1. INTRODUÇÃO
As mudanças na legislação processual interna de um país acarretam uma série de consequências, que tanto podem trazer benefícios, tornando o sistema mais flexível, célere e de fácil compreensão, como prover maior rigidez, pela imposição de mais etapas que terminam por dificultar a prestação jurisdicional. Neste contexto é que vemos o avanço do país ou o seu retrocesso.
O Brasil sofre um processo de transição no aspecto processual. Hoje, temos em vigor o Código de Processo Civil aprovado no ano de 2015, o qual revoga o Código de Processo Civil de 1973, trazendo consigo uma série de inovações, tais como a unificação do prazo processual e sua contagem em dias úteis, a valorização dos precedentes, a pacificação de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, a positivação de teorias majoritárias e, principalmente, a imposição da preservação da cláusula de eleição de foro estrangeiro e o consequente afastamento da jurisdição brasileira em prol daquela inserida no contrato internacional.
O tema que trataremos neste artigo, que toma como foco a autonomia da vontade das partes para a escolha do foro, no contrato internacional, é fruto das inquietudes surgidas durante o estágio realizado por Matheus Lúcio Pires Fernandes, no Escritório da Conferência de Haia, em Buenos Aires, em fevereiro/março de 2016, que contou com a supervisão da Prof. Dra. Luciane Klein Vieira e com o importante apoio do Dr. Ignacio Goicoechea, a quem rendemos especial homenagem. Deste modo, destina-se a analisar: a) as principais alterações introduzidas pelo novo Código de Processo Civil brasileiro, com relação à cláusula de eleição de foro estrangeiro no contrato internacional; b) o tratamento dispensado à cláusula referida pelo Código de Processo Civil de 1973; c) como a jurisprudência dos principais tribunais brasileiros reagia e reage frente aos diferentes regimes que marcam a vigência do velho e do novo Código; e, finalmente, d) de que forma esta modificação legislativa, recentemente introduzida pelo novo Código de Processo Civil, pode ser útil para fazer com que o país se interesse pela ratificação da Convenção de Haia sobre Acordos de Eleição de Foro, de 2005.
2. O ACESSO À JUSTIÇA E A AUTONOMIA DA VONTADE DAS PARTES
O acesso à justiça, analisado sob a ótica da autonomia da vontade das partes, tem suma relevância para a discussão que traremos à tona, visto que um pode ser decorrência do outro. Impende, portanto, definir ambos os institutos para então observar se o novo Código ofende o acesso à justiça, analisado sob o prisma da facilitação do acesso à jurisdição brasileira, ao valorizar a autonomia da vontade ou se o mesmo, ao contrário, não a invalida e ainda possibilita a satisfação e o respeito à vontade das partes.
A Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXV, preceitua que a lei não poderá afastar do Poder Judiciário a análise de lesão ou de ameaça de lesão a direito. Esta determinação nos indica a qualificação legal de acesso à jurisdição, seguida pela Carta Magna.
Sob outro prisma, segundo Watanabe1, tal instituto não deve ser interpretado como sendo apenas uma garantia de acesso a órgãos jurisdicionais, mas sim de acesso à uma ordem jurídica justa.
Vinculado a esta análise, Liebman2 processualista que foi um dos criadores do antigo códex processual, define tal princípio como:
O poder de agir em juízo e o de defender-se de qualquer pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus direitos e competem a todos indistintamente, pessoa física ou jurídica, italianos (brasileiros) e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade e pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos.
Nesta tentativa de descrição do preceito, o que se obtempera é que o acesso à justiça não se resume ao mero acesso a órgãos jurisdicionais, mas sim a uma ordem jurídica justa, consideradas as circunstâncias e o local em que se encontra o cidadão que reclama pela prestação jurisdicional. Neste âmbito, insere-se a possibilidade de eleição do foro, que é um mecanismo que permite ou facilita às partes o acesso à jurisdição, considerada por elas, no momento em que se pactua tal escolha, uma condição para a realização da justiça.
Por outro lado, para poder seguir com nossa análise, é preciso, também, definir o que seria autonomia da vontade e como ela repercute na vida civil, especialmente, nos contratos internacionais em que se observa tal cláusula3.
Este princípio de grande ramificação no cenário internacional tem por base a vontade humana, que se resume no animus da pessoa de agir de determinada forma, desde que permitido por lei, principalmente e, sobretudo, na esfera contratual. Neste sentido, no âmbito interno, o art. 112 do Código Civil brasileiro de 2002 destaca que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”, o que representa um indicativo da importância da manutenção da vontade das partes, para a preservação e cumprimento de boa-fé dos negócios jurídicos.
É importante destacar que tal autonomia se demonstra presumidamente ampla, não obstante é limitada pela ordem pública, a fim de se evitarem ilicitudes. Dentro deste aspecto, é cabível citar o artigo 5º, II, da Constituição Federal de 1988, cujo conteúdo se define no preceito de que somos livres e que não podemos ser obrigados a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Neste mister, Fábio Ulhôa Coelho preceitua:
O princípio da autonomia da vontade significa que as pessoas podem dispor sobre os seus interesses, através de transações com as outras pessoas envolvidas. Estas transações, contudo, geram efeitos jurídicos vinculantes, se a ordem positiva assim o estabelecer. A autonomia da vontade, assim, é limitada pela lei4.
Desta maneira, conclui-se que a autonomia da vontade é expoente da liberdade concedida pela legislação brasileira, permitindo que as partes definam aquilo que queiram acordar, desde que respeitadas as normas de ordem pública; permite, também, que as mesmas determinem onde desejam que os conflitos derivados do contrato sejam resolvidos, sempre respeitando a lei para se evitarem ilegalidades e eventual responsabilidade.
Sob este prisma, a autonomia da vontade para a escolha do foro está em consonância com o acesso à justiça, visto que o princípio se direciona à uma ordem jurídica justa, para resolver a lide da forma mais próxima ao conceito de justiça e de acordo ao desejado pelas partes, sempre se observando que aqui, estamos tratando dos contratos internacionais nos quais ambas as partes possuem o mesmo poder de negociação. Por esta razão, destaque-se que não estamos tratando dos contratos internacionais com partes vulneráveis, tais como o consumidor e o trabalhador, na medida em que tais contratos demandam uma atenção maior do legislador, no sentido de se conferir maior proteção ao sujeito mais fraco.
Feitos estes breves comentários, passemos ao estudo do direito brasileiro e ao tratamento por ele conferido às cláusulas de eleição de foro inseridas nos contratos internacionais.
3. OS ACORDOS DE ELEIÇÃO DE FORO E O TRATAMENTO DISPENSADO PELA FONTE INTERNA
O acordo de eleição de foro é uma cláusula contratual de escolha do juiz competente, fruto do pleno exercício da autonomia da vontade, a qual permite negociações entre as partes e garante, precipuamente, um melhor acesso à justiça para a resolução dos conflitos. Por tal motivo, deve ser respeitado quando houver eventual conflito de jurisdição, desde que não haja violação à ordem pública.
Antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que ocorreu em 18 de março de 2016, o Brasil não continha norma, de direito interno, que pudesse garantir o respeito ao foro escolhido pelas partes no contrato internacional, pese à existência de normas neste sentido, na fonte convencional. Em razão do exposto, o respeito ou não à cláusula inserida nestes contratos ficava livrado à interpretação judicial, que, muitas vezes, invalidava a cláusula em favor da jurisdição do juiz nacional. Vejamos:
3.1. O Código de Processo Civil de 1973
O Código de 1973 esteve vigente no país até 17 de março de 2016, momento no qual entrou em vigência o novo Código Processual, como já mencionado.
No (velho) Código, não havia menção sobre a cláusula de eleição de foro em contratos internacionais5, menos ainda existia a previsão a respeito da manutenção do foro estrangeiro eleito em detrimento da jurisdição nacional, o que levava os juízes, como se verá a seguir, a afastarem o foro eleito pelas partes no contrato, assumindo a jurisdição, com base na “autorização” contida nas hipóteses de jurisdição concorrente previstas no art. 88 do Código de Processo Civil referido.
A respeito do tema, o art. 88 determinava três hipóteses nas quais o juiz brasileiro também era competente, pese a que a demanda igualmente poderia ser apresentada ante um juiz estrangeiro: quando o réu, de qualquer nacionalidade, estivesse domiciliado no Brasil; se no Brasil tivesse que ser cumprida a obrigação; ou, por fim, se a ação se originasse de ato ou fato ocorrido no Brasil6.
Com relação a estas hipóteses, se existisse no contrato uma cláusula de eleição de foro estrangeiro, e a lide fosse submetida, de qualquer forma, à jurisdição nacional, os magistrados brasileiros, com base no permissivo legal supra referido, poderiam se declarar competentes e analisar a controvérsia. Tal entendimento terminava por enfraquecer a vontade das partes, pela mitigação da autonomia da vontade, pois o acordo então realizado não era respeitado, ferindo o pacta sunt servanda e - por que não - a boa-fé contratual. No mesmo sentido, a mais autorizada doutrina se manifestava em favor da jurisdição concorrente do juiz nacional, conforme ao que vinha sendo preconizado pelos tribunais internos, em detrimento da eleição do foro estrangeiro. Vejamos:
Se for proposta pelo autor uma ação perante o juízo do domicílio do réu no Brasil ou aqui deveria ser cumprida a obrigação principal, diverso do foro alienígena eleito pelas partes, de lege data, deve prevalecer a competência do juiz brasileiro, não sendo possível, nesse caso, que a cláusula de eleição de foro, embora válida, afaste a jurisdição nacional7.
Ora, se as partes definem um foro para dirimir conflitos, de comum acordo, o correto seria que este fosse o único competente para julgar, levando as outras jurisdições a determinarem a manutenção da cláusula, se fossem provocadas, declarando-se então incompetentes para o julgamento, algo que não ocorria no Brasil e que brindava uma amarga insegurança jurídica aos contratos e negócios internacionais.
Claro está que não estamos tratando, aqui, das hipóteses de jurisdição internacional exclusiva, elencadas no art. 89 do diploma legal mencionado. Nestes casos, que se referiam sobretudo a bens imóveis situados no Brasil, a competência é do juiz nacional para dirimir a demanda, devendo ser afastada qualquer possibilidade de análise do pleito pelo juiz estrangeiro. Estas hipóteses continuam fazendo parte do Código atualmente vigente, no seu art. 23, e não estão sob discussão, por serem tratadas como matéria de ordem pública internacional.
Desta maneira, verifica-se claramente que a legislação processual brasileira vigente até pouquíssimo tempo atrás era totalmente retrógrada com relação ao tema da eleição de foro em contratos internacionais, na medida em que ante as lacunas deixadas pela lei, os juízes nacionais, assim como parte significativa da doutrina, valoravam mais o princípio da inafastabilidade da jurisdição nacional, como resquício da velha ordem soberana, ao invés de se respeitar a autonomia da vontade das partes.
3.2. A interpretação brindada pelo Poder Judiciário às cláusulas de eleição de foro estrangeiro, no período de 2010-2016: comparação com a orientação adotada em período anterior
Para demonstrar como a cláusula mencionada vem sendo analisada pelo Poder Judiciário brasileiro, foi feita uma pesquisa jurisprudencial por amostragem, em acórdãos de alguns tribunais, publicados no período compreendido entre 2010 a 2016. Os tribunais pesquisados foram: Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ), Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJ/SC), Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ/PR) e Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS).
Cabe ressaltar que a tabela a seguir foi construída, levando-se em consideração as seguintes situações: a) casos em que se deu a manutenção da cláusula e o consequente declínio da competência por parte do juiz nacional; b) casos nos quais o foro estrangeiro escolhido foi afastado, em virtude da declaração de jurisdição concorrente, habilitando o juiz nacional para a análise e julgamento do pedido, sem a observância do foro escolhido pelas partes no contrato internacional.
É importante destacar que outros tribunais foram consultados, porém infrutíferas as pesquisas em razão de não existirem acórdãos ou estes, quando existentes, versarem sobre casos que extrapolam os limites propostos para este artigo. Vejamos:
Tribunal | Manunteção da clásula | Afastamento da clásula (competência concorrente ou completa exclusão) | Total de casos analisados |
---|---|---|---|
STJ | 1 | 12 | 138 |
TJ/SP | 1 | 8 | 99 |
TJ/RJ | 2 | 2 | 410 |
TJ/SC | 0 | 1 | 111 |
TJ/PR | 0 | 2 | 212 |
TJ/RS | 2 | 0 | 213 |
Total | 6 | 25 | 31 |
Fonte: www.stj.jus.br; www.tjsp.jus.br; www.tjrj.jus.br; www.tjsc.jus.br;
www.tjpr.jus.br; www.tjrs.jus.br
Assim, como se pôde observar, os julgados publicados entre 2010 - 2016 demonstram a tendência brasileira, sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973, de reconhecimento da competência do juiz nacional para a análise e julgamento dos casos que tinham como objeto um contrato internacional, pese à existência de cláusula de eleição de foro estrangeiro. Essa orientação é a mesma refletida em acórdãos anteriores ao período analisado. Por exemplo, vejamos a decisão do Colendo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, prolatada em 2008, que descarta por completo a eleição de juiz estrangeiro, em sede contratual, realizada pelas partes, previamente ao litígio:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRANSPORTE. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL CONCORRENTE. INAPLICABILIDADE DA CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO NO CASO CONCRETO. Consoante o art. 88 do Código de Processo Civil a jurisdição brasileira será competente para conhecer e julgar de ação, quando preenchido um dos pressupostos contidos nos incisos do referido dispositivo legal. In casu, não merece prosperar as razões da agravante, tendo em vista que o réu na ação indenizatória em que foi proposto o incidente possui domicílio na cidade do Rio de Janeiro. Assim, mantém-se a decisão do julgador de origem com a improcedência da exceção de incompetência, afastando a eficácia, no caso concreto, da cláusula de eleição de foro que estabeleceu a cidade de Marselha, na França, para dirimir conflitos oriundos do contrato, tendo em vista a competência da justiça brasileira para julgar a presente demanda. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70023968704, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Judith dos Santos Mottecy, Julgado em 05/06/2008) (Destaque nosso.)
No mesmo sentido, o próprio Superior Tribunal de Justiça se manifestou em diversas oportunidades14, em prol da atuação do juiz nacional, alegando inclusive que as regras processuais distribuidoras de jurisdição concorrente são questão de ordem pública, e por tanto não podem ser afastadas pela vontade das partes. Para ilustrar o exposto, também no ano de 2008, a Corte referida julgou um caso que teve como pano de fundo um contrato de distribuição de mercadorias entre uma empresa com sede no Brasil e outra com sede no Reino Unido, no qual as partes haviam escolhido o foro britânico como competente15. O STJ acabou afastando a jurisdição do juiz estrangeiro, eleito pelas partes16, em acórdão que restou assim ementado:
PROCESSO CIVIL. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL. CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO NO BRASIL DE PRODUTOS FABRICADOS POR EMPRESA SEDIADA NO REINO UNIDO. Impropriedade do termo “leis do Reino Unido”. Execução de sentença brasileira no exterior. Temas não prequestionados. Súmulas 282 e 356 do STF. Execução contratual essencialmente em território brasileiro. Competência concorrente da Justiça brasileira. Art. 88, inc. II, do CPC. Precedentes. - (...) A autoridade judiciária brasileira tem competência para apreciar ação proposta por representante brasileira de empresa estrangeira, com o objetivo de manutenção do contrato de representação e indenização por gastos efetuados com a distribuição dos produtos. - O cumprimento do contrato de representação deu-se, efetivamente, em território brasileiro; a alegação de que a contraprestação (pagamento) sempre foi feita no exterior não afasta a competência da Justiça brasileira. Recurso especial não conhecido. (Recurso Especial Nº 804.306-SP, 3ª Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Nancy Andrighi, Julgado em 019/08/2008) (Destaque nosso).
3.3. Os acordos de eleição de foro e o novo Código de Processo Civil de 2015
Rompendo com o velho sistema, pode-se afirmar que o Código de Processo Civil de 2015 é um marco na história do Direito Internacional Privado brasileiro. Traz uma série de modificações substantivas, sobretudo em matéria de jurisdição internacional e cooperação jurídica internacional, de modo a conferir maior segurança jurídica, certa celeridade e razoabilidade processual, com vistas à efetividade do processo.
Sendo assim, é importante conhecer as novidades introduzidas pela nova legislação, no que diz respeito ao tema objeto deste artigo, para poder traçar-se um paralelo entre o novo e o velho, a fim de entender como o Poder Judiciário do país se comportará neste período de transição. Vejamos:
3.3.1. As novidades introduzidas
Em termos gerais, o Código inseriu no direito processual brasileiro uma série de mudanças, na medida em que se direcionou à uniformização jurisprudencial e à criação de novos institutos, ademais da supressão de outros, na tentativa de pacificar discussões que causavam grandes divergências e que prejudicavam a segurança jurídica.
Neste sentido, Daniel Amorim Assumpção Neves enumera as inovações contidas no novo diploma legal:
O Novo Código de Processo Civil traz diversos institutos processuais novos, tais como a ordem cronológica nos julgamentos, a mediação e conciliação, a cooperação jurídica internacional, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o acordo procedimental, o saneamento compartilhado, a ação de dissolução parcial de sociedade, as ações de família, a eficácia vinculante dos pronunciamentos dos tribunais, a prevenção recursal, o incidente de assunção de competência, a homologação de decisão estrangeira e concessão de exequatur à carta rogatória, a reclamação constitucional, o incidente de demandas repetitivas e a técnica diferenciada de julgamento colegiado em substituição aos embargos infringentes17.
Com relação ao que nos interessa, o novo Código, finalmente, trouxe um tratamento expresso à cláusula de eleição de foro em contratos internacionais, algo que havia sido completamente olvidado pelo legislador de 1973. Desta forma, determina a nova legislação: Art. 25. Não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação. § 1º Não se aplica o disposto no caput às hipóteses de competência internacional exclusiva previstas neste Capítulo. § 2º Aplica-se à hipótese do caput o art. 63, §§ 1º a 4º.
Como se observa desta disposição, o juiz nacional, ressalvados os casos de competência internacional exclusiva, passa a ser incompetente quando existir cláusula de eleição de foro estrangeiro no contrato internacional18. Assim, detectado o foro eleito no instrumento, automaticamente, os tribunais brasileiros devem se declarar incompetentes para julgar a lide, o que valoriza e enaltece a autonomia da vontade, o pacta sunt servanda e as relações internacionais.
É um passo sobremaneira relevante para o país, que passa a caminhar de acordo com a orientação adotada em acordos internacionais, principalmente, pelo Convênio de Eleição de Foro de 2005, promovido pela Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, ao qual vários países estão aderindo.
Ainda, neste tocante, Fredie Didier Jr. aduz que em razão do novo Código permitir o foro de eleição, o foro eleito deve ser respeitado pelo juiz singular, quem deve se declarar incompetente para julgar. Porém, e o que é mais interessante, o mesmo autor explana que o foro não deve ser admitido em toda e qualquer causa em que se observa, já que pode ter sido o resultado de uma escolha abusiva e ferir a igualdade das partes, principalmente, nas situações em que há partes vulneráveis, como nas relações de consumo. Deste modo, conforme o autor:
A abusividade de cláusula de foro de eleição é defeito que pode ser reconhecido ex ofício pelo órgão jurisdicional. Considera-se abusiva a cláusula de foro de eleição em contratos de consumo: i) se, no momento da celebração, a parte aderente não dispunha de intelecção suficiente para compreender o sentido e as consequências da estipulação contratual; ii) se da prevalência de tal estipulação resultar inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao judiciário; iii) se se tratar de contrato de obrigatória adesão, assim entendido o que tenha por objeto produto ou serviço fornecido com exclusividade por determinada empresa (STJ, 4. T., Resp. 56.7 1 1 -4-SP, rei. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 07.02.1 995)19.
No mesmo sentido, Luciane Klein Vieira destaca que o art. 25 do novo Código não se aplica aos contratos internacionais de consumo, devendo ser privilegiado o foro do domicílio do consumidor, por tratar-se de hipótese de jurisdição internacional exclusiva, prevista pelo legislador no art. 22, II do novo Código, como medida destinada a facilitar o acesso à jurisdição ao vulnerável20. Por este motivo, neste artigo, não abordaremos os contratos com partes vulneráveis, como já mencionamos, porque escapam à lógica dos contratos comerciais internacionais, nos quais ambas as partes se encontram em pé de igualdade.
3.3.2. As dificuldades do período de transição: soberania e cogência das normas como empecilho ao respeito à cláusula de eleição de foro estrangeiro
A partir da alteração recentemente promovida, a expectativa se orienta para observar como os nossos tribunais irão decidir as causas nas quais se discute uma cláusula de eleição de foro estrangeiro, pois a cultura jurídica que se consolidou por anos no nosso país esteve orientada a que o juiz nacional igualmente se declarasse competente, em demanda que tivesse por base um contrato internacional com cláusula de eleição de foro estrangeiro, por se tratar de jurisdição internacional concorrente, nos termos do velho art. 88 do Código de 1973.
Isso se deve, muitas vezes, a um apego excessivo e errôneo ao conceito de ordem soberana21 e à uma leitura equivocada do princípio do “acesso à justiça”. A Constituição Federal impõe o respeito à soberania nacional em seu artigo 1º, inciso I, e ao acesso à justiça, consolidado pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, em seu artigo 5º, XXXV. Não obstante, a leitura que deve ser feita destes artigos em nada obsta a que se respeite a autonomia da vontade das partes, muito pelo contrário.
Por outro lado, a justificativa se perfazia, por vezes, pelo fato de serem cogentes as normas processuais quanto ao procedimento e à jurisdição, não podendo ser afastadas ou modificadas pela vontade das partes. Nesse ímpeto, Marcus Vinícius Rios Gonçalves aduz que:
São cogentes as que têm por objetivo assegurar o bom andamento do processo e a aplicação da jurisdição, como as que dizem respeito ao tipo de procedimento a ser observado, e dispositivas, aquelas que levam em conta, primacialmente, os interesses das partes. As normas de processo civil são, na imensa maioria, cogentes. Salvo algumas exceções, não é dado às partes nem o juiz afastar a sua incidência22.
Não obstante o exposto, os tempos são outros. Se antes não se podia afastar a norma processual, que determinava a jurisdição concorrente do juiz nacional, hoje a norma é outra e hoje ela impõe o respeito à cláusula de eleição de foro estrangeiro, o que não pode ser afastado pelas partes, nem mesmo pelo intérprete da lei, excetuados os casos já referidos.
Denota-se assim que em virtude da omissão legislativa que existia e pela existência de preceito de jurisdição concorrente, os tribunais interpretavam pela declaração de competência do juiz brasileiro, mesmo em face de cláusula contratual que escolhia um foro estrangeiro para dirimir a controvérsia, o que terminava por esvaziar a autonomia da vontade das partes.
O Códex de 2015 legislou sobre a incompetência da jurisdição brasileira na existência de cláusula de eleição de foro estrangeiro. Esta mudança legal ocasionará uma espinhosa caminhada na alteração de entendimento, pois raramente os tribunais afastavam a jurisdição brasileira nestes casos. Com este preceito, a jurisprudência deve se uniformizar no sentido da expressão legal, sendo nulo, por contra legem, qualquer entendimento em sentido contrário.
4. OS ACORDOS DE ELEIÇÃO DE FORO E O TRATAMENTO DISPENSADO PELA FONTE CONVENCIONAL
Ainda que o presente artigo não tenha como objeto o tratamento dispensado pela fonte convencional autônoma e heterônoma (vigentes) para a cláusula de eleição de foro em contrato internacional, já que o mesmo se destina a analisar a fonte interna brasileira e a possibilidade de adoção da Convenção de Haia sobre acordos de eleição de foro, pelo direito brasileiro, mesmo assim, comentaremos, em breves palavras, as principais regras sobre o tema, dispostas no Código de Bustamante - fonte heterônoma - e no Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual - fonte autônoma, vigente no âmbito do MERCOSUL. Vejamos.
4.1. O Código Bustamante
No âmbito das Américas, o Código de Direito Internacional Privado dos Estados Americanos, ou simplesmente Código Bustamante, concluído em 13 de fevereiro de 1928 e promulgado pelo Brasil pelo Decreto nº 18.871, de 13 de agosto de 1929, aborda o tema da eleição do juiz competente em sede contratual.
Assim, o art. 31823 do Código estabelece a regra geral em matéria de jurisdição civil e comercial, determinando que será competente o juiz ante o qual os litigantes se submeterem, seja de forma expressa ou tácita. Não obstante, o dispositivo cria uma limitação à escolha das partes, obrigando a que ao menos uma delas seja nacional ou tenha domicílio no foro escolhido e que a lei local deste não contenha nenhuma norma impeditiva neste sentido24. Além disso, condiciona a validade da eleição realizada a que o juiz eleito exerça jurisdição ordinária, que seja competente para entender em assuntos de igual categoria (civis e comerciais) e que tenha o mesmo grau de jurisdição que o juiz que resultaria competente se não tivesse havido a eleição do foro (art. 319).
Mais adiante, no art. 321, o Código qualifica o que se deve entender por submissão expressa, estabelecendo que a mesma deve ser feita pelos interessados, de comum acordo, de forma clara e precisa, já que implica na renúncia ao próprio foro, pela designação de outro juiz competente.
Ainda que os dispositivos citados não se refiram expressamente aos contratos internacionais, resultam aplicáveis aos mesmos e, neste sentido, a doutrina já se manifestou, dizendo que o Código admite tanto os acordos de eleição de foro pactuados antes de suscitada a controvérsia como aqueles efetuados com posterioridade a ela25.
4.2. O Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual
No âmbito do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), foi celebrado o Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual, em 5 de agosto de 199426.
Este Protocolo, incorporado ao Direito brasileiro por meio do Decreto nº 2.095, de 17 de dezembro de 1996, consagra expressamente o princípio da autonomia da vontade das partes em sede contratual, permitindo a eleição do juiz competente, e, igualmente, admitindo que as partes optem pela arbitragem como meio alternativo para a solução de controvérsias.
No art. 4º, o Protocolo estabelece que:
nos conflitos que decorram dos contratos internacionais em matéria civil ou comercial serão competentes os tribunais do Estado-Parte em cuja jurisdição os contratantes tenham acordado submeter-se por escrito, sempre que tal ajuste não tenha sido obtido de forma abusiva. Pode-se acordar, igualmente, a eleição de tribunais arbitrais.
Deste modo, a norma mercosurenha garante a prevalência da vontade das partes, desde que a mesma não tenha sido resultado de uma escolha abusiva. Não obstante, no art. 6º, insere uma regra destinada não à manutenção do acordo das partes, mas sim à possibilidade de propositura da ação ante a um juiz distinto - que não aquele eleito -, desde que tenha jurisdição em um dos Estados Partes do MERCOSUL. Neste caso, o requerido, depois de interposta a ação, deverá manifestar-se de forma expressa, admitindo a prorrogação da jurisdição.
Por fim, é interessante mencionar que o art. 5º do Protocolo permite que o acordo de eleição de foro possa ser realizado no momento da celebração do contrato, durante a sua vigência (por adendo contratual ou contrato independente) ou uma vez suscitado o litígio, devendo sempre ser aplicado o direito mais favorável à validade do pacto efetuado pelas partes.
5. A Convenção de Haia sobre Acordos de Eleição de Foro de 2005
A Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, em mais de meio século, elaborou três convenções abordando o tema da cláusula de eleição de foro, encarando, por assim dizer, a difícil tarefa de preparar um tratado internacional, destinado a harmonizar as regras utilizadas em distintos países, em prol do incentivo à segurança jurídica e ao incremento do comércio internacional. Entretanto, pese a que foram aprovadas a Convenção de Haia sobre a Competência do Foro Contratual em Caso de Venda em Caráter Internacional de Objetos Móveis Corpóreos, a Convenção de Haia sobre Eleição de Foro e a Convenção de Haia sobre Acordos de Eleição de Foro, somente uma delas entrou efetivamente em vigor27.
Trata-se da Convenção de Haia sobre Acordos de Eleição de Foro, aprovada na cidade que leva o seu nome, em 30 de junho de 2005. Esta Convenção, que conta, na atualidade, com 30 signatários28, entrou em vigência em 1º de outubro de 2015, dez anos após a sua celebração, tendo sido Singapura o último dos Estados ratificantes29.
O tratado referido, considerado como uma norma de vanguarda, destaca, já em seu art. 1º, o seu âmbito de aplicação material30, estabelecendo que a Convenção se aplica aos acordos de eleição de foro em matéria tanto civil quanto comercial. Do mesmo modo, a fim de evitar dúvidas quanto à efetividade da Convenção, o art. 2º exclui uma série de matérias do seu âmbito de aplicação, destacando-se, por exemplo, que a mesma não se aplica aos contratos celebrados pelo consumidor, pelo trabalhador, contratos derivados do direito de família, etc.31 por se tratarem de direitos indisponíveis e que exigem uma maior intervenção por parte do Estado para fins de proteção legal.
No que nos interessa, a Convenção acolhe expressamente o princípio da autonomia da vontade das partes para a escolha do juiz competente, excluindo do seu âmbito de aplicação a possibilidade de escolha de um árbitro, devendo o juiz ou tribunal eleito exercer jurisdição em um Estado Contratante, ou seja, em Estado que tenha ratificado ou aderido ao convênio internacional referido, nos termos do seu art. 3º, alínea “a”. Ademais, a Convenção dá ao acordo de eleição de foro inserido no contrato a condição de cláusula autônoma ou independente das demais cláusulas contratuais, de modo a que seja preservada em caso de nulidade do contrato ou de algumas de suas prescrições.
Por sua vez, o art. 5º destaca que o tribunal do Estado contratante designado pelo acordo de eleição de foro terá competência para decidir qualquer litígio que se encaixe no âmbito material de aplicação do Acordo, exceto se for considerado nulo conforme o direito interno do Estado no qual se invoca a sua aplicação. Deste modo, o artigo, no seu inciso 2, determina que o tribunal designado, não poderá recusar exercer a sua competência, alegando que o litígio deva ser decidido por um tribunal de outro Estado. Este inciso, como se pode perceber, dá maior peso ao acordo de eleição de foro e a sua necessária aplicação e evita que os juízes utilizem a doutrina do fórum non conviniens, bastante utilizada nos países do common law, para que o magistrado abra mão de sua competência ao afirmar ser mais conveniente outro tribunal32. Em outras palavras, o dispositivo enaltece o respeito à vontade das partes, prescrição que parece ter sido a fonte utilizada pelo legislador brasileiro para a redação do atual art. 25 do Código de Processo Civil, ao qual já fizemos menção.
Neste sentido, é interessante ressaltar que o art. 6º estabelece as obrigações do juiz ou tribunal não eleito pelas partes, dentre as quais se destaca a obrigação geral deste tribunal de declarar-se incompetente para apreciar o processo que tenha como base um acordo exclusivo de eleição de foro, cabendo poucas exceções a este princípio, as quais vêm elencadas pelo próprio artigo antes mencionado, a saber: a) se o acordo for nulo nos termos do direito do Estado do tribunal eleito; b) se uma das partes não tinha capacidade para celebrar o acordo nos termos do direito do Estado onde foi aberto o processo; c) se a execução do acordo implicar uma injustiça manifesta ou for contrária à ordem pública do Estado onde foi instaurado o processo; d) se por motivos excepcionais que ultrapassam o controle das partes, o acordo não puder ser posto em prática; ou ainda e) se o tribunal eleito tiver decidido não apreciar o processo.
Como se pode facilmente perceber, a Convenção de Haia sobre Acordos de Eleição de Foro é um tratado moderno e extremamente necessário para brindar certeza, previsibilidade e segurança jurídica às partes de um contrato internacional, convertendo-se em instrumento imprescindível aos Estados que desejam manter ou, porque não, ampliar o fluxo comercial internacional, por meio da expansão dos negócios internacionais entre as pessoas físicas ou jurídicas que tenham domicílio nos seus territórios.
Com base nos avanços da Convenção em comento e tendo em conta as recentes alterações introduzidas no direito brasileiro, fazemos nossas as palavras de Valesca Raizer Borges Moschen e Hermes Zaneti Júnior, conforme os quais:
No cenário atual, o novo Código de Processo Civil é elemento fundamental para que o instituto de foro estrangeiro seja de fato reconhecido e respeitado pela jurisprudência brasileira, a fim de que o Poder Judiciário não se imiscua em demandas, quando houve eleição de foro estrangeiro para solução de conflitos transnacionais. Dessa maneira, o NCPC se coaduna com as Convenções e tratados internacionais sobre jurisdição internacional de contratos comerciais, principalmente, com a Convenção de Haia de 2005 sobre as cláusulas de eleição de foro, peça fundamental para a promoção da segurança jurídica do comércio exterior brasileiro.
A proclamada efetividade das decisões judiciárias nos litígios internacionais, originária do exercício da autonomia da vontade, encontra importante suporte normativo na referida convenção e, hoje, no NCPC. Este diploma contribui para a ratificação da Convenção de Haia, passo importante para a cultura jurídica nacional, na qual a dicotomia entre o exercício da autonomia da vontade versus o reconhecimento de derrogação da jurisdição é considerado ainda entrave à soberania nacional33.
CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
No presente artigo, tentamos analisar a forma como o Brasil vinha interpretando as cláusulas de eleição de foro estrangeiro nos contratos internacionais, sob a égide do antigo Código de Processo Civil, aprovado em 1973, em cotejo com as disposições previstas pelo novo Código processual, de 2015, que recentemente entrou em vigor.
Deste modo, fica evidente a necessidade do país de respeito à nova prescrição constante no art. 25 do atual Código de Processo Civil, que manda dar prevalência à autonomia da vontade das partes, no sentido de que o juiz nacional deve respeitar a cláusula de eleição de foro, inserida no contrato com elementos de internacionalidade, declarando-se incompetente, em favor do juiz estrangeiro escolhido de comum acordo pelos contratantes.
Como ficou claro, esta nova determinação vem ao encontro do disposto pela Convenção de Haia sobre Acordos de Eleição de Foro, que recentemente entrou em vigência entre os Estados anteriormente referidos, motivo pelo qual não há óbice ou incompatibilidade jurídica para que o Brasil se obrigue pelos termos do tratado referido, o que seria, desde já, recomendável, se o país quer realmente se manter competitivo no cenário internacional e gerar confiança às partes que contratam de maneira transfronteiriça.