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Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión

Print version ISSN 2307-5163On-line version ISSN 2304-7887

Rev. secr. Trib. perm. revis. vol.7 no.13 Asunción Mar. 2019

https://doi.org/10.16890/rstpr.a7.n13.p193 

Artículo Original

O DIALÓGO ENTRE COLÔMBIA E BRASIL SOBRE O “ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL”

EL DIÁLOGO ENTRE COLOMBIA Y BRASIL SOBRE EL “ESTADO DE COSAS INCONSTITUCIONAL”

THE DIALOGUE BETWEEN COLOMBIA AND BRAZIL ON THE “STATE OF UNCONSTITUTIONAL THINGS”

Eneida Orbage de Britto Taquary1 

Wangle Samuel Costa Leão1 

1União Pioneira de Integração Social, UPIS, Brasil.


Resumen

La problemática se refiere al diálogo constitucional trabado entre los Estados Colombiano y Brasileño, realizando la circulación de la jurisprudencia constitucional acerca del Estado de Cosas Inconstitucional aplicado al Sistema Penitenciario. Se pretende conceptuar el Estado de Cosas Constitucional, a partir de la ADPF 347, Acción Directa de Incumplimiento de Precepto Fundamental, juzgada por Brasil, y en la Sentencia de Tutela Nº 153, de 1998, juzgada por la Corte Constitucional Colombiana. Se adopta el método jurisprudencial comparativo, por intermedio del análisis de la jurisprudencia de la Corte Constitucional Colombiana y la del Supremo Tribunal Federal. El análisis del tema revela los siguientes resultados en Brasil: a) implantación de la audiencia de custodia; b) liberarla Unión de los valores acumulados y contingenciados del Fondo Penitenciario Nacional; y c) el encaminamiento por la Unión y por los Estados al Supremo Tribunal Federal informaciones sobre la situación penitenciaria.

Palabras clave: Estado de Cosas Inconstitucional; Sistema Penitenciario Brasilero; Jurisprudencia Constitucional; Procesos de Tutela; Colombia; Brasil

Resumo

A problemática se refere ao diálogo constitucional travado entre os Estados Colombiano e Brasileiro, realizando a circulação da jurisprudência constitucional acerca do Estado de Coisas Inconstitucional aplicado ao Sistema Prisional. Objetiva-se conceituar Estado de Coisas Constitucional, a partir da ADPF 347, Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental, julgada pelo Brasil, e na Sentença de Tutela Nº 153, de 1998, julgada pela Corte Constitucional Colombiana. Adota-se o método jurisprudencial comparativo, por intermédio da análise da jurisprudência da Corte Constitucional Colombiana e a do Supremo Tribunal Federal. A análise do tema revela os seguintes resultados no Brasil: a) implantação da audiência de custódia; b) liberação ela União dos valores acumulados e contingenciados do Fundo Penitenciário Nacional; e c) o encaminhamento pela União e pelos Estados ao Supremo Tribunal Federal informações sobre a situação prisional.

Palavras-chave: Estado de Coisas Inconstitucional; Sistema Penitenciário Brasileiro; Jurisprudência Constitucional; Processos de Tutela; Colômbia; Brasil

Abstract

The problem refers to the constitutional dialogue between the Colombian and Brazilian States, carrying out the circulation of constitutional jurisprudence on the State of Things Unconstitutional applied to the Prison System. The objective is to conceptualize the Constitutional State of Things, based on ADPF 347, Direct Action for Non-compliance with Basic Precept, judged by Brazil, and in the Court’s Sentence No. 153, 1998, judged by the Colombian Constitutional Court. The comparative jurisprudential method is adopted, through the analysis of the jurisprudence of the Colombian Constitutional Court and that of the Federal Supreme Court. The analysis of the theme reveals the following results in Brazil: a) implementation of the custody hearing; b) release of the Union from the accumulated and contingent values of the National Penitentiary Fund; and c) the referral by the Union and the States to the Federal Supreme Court of information on the prison situation.

Keywords: Unconstitutional State of Things; Brazilian Penitentiary System; Constitutional Jurisprudence; Colombia; Brazil

INTRODUÇÃO

A utilização de precedentes constitucionais de uma Corte Constitucional Estrangeira, como é o caso da tese do Estado de Coisas Inconstitucional, oriundo da Corte Constitucional de Colômbia, pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil, está vinculado estreitamente com a teoria do pluralismo jurídico, tanto no âmbito das jurisdições domésticas quanto nas jurisdições internacionais, significando que a produção da norma jurídica se opera por várias fontes ou por diversos modos de expressão (sentido restrito) ou ainda no âmbito internacional pelos diversos atores que participam da produção e da aplicação das normas, dos processos de interação das normas e como elas podem ser aplicadas numa mesma ordem jurídica, regulando relações idênticas, mas com fundamentos jurídicos diferentes (sentido geral).

A unificação caracteriza um processo brutal de união de sistemas. As relações de integração surgidas do fenômeno do pluralismo com o direito desmistificaram, por completo, a hierarquia contínua e linear das leis, expressão de uma pirâmide das normas, acabada e completa, por uma hierarquia descontinuada e por pirâmides inacabadas11, em face da criação de tribunais autônomos e que não possuem hierarquia entre si.

A alteração da estrutura piramidal de hierarquia das normas foi substituída pelos processos de integração do direito, moldados pelo pluralismo jurídico, relação essa que é denominada de pluralismo ordenado e que enseja uma série de outros movimentos de produção da norma jurídica, concebidos como unificação por transplantação; a unificação por hibridação; a coordenação por entrecruzamento e a harmonização por aproximação2, mas sem respeitar o multiculturalismo, e as expressões do pluralismo jurídico, porque une sistemas sem identidades.

A unificação por transplantação sobrepõe um sistema jurídico sobre outro independentemente de sua identidade. A unificação por hibridação aproxima dois sistemas por reciprocidade, sendo que um deles é modificado para adotar regras jurídicas de outro3.

Através do diálogo entre diferentes instâncias que têm como função aplicar a lei ao caso concreto, juízes nacionais, internacionais, estrangeiros ou instâncias quase judiciais fomentam a interação que é possível por meio da coordenação por entrecruzamento.

A harmonização por aproximação, como processo de integração dos sistemas jurídicos, possibilita que a ausência de identidade entre os sistemas não seja óbice para a interação, mas que sejam harmonizados a partir de tipologias compatíveis entre sistemas nacionais e internacionais4.

Os processos acima referenciados implicam ordenação do pluralismo diversamente daquela concepção clássica, determinada por um sistema hierarquizado e verticalizado. O sistema atualmente se desenvolve em todas as formas e busca a expressão dos diálogos estabelecidos em diferentes grupos, e em diferentes instâncias, mas de forma ordenada5. Essa ordenação do pluralismo é necessariamente concebida pelos conceitos reguladores e ainda numa fase posterior pela definição do aparelhamento, por meio do qual será feito o acompanhamento da evolução e do controle6.

Os conceitos reguladores7 são mecanismos jurídicos utilizados em processos de interação das normas jurídicas internacionais que terão a finalidade de estabelecer ajustes para a harmonização do direito, em âmbito nacional, regional ou mundial, observados os modos de distribuição de competências em face dos órgãos ou organismos que irão realizar a transposição das normas internacionais para o plano nacional ou para o plano de outra instância judicial.

Os mecanismos acima referenciados se afiguram como doutrinas ou princípios que devem ser observadas quando da transposição de normas internacionais para outros sistemas normativos, como o princípio da subsidiariedade, que possibilita aplicação de normas oriundas de um tratado ratificado pelo Estado-parte sem ferir as disposições constantes daquele e sem que haja o ferimento de direitos e liberdades expressos no âmbito da jurisdição doméstica.

O princípio da subsidiariedade, na esfera do pluralismo jurídico, permite que o Estado-parte em um tratado incorpore suas cláusulas, mas possa observar um espaço normativo quando da transposição deste para a esfera nacional, observando o multiculturalismo, em especial no tocante aos direitos humanos. Esse espaço normativo foi denominado de margem nacional de apreciação ou margem europeia de controle, que convalida o entendimento de que o juiz nacional que deverá interpretar e aplicar o dispositivo tenha maior conhecimento da realidade de seu país onde haverá a transposição8.

A doutrina da margem de apreciação instiga no âmbito do direito internacional a discussão sobre a natureza das decisões dos tribunais no âmbito internacional, se deveriam adotar um papel centralizado ou descentralizado, importando em maior ou menor intromissão na esfera da jurisdição doméstica, a partir da solução adotada em casos judiciais internacionais, apresentando-se como uma metodologia de interpretação ou tomada de decisão9.

Na adoção da teoria dois elementos principais podem ser identificados: a deferência judicial e a flexibilidade normativa.

O primeiro refere-se à deferência que é atribuída aos Estados-parte em uma convenção de como cumprir suas obrigações de direito internacional. O estado tem discricionariedade para implementar obrigações ou cumprir decisões oriundas de cortes internacionais porque tem melhor conhecimento das suas realidades sociais e poderá escolher como fazê-las otimizando a eficácia da medida.

O segundo refere-se à possibilidade dos Estados terem liberdade em disciplinar legislativamente sobre as decisões dos tribunais, porque as normas sujeitas à margem de discricionariedade são normas abertas ou instáveis, porque permitem uma interpretação ampla ou interpretação analógica.

A flexibilização normativa será apreciada no tocante a problemática que se refere ao diálogo constitucional travado entre os Estados Colombiano e Brasileiro, realizando a circulação da jurisprudência constitucional acerca do Estado de Coisas Inconstitucional aplicado ao Sistema Prisional.

Objetiva-se conceituar o Estado de Coisas Inconstitucional, a partir da ADPF 347, Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil, e na Sentença de Tutela Nº 153, de 1998, julgada pela Corte Constitucional Colombiana; analisar as consequências da adoção da teoria do Estado de Coisas Inconstitucional, no Brasil, como a implantação da audiência de custódia; liberação ela União dos valores acumulados e contingenciados do Fundo Penitenciário Nacional; e o encaminhamento pela União e pelos Estados ao Supremo Tribunal Federal informações sobre a situação prisional.

O método adotado é o jurisprudencial comparativo, analisando inicialmente a jurisprudência da Corte Constitucional Colombiana, em especial, os processos de tutela números T-137001 e T-143950, e ao depois a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por intermédio da ADPF 347, Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental, para finalmente compreender os resultados alcançados com a adoção da tese do Estado de Coisas Inconstitucional como instrumento do ativismo judicial jurisdicional, que determinou a modificação, para adoção da audiência de custódia no Brasil, implicando a utilização de mais recursos para o situação prisional, que estavam contingenciados no Fundo Penitenciário Nacional.

PRECEDENTES CONSTITUCIONAIS DA CORTE CONSTITUCIONAL DA COLÔMBIA SOBRE O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

O Estado de Coisas Inconstitucional é caracterizado pela vulnerabilidade massiva e generalizada de vários direitos constitucionais e que atingem número significativo de pessoas, e pela omissão das autoridades que deveriam agir para fazer cessar as violações e adotar medidas para garantir e reparar os direitos violados. A tese do Estado de Coisas Inconstitucional é instrumento do ativismo judicial jurisdicional. Esta tem origem nos processos de tutela números T-137001 e T-143950.

O primeiro processo, a Tutela 137001, foi promovido por Manuel José Duque Arcila y Jhon Jairo Hernández y otros, respectivamente, contra o Ministério da Justiça e o Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario - INPEC, sob a alegação de que se encontravam em situação constante de privação de direitos e constantes violações de direitos humanos sofridas em razão das condições do Cárcel Nacional de Bellavista de Medellín, e que estes fatos poderiam ensejar rebeliões contra a tirania e opressão10.

No curso da ação, o Diretor do Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario - INPEC alegou que a responsabilidade pela violação de direitos constitucionais no interior do Cárcel Nacional de Bellavista de Medellín era “consecuencia de que la política criminal del país sea en realidad una política penitenciaria”11. Os desajustes sociais são tratados com mais penas de reclusão e a restrição de benefícios12.

Os argumentos trazidos pelos autores da ação não prosperaram em face do Tribunal Superior del Distrito Judicial de Medellín, que denegou a tutela, referindo-se a sentença T-501, de 1994, da Corte Constitucional, utilizando o fundamento de que a tutela não era mecanismo adequado para lograr a realização “de obras materiales por parte del Estado, ni para obtener para las instituciones carcelarias una infraestructura adecuada que permita, tanto a los internos como a quienes a cualquier título permanezcan allí, convivir en circunstancias acordes con la dignidad humana”13.

Os argumentos foram acolhidos em junho de 1997 pela Sala de Casación Civil y Agraria de la Corte Suprema de Justicia que confirmou a decisão de instância inferior, apesar de reconhecer que os cárceres do país se encontram em situação precária e não cumpriam as regras internacionais e nem tampouco a Constituição. “La cárcel de Bellavista en Medellín es reflejo de dicha situación(...). Sin embargo, concluye que la tutela no es el mecanismo apropiado para mejorar la situación del establecimiento carcelario”14, e por “ medio de esta acción no se puede ordenar que se lleven a cabo las construcciones necesarias para ofrecer a los reclusos condiciones mínimas de vida”15.

Foram destacados na decisão da Corte os artigos 5 e 10 da Convenção Americana de Direitos Humanos que estabelecem a dignidade com que as pessoas privadas de liberdade devem ser tratadas, bem como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que foi aprovado pela Lei Nº 74 de 1978.

Apesar dos fundamentos legais para concessão da tutela, a Corte reconheceu que os “cárceles del país se encuentran en muy mal estado y difícilmente cumplen con los mandatos anteriormente mencionados”16, e que a Tutela não é o mecanismo apropriado para melhorar a situação do estabelecimento carcerário, “pues por medio de esta acción no se puede ordenar que se lleven a cabo las construcciones necesarias para ofrecer a los reclusos condiciones mínimas de vida”17.

A decisão fundamenta a negativa da tutela no fato de que as obras necessárias nos presídios mencionados “demandan erogaciones del tesoro público y éstas solamente pueden ser ordenadas en la forma y bajo las condiciones señaladas en la Constitución (en sus artículos 345ss.) y en la ley orgánica del presupuesto (decreto 111 de 1996)”18. Ressalta a decisão que “el juez de tutela no puede convertirse en un ordenador o ejecutor del presupuesto, pues ello significaría la invasión de competencias atribuidas a las autoridades administrativas respectivas y un cogobierno de la rama judicial”19. Para sustentar este aserto se apoya en las sentencias T-185/93 y T-195/95 de la Corte Constitucional.

O segundo processo, a Tutela Nº 143950, os direitos fundamentais dos internos do Cárcel Nacional Modelo estavam sendo violados, com excesso de presos em cela, apesar de terem iniciado em fevereiro de 1997 “obras de remodelación de las celdas del sector occidental de los pabellones 3, 4 y 5”20 e a “reacomodar a todos los internos de estos pabellones sobre el costado oriental de los mismos, de manera que “cerca de 2500 internos quedaron aún más hacinados en el espacio que antes albergaba a la mitad de estos”21.

Nesse processo de tutela, apesar dos fundamentos em instâncias inferiores judiciais terem sido semelhantes ao processo T-137001, a Corte Suprema de Justiça entendeu que se notificasse a existência de Estado de Coisas Inconstitucional na prisões ao Presidente da República; aos Presidentes do Senado e da Câmara de Representantes; “a Sala Penal de la Corte Suprema Justicia y de las Salas Administrativa y Jurisdiccional Disciplinaria del Consejo Superior de la Judicatura; al Fiscal General de la Nación; a los gobernadores y los alcaldes; a los presidentes de las Asambleas Departamentales y de los Concejos Distritales y Municipales; y a los personeros municipales”22, revogando as sentenças proferidas pela “Sala de Casación Civil y Agraria de la Corte Suprema de Justicia, y el Juzgado Cincuenta Penal Municipal de Bogotá, por medio de las cuales se denegaron las solicitudes de tutela interpuestas por Manuel José Duque Arcila y Jhon Jairo Hernández y otros, respectivamente”23.

O Ministério da Justiça e o Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario - INPEC foram notificados a elaborar juntamente com o Departamento Nacional de Planeación, no prazo de 3 meses da notificação da sentença, um plano de construção para as penitenciárias”, que deveria estar pronto em 4 anos, tendente “a garantizar a los reclusos condiciones de vida dignas en los penales”24, objeto de fiscalização pela Defensoría del Pueblo y la Procuraduría General de Nación.

Dentre as medidas ainda foram determinadas as seguintes: obediência às prisões especiais dos membros das Forças Armadas, para garantia do direito à vida e a integridade pessoal; separação de presos provisórios e condenados; apuração pelo Conselho Superior da Judicatura das providências não adotadas pelos Juízes responsáveis de Bogotá e Medellin sobre os cárceres de Modelo e Bellavista; solucionar a carência de pessoal especializado nas prisões e no sistema penitenciário de responsabilidade do Ministério da Justiça e do Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario - INPEC; e por fim que os “gobernadores y alcaldes, y a los presidentes de las Asambleas Departamentales y de los Concejos Distritales y Municipales que tomen las medidas necesarias para cumplir con su obligación de crear y mantener centros de reclusión propios” 25.

O fundamento jurídico essencial da sentença refere-se aos requisitos elencados pela Corte Suprema de Justiça sobre o Estado de Coisas Inconstitucional. Para se reconhecer esse estado são necessários: a violação massiva e generalizada dos direitos fundamentais que afeta um número amplo e indeterminado de pessoas; a omissão reiterada das autoridades públicas quanto à garantia dos direitos fundamentais e, a consequente incapacidade em reverter o quadro objetivo de inconstitucionalidade, uma verdadeira “falha estatal estrutural”; a atuação coordenada de órgãos e entidades do poder público para a adoção de medidas complexas, necessárias à superação do quadro de violação de direitos; e a potencialidade de congestionamento da justiça26.

A categoria jurídica de Estado de Coisas Inconstitucional permitiu ratificar o reconhecimento da Corte Suprema de Justiça Colombiana como precursora na defesa de direitos humanos, em especial dos direitos dos presos à disposição da Justiça, sejam provisórios ou condenados, e a responsabilidade do Estado nas violações, internalizando as regras universais do sistema onusiano e as regionais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

O SISTEMA NORMATIVO DE EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL

O Ordenamento Jurídico Brasileiro tem como fundamento o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que permeia todas as relações humanas e as estabelecidas pelo Estado enquanto Administração Pública, motivando sua observância na Administração Penitenciária, em especial na execução da pena. Está expresso no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal Brasileira, de 198827.

O conceito da Dignidade da Pessoa Humana, segundo o ministro Roberto Barroso, se refere “ao valor ímpar atribuído a cada pessoa”, e logo, a impossibilidade de se precificar uma pessoa, ou seja, em produtos e serviços.

Tem relação direta com o tratamento destinado aos custodiados pelo Estados, no cumprimento da pena. Decorre a proibição de tratamento desumano ou degradante, motivando um maior cuidado do Estado com o acesso à saúde, educação, trabalho, segurança, individualização da pena, integridade física e moral e a presunção de inocência, porque em caso de violação a responsabilidade estatal é objetiva.

Os sistemas nacional e internacional estabelecem o princípio da individualização da pena. Cada preso será tratado devido a sua condição peculiar e personalíssima. Há de se fazer uma ressalva com relação ao preso provisório, visto ser este inocente até o trânsito em julgado da ação penal. Desta forma, não pode se falar em individualização da pena, respeitando o princípio da inocência, e sim em isonomia de tratamento28.

No Brasil a isonomia de tratamento entre os presos, sejam provisórios ou condenados, não tem sido identificada em face da superlotação dos presídios. Há um déficit de 250.318 mil vagas, havendo 622.202 presos (seiscentos e vinte e dois mil, duzentos e dois), sendo 249.668 presos provisórios (duzentos e quarenta e nove mil, seiscentos e sessenta e oito) e 372.534 presos em regime fechado (trezentos e setenta e dois mil, quinhentos e trinta e quatro), quando existem apenas 371.884 vagas no Sistema Prisional Brasileiro (trezentos e setenta e um mil, oitocentos e oitenta e quatro)29.

As informações do Departamento Penitenciário Nacional são referentes as informações do ano de 2000 até o ano de 2016, e constata-se que a projeção de encarceramento se mantém relativamente estável nos anos de 2000 a 2002, começando a crescer a partir de 2003 até 2016. O déficit, nos anos de 2000 a 2002 permanecia numa constante queda, por mais irrisória que seja para os dias de hoje30.

Vale ressaltar que as informações levantadas se referem somente aos presos do sistema penitenciário, ficando de fora os presos em delegacias e os mandados de prisão preventiva não cumpridos, o que determina uma baixa dos índices31. O cumprimento de mandados de prisão preventiva demandaria a desmoronamento do Sistema Prisional Brasileiro.

Constata-se da análise dos dados apresentados desde o início do registro das informações do Sistema Penitenciário Nacional um déficit de vagas, mesmo no menor número da série, a saber, 15% (ano de 2002), o que corresponde a uma quantidade bastante considerável. Convertendo a porcentagem apresentada para números, isso significa dizer: 24.587 vagas. Esse número corresponde a aproximadamente 5 complexos penitenciários da Papuda/DF, que poderia abrigar aproximadamente 5.000 mil presos. Ressaltando que esse era o déficit em 2002, o menor número da série histórica32.

A partir do ano de 2003 o número triplicou se comparado o período de 2002 e 2012, e é possível constatar a superlotação carcerária. Em 2014, 57% acima da capacidade das unidades prisionais, e hoje estar acima dos 70%.

O total de pessoas encarceradas no Brasil chegou a 726.712 em junho de 2016, quase o dobro do número de vagas (368.049 no mesmo período). Em dezembro de 2014, eram 622.202 presos, o que representa crescimento de mais de 104 mil pessoas em 18 meses - mais de 5,7 mil por mês, em média33.

Em alguns Estados da Federação esse número se agrava. Em Roraima, no ano de 2014 obteve-se a marca de 292%, ou seja, quase três vezes mais presos do que se podia suportar as instalações. Verifica-se a superpopulação carcerária pelos dados fornecidos pelo próprio Estado. Aproximadamente 41% dos presos do sistema são provisórios. Este fato denota que o princípio da inocência ou não culpabilidade não está sendo aplicado de forma proporcional34.

Em mais de duas décadas, o Brasil vem colecionando casos negativos de violações de direitos no Sistema Carcerário, por má gestão e contingenciamento de recursos que deveriam ser empregados no referido sistema. São exemplos os casos ocorridos no sudeste; norte e nordeste do Brasil, conforme abaixo.

Em 1992, o “Massacre do Carandiru”, ocorrido na Casa de Detenção de São Paulo, estampou as mazelas das cadeias brasileiras. A rebelião iniciada por desentendimento entre presos culminou com a entrada da Polícia Militar no presídio, ocorrendo mortes em massa de presos, pela polícia e por internos do Presídio. Encerrada a rebelião, o saldo de mortes era de 111 detentos. As condições físicas do estabelecimento, a superlotação e a insuficiência de policiais treinados para a ação nos presídios foi fato determinante para a eclosão do fato35.

Outro caso emblemático é o Caso de “Urso Branco” em Roraima, onde, por questões administrativas desarrazoadas (má gestão carcerária) teve início uma rebelião que a priori resultou na morte de 45 presos.

O caso ocorreu em 02 de janeiro de 2002, na Casa de Detenção José Mário Alves (conhecida como prisão ‘’Urso Branco’’), Caso Urso Branco, como conhecido no Sistema Interamericano de Direitos Humanos36.

Foi apreciado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que recomendou ao Brasil, em 14 de março de 2002, em razão da responsabilidade do Estado Brasileiro, de respeitar os direitos e liberdades consagrados na Convenção Americana, em especial das pessoas privadas de liberdade e estarem sujeitas a sua custódia, que fossem recolhidas as armas que se encontrassem em poder dos detentos e que as condições de dignidade no Presídio Urso Branco37 fossem restabelecidas.

Em 18 de junho de 2002, a Corte acatou denúncia contra o Brasil, determinando: a adoção de medidas que sejam necessárias para proteger a vida e a integridade pessoal de todas as pessoas reclusas na prisão Urso Branco, sendo uma delas o confisco de armas que se encontrem em poder dos internos e investigar os fatos que motivaram a adoção de medidas provisórias com o fim de identificar os responsáveis e impor as sanções correspondentes.

Após 18 de junho, houve notícia de mais dez detentos mortos. A Corte então emitiu uma Resolução, em 19 de agosto de 2002, determinando que o Estado brasileiro mantivesse a adoção de todas as medidas para proteger a vida e a integridade física dos detentos; apresentasse informações sobre os graves fatos ocorridos também após a decisão; tomasse o Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos as providências necessárias para a criação de um mecanismo apropriado para condenar e supervisionar o cumprimento das medidas provisórias ordenadas pela Corte; a identificação dos responsáveis e imposição das sanções correspondentes; a informação sobre o número e nomes dos detidos: os que se encontravam cumprindo pena e os que aguardavam sentença, bem como sua localização38.

As decisões proferidas pela Corte não foram realmente acatadas em Rondônia e no ano de 2008 as constatações de violações foram novamente expostas no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). A comissão tinha o objetivo de identificar a situação dos presídios brasileiros39.

Os casos acima não influenciaram a modificação da estrutura do Sistema Carcerário Brasileiro. Em 14 de janeiro de 2017, uma rebelião na Penitenciária de Alcaçuz, localizada no Rio Grande do Norte, durou cerca de 14 horas e vitimou 26 presos, em razão de disputas sobre áreas de tráfico de drogas. Presos dos pavilhões 4 e 5 se confrontaram e as mortes foram extremamente cruéis. Muitos foram esquartejados e por esse motivo a identificação foi difícil.

O Sistema Penitenciário do Rio Grande do Norte, consoante a Secretaria de Justiça e da Cidadania (SEJUC), órgão responsável pelo sistema prisional do estado, possui 33 unidades prisionais, que oferecem 3,5 mil vagas, mas a população carcerária é de 8 mil presos - ou seja, o déficit é de 4,5 mil vagas, dificultando o controle e a tutela dos direitos e garantias dos presos40.

Na representação do MPF41 em face do sistema penitenciário do Maranhão, a colocação de presos provisórios e condenados em mesma cela foi um dos pontos abordados e um dos objetos da ação.

O Centro de Detenção Provisória (CDP) era ocupado também por presos já condenados. Soma-se a esse fato a não realização do exame criminológico, que classifica o preso com relação à periculosidade, tendo o viés de não misturar presos mais perigosos, com personalidade voltada para o crime, e os primários e de bons antecedentes42.

Na penitenciária de Pedrinhas, em Sergipe, o MPF constatou a colocação de presos com HIV e Tuberculose junto aos outros presos. Em Urso Branco a mesma situação de assistência a saúde de forma precária foi constatada43.

Diante desse quadro grave de violações aos preceitos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, o Partido Político PSOL ingressou perante o Supremo Tribunal Federal com a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 347, que teve por fundamento o Estado de Coisas Inconstitucional- ECI no Sistema Penitenciário Brasileiro, em 27/05/2015, utilizando o paradigma do Estado de Coisas Inconstitucional do Estado Colombiano.

PRECEDENTES CONSTITUCIONAIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

No Brasil, a adoção da Tese do Estado de Coisas Inconstitucional foi adotada em dois momentos distintos e em duas Ações diferentes. A primeira a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF, tombada sob o número 347/2015 (ADPF 347), requerida pelo Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, visando a identificação de um estado de coisas inconstitucional no Sistema Penitenciário Brasileiro44. A segunda no Recurso Extraordinário Nº 580.252, que foi recebido com repercussão geral (caso 365), e que tinha como objeto a discussão da responsabilidade civil do Estado por danos morais decorrentes da superlotação carcerária45.

Em ambas ações foi adotado direta ou indiretamente o conceito de Estado de Coisas Inconstitucional desenvolvido na Corte Constitucional Colombiana, oriundos dos processos de tutela números T-137001 e T-143950.

4.1. Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF 347

Consoante o Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF visa “reparar ou evitar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Como instrumento de controle abstrato de constitucionalidade, também caberá para questionar a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição Federal de 1988”46.

A ação referenciada acima é de competência originária do STF, com efeitos erga omnes e vinculantes, possuindo caráter subsidiário, sendo incabível sua propositura quando houver qualquer outra medida eficaz para sanar a lesividade47.

A legitimidade ativa para propor a ação está prevista no art. 103 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), e sua fundamentação está contida nos artigos 102, §1º e 103, também da CF/1988, e na Lei 9.882/1999. No Supremo Tribunal Federal, essa ação é representada pela sigla ADPF.

A provocação realizada ao Supremo Tribunal Federal decorreu do Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, que requereu a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF, tombada sob o número 347/2015 (ADPF 347), objetivando o reconhecimento do instituto do Estado de Coisas Inconstitucional em relação ao Sistema Penitenciário Brasileiro e ainda a adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos presos, decorrentes de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal. A ação teve por base a representação elaborada na Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Clínica UERJ Direitos.

Objetivava o Partido o reconhecimento do ECI para “para sanar as lesões aos preceitos fundamentais da Constituição que decorrem da omissão de políticas públicas48”, bem como maior rigor na concessão das prisões provisórias, mediante as audiências de custódia pelo Poder Judiciário”49 exigindo que o indiciado fosse submetido a um juiz em 24 horas, “para que este decidisse sobre a juridicidade da prisão”50 e que o Supremo Tribunal Federal “determinasse ao Conselho Nacional de Justiça a coordenação de mutirão carcerário para revisar os processos de execução da pena”51 e por fim o “descontingenciamento das verbas do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para financiar programas que visam a humanização do sistema prisional”52.

No mérito, objetivava-se a declaração do ECI do Sistema Penitenciário Brasileiro, com a elaboração de um plano para superação das violações constatadas, no prazo máximo de 3 anos, visando a redução da população carcerária; observância da lei de Execução Penal no tocante à adequação das instalações e alojamentos aos parâmetros previstos na legislação; a garantia de assistência material, médica e educacional; alimentação adequada; acesso à justiça; capacitação dos agentes penitenciários e a eliminação dos maus tratos”.

A relatoria da ADPF 347 foi do Ministro Marco Aurélio que concedeu parcialmente a cautelar e suspendeu o julgamento. Seu voto foi no sentido de determinar aos juízes que motivassem de forma cabal a decretação das prisões provisórias, realizando, em até 90 dias, audiências de custódia, com o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão; “que considerassem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de concessão de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal; e que determinassem, quando possível, penas alternativas à prisão53.

O Ministro relator determinou ainda à União, que o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional fosse utilizado para as finalidades para os quais fora criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos”54.

Recurso Extraordinário Nº 580.252/2017-Mato Grosso do Sul

No Recurso Extraordinário n. 580.252/2017, oriundo do Estado de Mato Grosso do Sul, que foi recebido com repercussão geral (caso 365) pelo Supremo Tribunal Federal -STF, tinha por objeto a discussão da responsabilidade civil do Estado por danos morais decorrentes da superlotação carcerária.

O Ministro relator do caso foi Alexandre de Morais que fundamentou seu voto na tese de que o “Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto permanecerem detidas. É seu dever mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir danos que daí decorrerem”55.

Segundo o Ministro relator “a violação a direitos fundamentais causadora de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carcerários não pode ser simplesmente relevada ao argumento de que a indenização não tem alcance para eliminar o grave problema prisional globalmente considerado”56 dependente de “implantação de políticas públicas específicas, providências de atribuição legislativa e administrativa, não de provimentos judiciais. Esse argumento, se admitido, acabaria por justificar a perpetuação da desumana situação que se constata em presídios como o de que trata a presente demanda”57.

Com base na Constituição Federal, art. 5º, incisos XLVII; XLVIII e XLIX; Lei 7.210/1984 (LEP), arts. 10; 11; 12; 40; 85; 87; 88; Lei 9.455/1997 - Crime de tortura; Lei 12.874/2013 - Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e nas cláusulas internacionais acima citadas, o STF, apreciando o tema 365 da repercussão geral, conheceu do recurso extraordinário e deu-lhe provimento, nos termos do voto do Relator, para restabelecer o juízo condenatório nos termos e limites do acórdão proferido no julgamento da apelação, vencidos os Ministros Roberto Barroso, Luiz Fux e Celso de Mello, que, ao darem provimento ao recurso, adotaram a remição de pena como forma de indenização.

O STF sustentou a responsabilidade do Estado, em face do seu dever, imposto pelo sistema normativo, na manutenção de seus presídios dos padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição; a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento”, acatando a tese do Estado de Coisas Inconstitucional, desenvolvida no Estado Colombiano, para permitir que o Judiciário possa traçar políticas de atuação para diversos poderes visando a garantia dos direitos fundamentais previstos na legislação nacional e internacional, fiscalizando a implantação da medidas e a atuação dos órgãos.

Observe-se, todavia, que no voto-vista do Ministro Barroso ficou expressa a necessidade de acompanhamento da implantação de todas as medidas sugeridas pelo Judiciário, quando do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional, porque no caso colombiano, após mais de uma década observou-se que “o reconhecimento do sistema prisional colombiano como um “estado de coisas inconstitucional” produziu resultados débeis em matéria de proteção dos direitos das pessoas encarceradas58.

Essa deficiência foi provocada porque o “o principal remédio determinado na sentença foi a construção de novas prisões, medida que logo se provou insuficiente para fazer face ao crescimento da população prisional e para garantir a melhoria das condições de vida nos presídios”59.

Reconheceu o Ministro Barroso que a “sentença teve o mérito de colocar a crise prisional em pauta no país e oferecer uma nova perspectiva a respeito do papel dos tribunais no enfrentamento da questão”60, denotando que a crise no sistema penitenciário é global e generalizada, por dois fatores: o primeiro expõe “um problema complexo, cujo enfrentamento demanda uma atuação conjunta e coordenada de diversos poderes e órgãos estatais”61, e o segundo, evidencia “a necessidade de se conferir primazia a soluções que atuem verdadeiramente sobre as causas das situações que deram origem às demandas”62.

Os fundamentos esposados pelos Ministro Barroso no voto-vista ressaltam a importância da jurisdição constitucional na defesa da Constituição e no desempenho do processo, “seja para impor diretamente o respeito aos direitos mais básicos da população carcerária, seja para provocar os demais Poderes a adotarem medidas concretas para erradicar as violações constatadas”63.

A discussão sobre o termo destaca ainda o antagonismo existente entre a prevalência de uma interpretação pro homine e criativa do direito legislado e um interpretação restrita ao texto legal, em matéria de direitos humanos. Não pode haver a usurpação da atividade legislativa, e logo de uma posição majoritária, ainda que por uma lei sem validade, que não mais expresse os valores culturais e éticos de uma sociedade64.

Essa dicotomia também está afeta a discussão da criação, na esfera doméstica, de mecanismos de jurisdição constitucional, como os denominados blocos de constitucionalidade ou de normatividade, e com a institucionalização da jurisdição internacional, no sistema onusiano, global, e nos sistemas regionais, influenciada pela modificação da condição jurídica do Estado, enquanto pessoa jurídica, e suas relações iniciais de cooperação e ao depois de solidariedade nas relações internacionais, e na condição jurídica da pessoa humana, como sujeito de direitos na esfera doméstica e internacional.

CONCLUSÃO

O emprego da tese de Estado de Coisas Inconstitucional pelo Estado Colombiano, na Sentença de Tutela T-137001 e T-143950 de 1998, julgada pela Corte Constitucional Colombiana e posteriormente pelo Brasil, no julgamento da ADPF 347, Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, guardam os mesmos requisitos, quais sejam: (i) la vulneración masiva y generalizada de varios derechos constitucionales que afecta a un número significativo de personas; (ii) la prolongada omisión de las autoridades en el cumplimiento de sus obligaciones para garantizar los derechos; (ii) la adopción de prácticas inconstitucionales, como la incorporación de la acción de tutela como parte del procedimiento para garantizar el derecho conculcado; (iii) la no expedición de medidas legislativas, administrativas o presupuestales necesarias para evitar la vulneración de los derechos. (iv) la existencia de un problema social cuya solución compromete la intervención de varias entidades, requiere la adopción de un conjunto complejo y coordinado de acciones y exige un nivel de recursos que demanda un esfuerzo presupuestal adicional importante; (v) si todas las personas afectadas por el mismo problema acudieran a la acción de tutela para obtener la protección de sus derechos, se produciría una mayor congestión judicial.

No que tange ao aumento das vagas do cárcere há necessidade de realizar mutirões constantes para não haver equívocos no cumprimento da pena e determinar a construção de novos presídios, bem como a reforma dos presídios existentes, fornecendo assistência médica como um todo, alimento de qualidade, educação, vestuário dentre outros.

O reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pelos Estados Colombiano e Brasileiro ressalta a crise penitenciária nos países do Cone Sul e ao mesmo tempo renova a necessidade do Poder Judiciário enfrentar a questão e determinar a implantação de medidas e políticas por parte dos Estados que sejam passíveis de cumprimento e não apenas resultem em discurso falacioso e ineficiente, desacreditando o Estado de Direito.

Da adoção da tese no Brasil surgiu a aplicação da audiência de custódia para todos os presos em flagrante delito, momento que o juiz criminal, apreciando liminarmente o caso, converte a prisão em preventiva, determina a soltura do preso, para responder em liberdade, aplicando medidas cautelares ou não.

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NOTAS

1Expressão utilizada por DELMAS-MARTY. Mirreile. Por um Direito Comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 87-111.

2DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (II). Le pluralisme ordonné. Paris: Editions du Seuil, 2006, p. 70-76.

3Ídem.

4Ídem.

5Ídem.

6MARINHO. Maria Edelvacy Pinto. “Processo de internacionalização dos direitos: a criação de um direito comum”. NOMOS-Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC, 2010, vol. 30, nº 2, p. 137-149.Acesso em 20 de dezembro de 2018. pp.137-149. Disponível em: <http:// periodicos.ufc.br/nomos/article/view/1239>

7Ídem.

8Ídem.

9Ídem.

10REPÚBLICA DA COLÔMBIA. CORTE CONSTITUCIONAL. Sentenças T-185/93 y T-195/95 de la Corte Constitucional. Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/ relatoria/1998/t-153-98.htm>

11Ídem.

12Ídem.

13Ídem.. .

14REPÚBLICA DA COLÔMBIA. CORTE CONSTITUCIONAL. Sentenças T-185/93 y T-195/95 de la Corte Constitucional. Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/ relatoria/1998/t-153-98.htm>

15Ídem.

16Ídem.

17Ídem

18Ídem

19Ídem

20Ídem.

21Ídem.

22Ídem.

23Ídem.

24REPÚBLICA DA COLÔMBIA. CORTE CONSTITUCIONAL. Sentenças T-185/93 y T-195/95 de la Corte Constitucional. Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/ relatoria/1998/t-153-98.htm>

25Ídem.

26Ídem.

27BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>

28MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de. Execução Criminal Teoria E Prática. 7ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2014, p. 165.

29BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Relatório de Gestão do Exercício de 2016. Relatório de Gestão do exercício de 2016, apresentado aos órgãos de controle interno e externo e à sociedade como prestação de contas anual, a que esta Unidade Jurisdicionada está obrigada nos termos do parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal, elaborado de acordo com as disposições da IN TCU Nº 63/2010, da DN TCU Nº 134/2013, e alterações e da Portaria TCU n 154/2016 e Nº 156/2016. Disponível em: <http://justica.gov.br/Acesso/auditorias/arquivos_auditoria/departamento-penitenciario-nacional/depen_2016-relatoriogestao-1.pdf>

30Ídem.

31Ídem.

32Ídem.

33BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Relatório de Gestão do Exercício de 2016. Disponível em: <http://justica.gov.br/ Acesso/auditorias/arquivos_auditoria/departamento-penitenciario-nacional/depen_2016-relatoriogestao-1.pdf

34LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3ª ed. Salvador, Bahia: Editora JusPodivm, 2015, p.43.

35VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

36Ídem.

37BRASIL. COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ DA ARQUIDIOCESE DE PORTO VELHO, JUSTIÇA GLOBAL. Presídio Urso Branco: a institucionalização da barbárie. Río de Janeiro, 2007. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/Relatorio_Presidio_Urso_Branco-a_institucionalizacao_da_barbarie_2007.pdf>

38Íbid.

39BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Relatório final, CPI do sistema carcerário, 2008. Disponível em: <http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701>

40BRASIL. SECRETARIA DE JUSTIÇA E DA CIDADANIA (SEJUC). Centro administrativo em obras. Disponível em: <http://www.sejuc.rn.gov.br>

41BRASIL. PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. Ação de representação proposta pelo Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União ao Procurador Geral da República. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/temas-de-atuacao/sistema-prisional/inspecoes-em-estabelecimentos-prisionais/representacao_intervencao_federal_mpf_ma pgr_pedrinhas

42MESQUITA JÚNIOR, Op. cit., p. 163-164.

43BRASIL. COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ DA ARQUIDIOCESE DE PORTO VELHO, JUSTIÇA GLOBAL. Op. cit., p. 52.

44BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 347 - Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/glossario/>

45BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 580.252; Mato Grosso do Sul. Relator : Min. Alexandre de Moraes; Redator do Acórdão Ristf: Min. Gilmar Mendes. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10167333>

46BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Op. cit.

47Ídem.

48Ídem.

49Ídem.

50Ídem.

51Ídem.

52Ídem.

53Ídem.

54Ídem.

55BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 580.252; Mato Grosso do Sul. Relator : Min. Alexandre de Moraes; Redator do Acórdão Ristf: Min. Gilmar Mendes.

56Ídem.

57Ídem.

58BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Op. cit., p.

59Ídem.

60Ídem.

61Ídem.

62Ídem.

63Ídem.

64No Brasil essa discussão foi realizada pelo Supremo Tribunal Federal no caso da Lei de Imprensa, em 06.11.2009, na Arguição de Descumprimento de preceito fundamental (ADPF 130), onde entendeu-se que a Lei Nº 5.250/67 (Lei de Imprensa) não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Na área penal, no Superior Tribunal de Justiça sobre o crime de Desacato, onde houve divergência sobre sua incompatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Recebido: 20 de Fevereiro de 2018; Aceito: 10 de Janeiro de 2019

Autor correspondiente: Eneida Orbage de Britto Taquary. E-mail: eneidataquary@yahoo.com.br

Eneida Orbage de Britto Taquary é Professora Doutora em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília-UNICEUB. Mestre em direito pela Universidade Católica de Brasília; Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Brasília-UNICEUB. Wangle Samuel Costa Leão é Bacharel em Direito pela União Pioneira de Integração Social.

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