnica conhecida como ‘identificar e envergonhar’ (naming and shaming)”. Continua o autor salientando que até mesmo a atuação da imprensa e de organizações não governamentais, como a Transparência Internacional (que edita o ‘Índice de Percepção da Corrupção’ - Corruption Perception Index) podem provocar mudança da conduta dos Estados20.

No caso brasileiro, o Ministério Público Federal (MPF) é constitucionalmente legitimado para atuar nas causas baseadas em tratados internacionais, nos termos do art. 109, III CF, uma vez que o observância do Estado brasileiro à normativa dos tratados é identificada pelo texto da Constituição como interesse federal.21

Neste artigo, como exemplo de atuação, analisaremos o papel do MPF no mecanismo de acompanhamento das convenções contra corrupção e o modo pelo qual tal mecanismo pode servir para aprimorar e incrementar a eficiência do nosso combate nacional à corrupção. Para melhor ilustrar a temática, utilizaremos o mecanismo de acompanhamento da Convenção Interamericana como modelo.

O MONITORAMENTO INTERNACIONAL CONTRA A CORRUPÇÃO: ESTUDO DE CASO

Aspectos gerais

Foi somente em 2001 que os Estados partes da Convenção Interamericana contra a Corrupção (adotada em 1996) realizaram, em Buenos Aires, conferência voltada à criação de um mecanismo de acompanhamento das medidas internas de implementação do tratado22.

Tal conferência foi estimulada pela existência de mecanismo similar de monitoramento da Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, coordenado pelo “Group of States against Corruption”, conhecido pela sigla GRECO.

Após as discussões de Buenos Aires, a Assembleia Geral da OEA adotou a Resolução nº 1784, de 05 de junho, pela qual as deliberações consensadas em Buenos Aires foram aceitas23. Foi estabelcido o Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana contra a Corrupção - (Mechanism for Follow-Up of Implementation of The Inter-American Convention Against Corruption24). O Brasil assinou a Declaração sobre o Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana contra a Corrupção em 9 de agosto de 2002.

A redação final gerou o estabelecimento de um mecanismo de revisão pelos pares (peer review), baseado na reciprocidade e avaliações mútuas. Por esse sistema, cada Estado é avaliado pelos demais Estados e, em um momento subsequente, é avaliador (artigo 1º). Os princípios aprovados pela Resolução reforçam a tradição do Direito Internacional favorável ao Estado produzido no âmbito da OEA, com adoção explícita dos princípios do respeito à soberania e da não-intervenção. O artigo 3º do documento de Buenos Aires aprovado pela Resolução estabeleceu as seguintes características do monitoramento: (i) imparcialidade e objetividade do procedimento e das conclusões obtidas; (ii) igualdade de tratamento entre os Estados avaliados; (iii) não adoção de sanções; (iv) equilíbrio entre a confidencialidade e transparência e (v) condução das tratativas e deliberações sob o manto do consenso entre os Estados.25

O Mecanismo possui dois órgãos: a Conferência dos Estados partes, composta por representantes de todos os Estados, de cunho essencialmente diplomático e a Comissão de Peritos (Committee of Experts), composto por especialistas designados pelos Estados, responsável pela análise técnica e independente da implementação. A Conferência é o órgão intergovernamental típico, com forte componente político; a Comissão, ao contrário, apesar de depender da indicação dos Estados, deve se comportar como órgão neutro, avaliando os Estados com base exclusivamente técnica. O apoio administrativo ao Mecanismo é feito pela OEA.

Os especialistas escolhidos pelos Estados devem ser pessoas com reconhecida competência e experiência no combate à corrupção. A Comissão de Peritos é o coração do monitoramento da Convenção.

Possui duas atividades principais: produzir o relatório por país e o relatório anual geral. De acordo com as regras de procedimento do Comitê26, o processo de avaliação dos Estados é realizado, inicialmente, pela adoção de um questionário no qual a Comissão seleciona as disposições da Convenção cuja implementação será objeto de análise, procurando nelas incluir tanto medidas preventivas como outras disposições da Convenção. Todos os Estados serão avaliados em um período conhecido por “rodada”. Desde a adoção do monitoramente, já houve quatro rodadas.

A metodologia da avaliação é peça essencial para seu sucesso27. Em primeiro lugar, a metodologia será a mesma para todo Estado avaliado, para que sejam as condutas estatais comparáveis entre si: a igualdade de tratamento exige que o questionário seja idêntico e os procedimentos e parâmetros de avaliação também. Os relatórios finais sobre cada Estado contêm a mesma estrutura também.

No tocante à avaliação, a Comissão adota o princípio da equivalência funcional, pelo qual se reconhece que as medidas estatais de implementação obviamente não serão idênticas, mas podem ser equivalentes. A metodologia de avaliação também leva em consideração a necessidade de reforço da cooperação interestatal, voltada para a prevenção, detecção, punição e eliminação da corrupção.

Por isso, os critérios específicos de avaliação iniciam-se com a apreciação do nível de progresso na implementação da Convenção. Com base nesse critério, a Comissão deve avaliar o progresso feito (desde a última rodada) e identificar as áreas nas quais o Estado deve atentar para a próxima avaliação. O segundo critério específico consiste na aferição do quadro normativo existente. A Comissão deve avaliar se o Estado possui um quadro normativo adequado para a implementação da Convenção. O terceiro critério específico é a adequação do quadro normativo, pelo qual a Comissão verifica se as medidas de implementação do quadro normativo são adequadas para cumprir os quatro objetivos básicos da Convenção: prevenir, detectar, punir e eliminar a corrupção. Finalmente, o quarto critério específico de avaliação consiste na apuração dos resultados objetivos gerados pela aplicação do quadro normativo contra a corrupção.

A escolha do cronograma de Estado avaliado pode ser feito por adesão voluntária ou por critério objetivo. Obviamente, há impacto político interno (que pode ser apropriado pelo governo ou pela oposição) do monitoramente, o que pode gerar desejo de Estados de serem avaliados rapidamente ou ainda vontade de postergar a avaliação para o final da rodada. Selecionado o Estado avaliado, é designado um subgrupo de peritos (não podendo ser composto por perito da nacionalidade do Estado avaliado, naturalmente) para realizar a avaliação. Inicialmente, a avaliação exige que o Estado avaliado responda ao questionário.

No caso do Brasil, como é uma avaliação internacional, compete à Chefia do Estado indicar o coordenador nacional - atualmente, a Controladoria-Geral da União - que responderá ao questionário e apresentará os documentos pedidos. É possível ainda uma visita in loco do subgrupo de peritos, que pode entrevistar os agentes públicos e coletar mais dados.

Quanto à sociedade civil, o regulamento da Comissão de Peritos prevê que entes da sociedade civil podem apresentar documentos e ainda, a critério dos peritos, serem ouvidos sobre a implementação da Convenção no período.

Ao final, é elaborado um relatório preliminar que é submetido ao Estado avaliado, para seus comentários. É prevista inclusive uma reunião entre o Estado avaliado e os peritos avaliadores, para que se chegue a uma versão consensual do relatório de avaliação. Esse relatório será submetido à aprovação, por consenso, no plenário da Comissão. O plenário da Comissão poderá introduzir nesse relatório preliminar as mudanças específicas que julgar necessárias, formular conclusões e fazer recomendações pertinentes. A aprovação é por consenso, não participando da votação o perito do Estado avaliado.

O relatório, aprovado, tem força de mera recomendação. Porém, na rodada seguinte, o questionário exige que o Estado avaliado retrate o que foi realmente realizado e justifique eventual dificuldade ou inércia.

Os desafios do monitoramento internacional contra a corrupção

Antes de expormos as possibilidades de atuação do Ministério Público Federal (MPF) no monitoramento internacional da convenção interamericana contra a corrupção, cabe apontar os riscos e desafios desse mecanismo.

Em primeiro lugar, o Mecanismo de Acompanhamento estudado acima é espaço intergovernamental, que atua no sensível tema da corrupção em cada um dos Estados partes. É notório que, por definição, a corrupção atinge esferas do poder público (cooptadas para os ganhos privados - dos próprios governantes ou do poder econômico associado), o que faz que seu combate possa ser dificultoso em diversos países, tendo como adversário parte dos agentes públicos nacionais.

Por isso, o primeiro risco do Mecanismo é que ele se concentre no acompanhamento de medidas legislativas nacionais, sem maior preocupação sobre o enforcement ou na medição do impacto real (número de condenações, por exemplo) dessas medidas. O Mecanismo, lembrando a máxima de Tomasi di Lampedusa no clássico “Il Gattopardo”28, serviria para mostrar mudanças, mantendo tudo - a corrupção - como sempre foi... A dificuldade de vários países em apresentar resultados e estatísticas confiáveis sobre o combate à corrupção nos mais diversos níveis da organização de um Estado - municipal, estadual e federal - mostra o desafio ao mecanismo.

O segundo risco é a adoção de recomendações do mesmo naipe, ou seja, de cunho formal ou normativo, sem exigir que os Estados avaliados mostrem, na rodada seguinte, os resultados efetivos do combate à corrupção.

Por isso, a participação do MPF no acompanhamento da implementação das convenções contra a corrupção tem dupla função: (i) auxiliar os demais órgãos internos de combate à corrupção (como a Controladoria-Geral da União - CGU) no fortalecimento da parte prática do mecanismo de acompanhamento; (ii) buscar a elaboração de recomendações que reforcem a atuação prática dos órgãos de fiscalização e controle.

CONCLUSÕES

Do que foi visto até agora, há que salientar que os textos internacionais citados - todos firmados, ratificados e promulgados pelo Brasil - não se tratam de meras recomendações ou enunciados de boas intenções.

Suas disposições criam obrigações concretas para os Estados parte. Assim, os Estados-parte estão obrigados a adotar as medidas legislativas e administrativas previstas nos textos internacionais e os valores, princípios, fins, meios e procedimentos consagrados, certamente delimitando ao legislador nacional a discricionalidade para penalizar ou não as condutas por eles disciplinadas, ou os princípios que devem reger a função pública, dentre eles sistemas de declaração de ingressos, patrimônio e atividades de servidores e de particulares que se envolvam com o setor público.

Por isso, é importante que o Ministério Público Federal (MPF) empodere-se, de modo profissional e constante, dos mecanismos de monitoramento internacional contra a corrupção já existentes.

Dentro desta perspectiva, cabe ao MPF utilizar, em prol da sociedade brasileira, do exercício de monitoramento internacional, evitando que seja um mero cumprimento burocrático e quase invisível das diretrizes impostas pela normativa internacional, fazendo que o esforço internacional contra a corrupção seja, efetivamente, um motor de mudança no desenvolvimento da temática no Brasil.

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NOTAS

1 Não se exclui a possibilidade de existência da corrupção privada, que consiste no abuso de poder em entes privados, para o benefício ilícito de um indivíduo, que pode gerar impactos sociais negativos. O tema da corrupção privada, contudo, não será aqui abordado. ALTAMIRANO, Giorleny D. “The impact of the inter-american Convention against corruption”. In 38 University of Miami Inter-American Law Review, 2006-2007, p. 487-548, em especial p. 488.

2Esse escândalo reverberou no Brasil, em virtude da extradição requerida pela Itália de indivíduo por estelionato e corrupção devido ao seu envolvimento no escândalo Lockheed- Itália, no qual teria pago a dois Ministros de Estado e outros altos funcionários diversas propinas para assegurar a venda de 14 aviões Hercules C-130. Após intensos debates sobre se a Corte Constitucional italiana era “tribunal de exceção” ou não, a extradição foi, com votos em sentido contrário, deferida. Ver Extradição 347, Estado Requerente Itália, julgado em 07 de dezembro de 1977. Ver mais sobre o tema em ABADE, Denise Neves. Direitos Fundamentais na Cooperação Jurídica Internacional. São Paulo: Saraiva, 2013.

3O FCPA - Foreign Corrupt Act - é instrumento legal estadunidense com forte apelo extraterritorial. Um dos casos mais conhecidos de sua incidência é o Caso Lockheed-Takla, que envolveu o pagamento de uma propina de 600.000 mil dólares pela empresa americana Lokheed à autoridade pública egípcia em uma licitação. A empresa foi condenada ao pagamento de multa de quase 25 milhões de dólares, significando o dobro do potencial ganho que a empresa esperava obter. Ver detalhes em <http://fcpa.shearman.com/?s=matter&mode=form&id=38>

4Como bem observado por CARVALHO RAMOS, André de. “O Combate Internacional à Corrupção e a Lei de Improbidade” In: SAMPAIO, José Adércio Leite; COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro; SILVA FILHO, Nívio Freitas; ANJOS FILHO, Robério Nunes dos.. (Eds.), Improbidade Administrativa: 10 anos da Lei 8429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 1-34, em especial p. 1.

5ROSENN, Keith S. “Brazil´s legal culture: the jeito revisited”. Florida International Law Journal, 1984, vol I, p. 1-43, em especial p. 43.

6Ver, nesse sentido, JOHNSTON, Michael. “Cross-border Corruption: Points of Vulnerability and Challenges for Reform”. Corruption and Integrity Improvement Initiatives in Developing Countries, 1998, vol 13.

7Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais foi concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997, entrando em vigor internacional em 15 de fevereiro de 1999.

8ALTAMIRANO, Giorleny D. Op. cit., em especial p. 489.

9CARVALHO RAMOS, André de. Op. cit., em especial p. 23.

10CARVALHO RAMOS, André de. Op. cit., em especial p. 26.

11O texto não é isento de críticas. Nesse sentido, destaque-se a observação de que, com relação às medidas de transparência no financiamento de campanhas, previsto no art. 7.3 da Convenção, o texto é “quase débil”, nas palavras de Lucinda A. Low. Conferir em LOW, Lucinda. “Towards Universal International Anticorruption Standards: The United Nations Convention Against Corruption and Other International Anticorruption Treaties: Too Much of a Good Thing?”, in Second Annual Conference of the International Bar Association- IBA, International Chamber of Commerce - ICC, Organization for Economic Cooperation and Development- OCDE, “The Awakening Giant of Anticorruption Enforcement”, 22-23 de abril, Paris, 2004.

12Incluídas aí medidas preventivas especificamente direcionadas ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, conforme determina o artigo 11: “Artigo 11. 1. Tendo presentes a independência do poder judiciário e seu papel decisivo na luta contra a corrupção, cada Estado Parte, em conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico e sem menosprezar a independência do poder judiciário, adotará medidas para reforçar a integridade e evitar toda oportunidade de corrupção entre os membros do poder judiciário. Tais medidas poderão incluir normas que regulem a conduta dos membros do poder judiciário. 2. Poderão formular-se e aplicar-se no ministério público medidas com idêntico fim às adotadas no parágrafo 1 do presente artigo nos Estados Partes em que essa instituição não forme parte do poder judiciário mas goze de independência análoga”.

13Nesse sentido, confira-se PREISS, Richard T. “Privacy of Financial Information and Civil Rights Issues: The Implications for Investing and Prosecuting International Economic Crime” in RIDER, Barry and ASHE, Michael. (Eds), Money Laundering Control. Dublin: Round Hall Sweet & Maxwell. 1996, p. 343-360.

14Para um estudo mais aprofundado sobre o tema, ver ABADE, Denise Neves. Op.cit.

15Ibíd., em especial capítulo 5.2.

16“Acts necessary to institute or facilitate the prosecution of the criminal offence, such as the service of documents or the taking of evidence.” Conferir em GEIGER, Rudolf. “Legal Assistance between States in Criminal Matters” in BERNHARDT, Rudolf (Ed.), Encyclopedia of Public International Law.vol. III, Amsterdam: New York: North Holland Publishing Co, 1992, p. 201-209, em especial p.201.

17O princípio do “aut dedere aut judicare” (“extraditar ou julgar”) remonta a Grotius e tem como objetivo assegurar punição aos infratores destas normas internacionais de conduta, onde quer que eles se encontrem. Não estariam seguros, na expressão inglesa, “anywhere in the world”. Conferir CARVALHO RAMOS, André de. “O Caso Pinochet: passado, presente e futuro da persecução criminal internacional”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1999, vol 25, p. 106-114.

18Art. 44.16 da Convenção: “16. Os Estados Partes não poderão negar uma solicitação de extradição unicamente porque se considere que o delito também envolve questões tributárias”.

19Carvalho Ramos nomeia o fenômeno como “truque de ilusionista”. CARVALHO RAMOS, André de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 6a ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p. 313.

20SARAIVA, Wellington. “Atuação do Ministério Público Federal nas convenções internacionais contra corrupção”. In Temas de cooperação internacional. Brasília: MPF, 2015, p. 175-184, em especial pp. 177-178.

21A respeito do tema, Ubiratan Cazetta observa que “do Judiciário Estadual foi retirada qualquer hipótese de vir a apreciar o interesse federal, não lhe competindo afastar tal interesse ou reconhecê-lo, como, por sinal, expressam as Súmulas STJ 150, 224 e 254 (...) O rigor desse entendimento é de tal ordem que se retira da Justiça Estadual até mesmo a possibilidade de, tendo o juiz federal pela inexistência de interesse federal, suscitar o conflito negativo de competência”. Conclui o autor: “A razão disso, como se vê, advém do reconhecimento de que compete à Justiça Federal, com exclusividade, apreciar a posição jurídica da União, a fim de evitar risco ao pacto federativo, decorrente da submissão do ente central ao alvedrio do Estado-membro”. Ver em CAZETTA, Ubiratan. Direitos Humanos e Federalismo: o Incidente de Deslocamento de Competência. São Paulo: Atlas, 2009, p. 110.

22Conferir o “Report of Buenos Aires on the mechanism for follow-up on implementation of the Inter-American Convention against corruption”. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/english/followup_corr_arg.htm>

23Ver texto integral da Resolução em <http://www.oas.org/juridico/english/ doc_buenos_aires_en.pdf>

24Em espanhol, “Mecanismo de Seguimiento de la Implementación de la Convención Interamericana contra la Corrupción” (MESICIC).

25Ver análise crítica sobre o mecanismo em MICHELE, Roberto de. “The follow-up mechanism of the Inter-american convention against corruption. A preliminary assessment: is the glass half empty?”. In 10 Southwestern journal of Law and trade in the Americas (2003- 2004), p. 295-318.

27O inteiro teor da metodologia está Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/english/ followup_method.htm>

28“Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi”. TOMASI DI LAMPEDUSA, Giuseppe. Prefácio de Gioacchino Lanza Tomasi. Il Gattopardo. Milano: Feltrinelli, 2008.

Recebido: 24 de Setembro de 2018; Aceito: 26 de Fevereiro de 2019

Autor correspondiente: Denise Neves-Abade. Email: deniseabade@gmail.com

Denise Abade é Doutora em direito (Facultad de Derecho de la Universidad de Valladolid); Mestre em direito processual (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo São Francisco). Procuradora Regional da República. Secretária Adjunta de Cooperação Jurídica Internacional da Procuradoria-Geral da República (2017-2019).

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