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Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión

Print version ISSN 2307-5163On-line version ISSN 2304-7887

RSTPR vol.3 no.6 Asunción Aug. 2015

https://doi.org/10.16890/rstpr.a3.n6.27 

Ensaio Introdutório

Direito penal humano ou inumano?

Eugenio Raúl Zaffaroni* 

*Corte Suprema de Justiça, Argentina.


1. O PROGRAMA ÚNICO

A história não termina e nem se repete, ainda que seja possível verificar alguns elementos de permanência. Entre os mais notórios encontram-se os episódios de massacres estatais, genocídios ou homicídios grotescos massivos cometidos por agentes do poder punitivo dos estados e que, apesar de ocorrerem em marcos culturais muito diferentes, responderam sempre a uma mesma estrutura básica de pensamento, tanto para seu prévio condicionamento como para sua posterior legitimação. Essa afirmação é válida e condição para que se entenda por estrutura básica algo semelhante a um programa de computador, que pode ser alimentado com dados culturais muito diferentes, mesmo que o programa não apresente variações.

Esse programa classifica os humanos entre próprios e estranhos. De forma que os próprios estão organizados de maneira orgânica e sistêmica (tendentes a ser imaginados como uma colmeia de abelhas ou como um formigueiro), os estranhos são seres humanos inferiores (não pessoas) e em proporção crescente passam a diretamente inimigos (naturais). Dentro do grupo dos próprios também surgem traidores, que não aceitam ser abelhas ou formigas e são considerados parasitas ou degenerados, os quais também são declarados inimigos (declarados). Além disso, no grupo dos próprios surgem conflitos hegemônicos que possuem ganhadores e perdedores; esses últimos costumam ser posicionados na categoria dos traidores.

O poder punitivo que corresponde a esse modelo terá por função a eliminação dos inimigos, sejam naturais, declarados ou perdedores; sua tarefa de aniquilação concluirá no massacre desses menos humanos (ou não pessoas) que de fora ou de dentro procuram destruir a suposta ordem orgânica do grupo dos próprios. Próprios, estranhos, inimigos, traidores e perdedores são categorias comuns em todo massacre estatal desencadeado, bem como, de maneira preparatória, nas ideologias que pretendem caminhar para esse fim.

Cabe ressaltar que a organização sistêmica do grupo dos próprios sempre requer um elemento mítico-idolátrico mais ou menos acentuado; contra o ídolo levanta-se o mal cósmico e o poder punitivo é o raio de contenção da ameaça cósmica, que reflete a onipotência do ídolo e assume função mágica.

2. VERIFICAÇÃO HISTÓRICA

Tudo isso é verificável ao longo da história:

Na Roma imperial, os próprios eram os cidadãos do império, os estranhos eram os bárbaros, os escravos e os colonizados; os inimigos, os cristãos, os traidores e os convertidos ao cristianismo; e os perdedores os que fracassavam em suas tentativas de golpes de estado contra os sucessivos generais que faziam ser chamados de imperadores. O componente mítico-idolátrico era a religião (adoração do estado) e a divindade do imperador.

Na inquisição romana, os próprios eram os fiéis ao papa, os estranhos eram o exército heterogêneo: curandeiros, padres que praticavam exorcismo sem permissão, simples magos etc. Os inimigos eram os hereges, as bruxas e todos que desconheciam a autoridade papal. Perdedores eram os nobres e os senhores remissos ou rompidos com o papa; um bom exemplo foram os cavaleiros Templários. O elemento mítico era Satã - que em hebraico significa inimigo - convertido em um ídolo negativo (um anti-Deus na visão maniqueísta) que obrigava a matar em nome do Deus bom que, entretanto, havia sido sacrificado pelo próprio poder punitivo.

Para a inquisição ibérica, os próprios eram os cristãos velhos, estranhos foram os infiéis colonizados e em escassa medida os islâmicos conquistados; inimigos eram os judeus; traidores, os hereges, judaizantes e não delatores; perdedores foram os que confrontaram com a autoridade real. O elemento idolátrico foi o mesmo Satã na visão maniqueísta.

O reducionismo biologista neocolonizador reconheceu como próprios os brancos europeus de classe média e alta e os de classe trabalhadora europeia submissa; estranhos inferiores eram os neocolonizadores; inimigos naturais foram as classes perigosas urbanas, a Comuna de Paris, os anarquistas, os socialistas e os rebeldes coloniais; traidores (inimigos declarados) eram os brancos europeus socialistas e anarquistas; perdedores eram as classes urbanas invejadas (antissemitismo, caso Dreyfus). O elemento mítico-idolátrico foi panteísta, com alguns curiosos desenvolvimentos espiritualistas.

Para o fascismo italiano os próprios eram os nacionalistas obedientes ao estado e ao Duce; estranhos eram os colonizados; inimigos, os anarquistas, socialistas e comunistas; traidores os dissidentes (liberais e republicanos) que não pertenciam à categoria anterior; perdedores foram alguns como o conde Ciano. O elemento mítico-idolátrico foi a renovação do culto ao estado como restauração da grandiosidade do império romano.

Para o nacional-socialismo, os próprios eram os alemães arianos; os estranhos, os não arianos e os arianos não alemães; os inimigos, os judeus, ciganos e homossexuais; os traidores, os alemães arianos antinazistas (socialdemocratas e republicanos); perdedores foram Röhm, os autores do atentado de 1944, Rommel etc. Elemento mítico-idolátrico foi o endeusamento da raça superior criada diferente pelo próprio Deus.

Para o stalinismo, os próprios eram os membros do partido e os proletários conscientes; os estranhos eram os proletários ainda não conscientes; inimigos eram os burgueses, os camponeses resistentes e os nacionalistas; traidores foram Trotsky e seus partidários; perdedores, as vítimas dos expurgos de 1936-38. O elemento mítico-idolátrico era o messianismo, o começo da história, a etapa superior do comunismo.

Nas ditaduras de segurança nacional sul-americanas, os próprios eram os ocidentais e cristãos; estranhos, os indiferentes; traidores, os críticos e os denunciantes de seus crimes; inimigos, os subversivos; perdedores, algumas vítimas da luta hegemônica. O elemento mítico-idolátrico era sua missão de cruzada cósmica contra o comunismo internacional em meio a uma guerra universal.

3. O PROGRESSO DOS LIMITES DO PODER PUNITIVO

O penoso avanço da contenção do poder punitivo na forma de direito penal de garantias não se desenvolveu historicamente por maturação e reflexão, mas como resultado do pânico gerado pelos massacres. O direito penal liberal da modernidade como ideologia e conjunto de princípios nasceu do medo e do horror diante dos erros do antigo regime. A Declaração Universal adaptou-se timidamente aos escombros da Europa, aos ataques nucleares a aos milhões de cadáveres. A incorporação dos instrumentos de Direitos Humanos no inciso 22 do artigo 75 da Constituição argentina foi motivada em 1994 pela sensação de horror em relaçãoaos desaparecidos, aos executados e aos torturados de quinze anos antes.

4. A ANTROPOLOGIA CONSTITUCIONAL

O artigo 1 da Declaração Universal encontra-se sintetizado no inciso 2 do artigo 1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: pessoa é todo ser humano. Desse modo, o direito internacional e nosso direito constitucional posicionaram-se contra a hierarquização de seres humanos, própria de todos os processos históricos que culminaram em massacres executados por um poder punitivo destinado a aniquilar inferiores, sub-humanos, não humanos ou não pessoas. Trata-se de clara definição antropológica.

A norma "todo ser humano deve ser considerado e tratado como pessoa" impõe o dever de se considerar juridicamente única a espécie humana. A falha biológica que nos faz nascer com um equipamento instintivo muito menos completo que o do restante dos animais nos obrigou a declarar legislativamente a especificidade humana. A consciência da especificidade foi promovida há milênios, com frequência pelas grandes e pequenas religiões, mas inclusive essas foram manipuladas para poupa-la ou negá-la, até que os horrores derivados de sua negação provocaram sua inclusão como norma fundamental do direito constitucional e internacional.

Por conseguinte, a antropologia constitucional (jurídica) argentina é derivada das referidas normas e das demais que a sustentam desde o texto original de 1853-1860, dentre as quais sobressai o artigo 19, CN. Esse plexo normativo (originário e incorporado em 1994) determina que se estabeleça ou interprete a ordem jurídica sob a premissa de que todo ser humano é uma pessoa, em pé de igualdade no que se refere a dignidade e direitos, ou seja, que o direito argentino deve ser um direito humano. O direito penal argentino, portanto, e por mandato constitucional, deve ser um direito penal humano.

Esse mandato constitucional está dirigido tanto ao legislador quanto ao juiz. Em um estado constitucional de direito com controle difuso de constitucionalidade é dever do juiz interpretar as leis penais em consonância com a antropologia constitucional e, no caso de incompatibilidade plena, declarar sua inconstitucionalidade. A ciência jurídico-penal argentina tem por missão projetar sistemas de interpretação oferecidos aos juízes para tornar previsíveis suas decisões - sempre nos limites do mandato supremo.

5. A DIFERENÇA EM RELAÇÃO AO DIREITO PENAL LIBERAL

Dado que o direito penal humano incorpora todos os limites apontados por aquele conhecido como liberal, cabe perguntar qual seria a diferença entre uma ciência jurídica construída para o primeiro e elaborada pelos expoentes liberais do direito penal na modernidade e que costuma ser reiterada até a atualidade. Ainda que o direito penal humano requeira mais conteúdo do que o liberal, o certo é que as disparidades não se encontram muito em seus enunciados formais, mas, sobretudo, no que se refere (a) a sua fonte e (b) a sua natureza.

a) No geral, os expoentes referidos, em razão da ausência de constituições ou de sua precariedade, imaginaram um estado liberal tendo como fonte a filosofia e a razão, e daí deduziram a função que deve ter a pena e, com base nessa função deduzida (imaginada), elaboraram os limites que impõe seu direito penal liberal. Foram, assim, jusnaturalistas, deduzindo os limites humanos do plano metajurídico ou filosófico, do qual haviam partido antes para imaginar seu modelo de estado.

b) A ciência jurídico-penal, segundo o direito penal humano dos nossos dias, não tem nenhuma necessidade prática de recorrer ao plano metajurídico, pois o princípio humano seria parte e base de todo o direito positivo. Não cabe negar, com tal afirmação, a importância da discussão entre jusnaturalistas e positivistas no plano filosófico-jurídico, mas - ao menos enquanto sejam conservadas as leis internacionais e constituições vigentes -, o mandato da antropologia jurídica reduz a transcendência prática de outrora.

Por outro lado, no que se refere a sua natureza, a ciência penal humana não pode continuar agora da dedução de um modelo de estado, mas por meio de um empirismo histórico, dado que, na realidade histórica, o direito penal humano se formou - e segue sendo o verso da moeda - do direito penal inumano que conduz a um ilimitado exercício do poder punitivo que, se não se detém, desemboca em massacre.

6. OS ELEMENTOS QUE APONTAM O EMPIRISMO HISTÓRICO

Desse empirismo histórico verifica-se que o direito penal inumano não está morto e que goza, na verdade, de muita saúde. Nossos estados de direito reais não são nunca completamente como devem ser segundo suas constituições. Em nossas sociedades seguem convivendo unidades inumanas empurrando ou resistindo para que a aproximação do ser ao dever ser constitucional não se realize, detenha-se ou atrase-se.

Isso é assim porque a esfera penal reflete um confronto jurídico e político mais amplo: o elemento inumano deseja que todo o direito ignore a estratificação e a exclusão social, que tende a uma distribuição desigual da renda e a acumulação e, para manter o controle dos excluídos, exerce um poder punitivo maior em identidade e seletividade que desconheça a condição de pessoa aos desfavorecidos.

O conflito entre a contenção humana do poder punitivo e sua expansão inumana (direito penal humano e inumano) não é mais do que a expressão penal da tensão interna de todo estado real ou histórico, o qual não pode ser evitado, pois tem como base ôntica a sempre desigual distribuição de renda, dado que não há sociedade que não seja em alguma medida estratificada.

A tendência de conservar e aumentar os privilégios dos que se beneficiam com a distribuição inequitativa da renda, em prejuízo das classes subalternas, faz com que exista sempre uma demanda por um maior controle destas por meio da expansão do poder punitivo. Devido a estratificação social as pulsões inumanas nunca podem desaparecer por completo porque sempre haverá privilegiados e desfavorecidos alimentando as tensões encontradas.

O estado é uma arena política, na qual lutam as pulsões do direito humano para conter aqueles do direito inumano, ambas com suas respectivas tendências à redução e à expansão do poder punitivo e de sua seletividade. O mandato que surge da antropologia constitucional indica ao intérprete jurídico o lugar que deve ocupar nesse cenário, ou seja, que pulsão deve promover.

7. O REALISMO COGNITIVO

Outro inconveniente do procedimento dedutivo do direito penal liberal clássico é que, ao menos tendencialmente, é refratário de uma teoria de conhecimento realista. Orienta-se, preferencialmente, ao idealismo cognitivo pois, partindo da imagem do estado de direito tal como deve ser, deduz como deveria ser a pena ou todo o poder punitivo desse estado e, a partir dessas premissas, constrói seu sistema permanecendo sempre no plano do dever ser do estado e da pena (como imagina o técnico que deve ser a pena conforme sua ideia de estado de direito de acordo com sua cosmovisão), sem ocupar-se absolutamente do que a pena é conforme mostrado pela ciência social.

O grave dessa metodologia é que ela é empregada para construir um sistema destinado a que os juízes apliquem penas que na realidade nunca são como devem ser e o façam em nome de um estado que tampouco é totalmente como deveria ser.

8. A REALIDADE CONSTITUCIONAL

Dado que o direito penal humano confronta-se continuamente com o inumano, nada é estático nesse panorama, pois se bem existe uma constituição escrita (Verfassung) que estabelece normas e princípios (um dever ser constitucional), há uma realidade constitucional (Verfassungswirklichkeit) que não é norma além de sociológica, que mostra em que medida essas normas (dever ser) se realizam na realidade do ser social, o que depende da posição que em cada momento alcançou cada uma das pulsões (humano e inumano) em permanente contradição.

Quando se desconhece que Constituição, realidade constitucional e grau de realização constitucional são diferentes esferas, cai-se em extremos reducionistas, sejam normativistas ou sociologistas, nenhum dos quais é útil para os juízes cuja função é sentenciar, ou seja, realizar atos de poder, de governo, políticos, conforme os valores e a antropologia constitucional: a lógica não é ontologia e nem do ser sai o dever ser.

9. O CARÁTER POLÍTICO DA CIÊNCIA JURÍDICA

Se não se pode negar que as sentenças judiciais são por essência atos de governo e, assim, políticos (governo da polis), tampouco poderá caber dúvida sobre o fato de a ciência jurídico-penal também ser política, pois pretende projetar atos judiciais. Não é possível conceber a ciência penal como politicamente neutra quando sua missão é precisamente a de confrontar as pulsões de resistência ou embates de direito penal inumano. Não se trata de uma opção livremente assumida e, por tanto, muito discutível, mas de um mandato constitucional que impõe o dever de impulsionar continuamente o padrão de realização constitucional.

10. UMA CIÊNCIA JURÍDICO-PENAL CRÍTICA E MILITANTE

Mas, além disso, se o direito penal humano deve promover a realização constitucional confrontando com as pulsões inumanas, impõe-se a ele avaliar permanentemente o grau dessa realização (Verfassungsverwirklichkeit) no plano social e submetê-lo à crítica, ou seja, que não pode ser senão um direito penal crítico. Mas deve-se promover a realização constitucional no combate com as pulsões inumanas, esse direito penal crítico deve ser também ativo, militante, não pode ser neutro nem estático entre poderes em conflito dinâmico.

Em síntese: a ciência jurídica que corresponde ao direito penal humano deve: (a) alimentar-se do empirismo histórico, (b) mover-se dentro de limites de realismo gnosiológico, (c) assumir o compromisso político que se outorga à Constituição, (d) ser um crítico atento do grau de realização constitucional e (e) ser militante e dinâmico frente às pulsões inumanas.

Nos levaria isso a Carl Schmitt? É uma interrogação que se impõe ao caráter militante do direito penal humano, mas a resposta deve ser absolutamente negativa.

Em princípio, para Schmitt o direito penal humano (liberal, dizia o Kronjurist do Dritte Reich) não existiria, o único poder político era o de escolher o inimigo, como condição de sua essência. Todo outro poder era a negação do político. Ao afirmar o caráter crítico e militante do direito penal humano não se escolhe um inimigo, mas afirma-se a presença de uma pulsão contrária que enfrenta aquele que escolhe um inimigo. Aqueles que promovem um direito penal inumano (inclusive os próprios criminosos massacradores) são pessoas, não são inferiores nem sub-humanos, não são inimigos, mas apenas promovedores de uma pulsão sempre presente na história. Ninguém pretende aniquilá-los e nem sequer vencer definitivamente uma pulsão inumana, mas até agora inevitável; não se pretende integrar nenhum sistema nem organismo separado, mas coexistir com eles na mesma sociedade e sob a mesma Constituição.

Tampouco deve-se cair em uma leitura pessimista da história que mostre a mesma como uma ininterrupta cadeia de homicídios grotescos massivos. Exercer com militância a contenção dessa pulsão e permanecer crítico frente aos seus sinais não implica afiliar-se a uma antropologia pessimista, mas, em termos freudianos, colocar-se ao lado de Eros e contra Tânato.

11. CONSTITUCIONALIZAR O DIREITO PENAL

A ciência jurídica própria do direito penal humano não pode impor-se em nossos dias outra tarefa que não a de aprofundar e promover a constitucionalização do direito penal conforme sua mais elementar premissa antropológica. Ninguém deve interpretar uma lei argentina considerando alguém como não pessoa nem mesmo como menos pessoa. À primeira vista, pareceria que isso seria demasiadamente geral e pouco concreto, mas não é assim e nem requer que a doutrina se perca em refinadas discussões metajurídicas, mas que se mantenha dentro dos termos do direito positivo vigente, sob a condição de que não se leia a Constituição como um mero enunciado de algumas regras limitativas expressas, mas entendendo que constitucionalização significa personalização (toda norma deve ser entendida conforme os parâmetros gerais de que todo ser humano é uma pessoa).

12. PERSONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

O conceito de pessoa não é normativizável a gosto do intérprete, pois não fosse a Declaração Universal e a Constituição não seriam normas, mas fórmulas ocas e inservíveis, dado que cada intérprete - e cada estado - poderia declarar seus inimigos não pessoas. Para isso, deveria declarar não humanos ou menos humanos os seus inimigos, de forma que estaria desconhecendo um dado único ou natural, derivado da biologia e não manipulável à vontade.

Para considerar que as disposições constitucionais que prescrevem que todo ser humano é pessoa conforma matéria normativa e não meramente declaratória (ou seja que de seu enunciado derivam deveres), deve-se entender que têm um conteúdo, cuja extensão pode ser mais ou menos ampla, sendo a mais ampla a biológica, que considera ser humano como sinônimo de vida humana. A interpretação em conformidade a esse conteúdo impõe-se porque é de máxima amplitude. Não se trata de uma decisão arbitraria ou deduzida de fundamentos metajurídicos, mas que se impõe em razão da aplicação do próprio direito positivo, isto é, em função da regra interpretativa legalmente imposta no direito internacional dos direitos humanos: a chamada cláusula pro homine.

Toda possível discussão será em relação aos limites (quando começa e termina o ser humano), mas não no que ser refere ao conteúdo, para o qual se deverá considerar que a vida humana corresponde à soma ôntica indispensável como fornecedor de seu alcance normativo.

À margem da racionalidade e da legalidade interpretativa anteriormente apontada, encontram-se razões históricas que reforçam o ancoradouro ôntico-biológico do conceito de ser humano e, por transição, de pessoa, dado que é sabido que a Declaração Universal de 1948 não se proclamou como alteração de paradigma relacionado ao biologismo hierarquizante que postulou a existência de vidas sem valor vital ou com menos valor que outras. A esse biologismo hierarquizante ou discriminatório opõe-se o paradigma contrário: onde há vida (biológica), há um ser humano e, assim, uma pessoa que deve ser tratada como tal quanto a dignidade e direitos.

O conceito humano da antropologia constitucional argentina impõe ao estado a montagem de uma ordem jurídica programada em função da realização da pessoa; o direito argentino proíbe que se use uma pessoa como instrumento ou ferramenta a serviço de ídolos que estejam além da pessoa mesma. A antropologia constitucional impõe a todo o direito argentino a intranscendência da pessoa.

13. INTRANSCENDÊNCIA E ETICIDADE

Se chamamos de direito penal humano aquele que se submete à regra constitucional básica da antropologia e de direito penal inumano aquele que a desconhece, por lógica o primeiro é intranscendente e o segundo transcendente. Ao rejeitar o princípio humano, o direito penal inumano considera que há seres humanos que não são pessoas e, assim, os coloca a serviço dos que considera pessoas, racionalizando essa subordinação hierárquica com a invocação de algum ídolo transcendente, como se demonstrou antes.

As cláusulas constitucionais não são alheias à ética: o tratamento como pessoa tem consequências éticas, o estado que não se esforça para realizar a constituição nesse sentido está favorecendo um tratamento inumano não apenas jurídico, mas também ético, pois proclama frontalmente uma normatividade que não leva à prática, converte-se em um estado tartufo. Assim, o direito penal humano é também ético, por provocar criticamente uma exigência de etização do poder punitivo estatal.

14. AUTONOMIA MORAL

O direito humano deve respeitar a autonomia moral (consciência do bom e do mau) da pessoa como um dado inerente de sua condição desenvolvida e na medida desse desenvolvimento, por mandato da do artigo 19 da CN, que completa e harmoniza-se com as disposições internacionais. O reconhecimento da consciência moral de todo ser humano é condição de seu respeito como pessoa. O poder que invade o campo moral individual é profundamente imoral, pois nega a possibilidade da eleição moral pela pessoa.

Mas isso não impede que se sustente firmemente que a vida humana (pessoa) existe ainda que seu completo desenvolvimento vital ainda não tenha sido alcançado, nem possa ser alcançado ou tenha sido perdido. Trata-se de outro conceito não arbitrariamente normativizável, mas com fundamentação ôntica de caráter bio-psíquico não suscetível de limitação política nem cultural.

15. NÃO HÁ CIÊNCIA PENAL POLITICAMENTE NEUTRA

Sem dúvida, a função da ciência jurídico-penal conforme o direito penal humano é claramente política, tendo em vista que os mandamentos constitucionais têm essa natureza, pois são parte do estatuto político da República. A defesa da pessoa e a resistência às pulsões que pretendem negar essa condição a alguns seres humanos conformam claramente tarefa política, na qual o direito penal tem papel fundamental.

A Constituição ordena um dever ser que deve ser na sociedade, de modo que o direito penal humano apenas pode ser realista e valer-se criticamente dos dados da realidade social, sem os quais faz-se impossível qualquer crítica no autêntico sentido da expressão. Os preceitos constitucionais não são sancionados para deixá-los navegando no vazio social, mas para que se realizem na sociedade. O objetivo político humano está claramente assinalado pela lei constitucional e, conforme consigna a própria Constituição Nacional, não seria admissível em nosso direito positivo uma ciência jurídico-penal politicamente neutra ou vazia de conteúdo político.

Não obstante, importante se faz apontar que essa ciência jurídico-penal neutra tampouco pode existir porque pretender que um programa político (direcionado a ser adotado por um poder do estado) seja politicamente neutro seria uma contradição terminológica, como negação de sua própria essência. Pouco importa que sua natureza política seja ou não reconhecida por seus teóricos, pois isso não altera algo que está na própria essência de sua função.

16. O PERIGO DE DISSOLUÇÃO DA DOGMÁTICA

Quando se sustenta a viabilidade dessa suposta neutralidade, o que na verdade se faz é propor programas políticos que pretendem prescindir de objetivos políticos. Como nenhum programa político pode prescindir desses objetivos, na prática terminam assumindo essa função as regras meramente metodológicas.

Como se sabe, a ciência penal latino-americana é tributária da dogmática jurídico-penal europeia continental e principalmente alemã. Quando se adota a dogmática jurídico-penal para construir sistemas interpretativos com pretensão de neutralidade, o que em realidade se faz é deixar de lado ou subestimar o mandato antropológico constitucional, mas como esse espaço não pode ficar vazio, passam ao primeiro plano aquelas que não são mais as regras meramente metodológicas. Ao converter-se o método em ontologia, seria o caminho e não o viajante que fixaria o destino final: a construção de um sistema, sua completude lógica (não contradição), sua capacidade para resolver casos e uma certa segurança de resposta deixam de ser condições do caminho e passam a ser metas internas do sistema mesmo, ou seja, a perseguição da coerência pela própria coerência.

Como todo o universo admite uma pluralidade de sistemas de compreensão que abarque todos os seus elementos e não resulte contraditório, a dogmática penal que eleva a metodologia à ontologia provoca um processo de dissolução que a leva ao fracasso de sua função de garantir a segurança (contribuir para a previsibilidade das decisões judiciais). Justamente por subestimar o objetivo político fornecedor de sentido, a dogmática oferece hoje uma multiplicidade de sistemas tecnicamente válidos, por meio dos quais debilitou-se sua capacidade de tornar previsíveis as decisões judiciais, para passar a oferecer aos juízes um número crescente de soluções dentre as quais pode escolher quase a gosto. A dogmática penal parece se converter em recurso da tópica.

Ainda que a antropologia constitucional orientadora de todo a tentativa construtiva não exclua por completo a disparidade de respostas, esta será consequência da dinâmica própria da confrontação das pulsões, ou seja, de diferentes soluções que resultam da maior ou menor premura ou velocidade com que se queira salvar a distância média entre a normatividade e a realidade constitucional, que é a consequência lógica da dinâmica de uma jurisprudência progressiva em direção à realização constitucional. Muito diferente de um grupo de pessoas em uma encruzilhada que decida separar-se em direção aos quatro pontos cardiais, que se mantém unido em direção a um deles e apenas se separa porque uns se adiantam mais que os outros.

17. O DIREITO PENAL HUMANO COMO REAÇÃO

Nosso direito penal humano deve partir da antropologia constitucional, mas as normas que a estabelecem não devem ser consideradas apenas como premissas para deduzir consequências sistemáticas, mas, também e principalmente, devem ser consideradas como resultado de um processo histórico. A que necessidade respondeu a sanção dessa norma básica? Como gerou-se no tempo?

Como visto, ao repassar a história para responder essa pergunta, verificamos que houve sucessivos direitos inumanos, com seu correspondente exercício criminoso do poder punitivo, de forma que o direito penal humano foi se configurando em seu compasso, acumulando experiência de resposta aos crimes de seu contrário. Sinteticamente, pode-se afirmar que o direito penal seria a resposta aos milhões de homicídios grotescos cometidos no curso da história do ser humano sobre o planeta, logicamente brevíssima em relação a seus tempos biológico e geológico.

Não se faz possível ignorar que todos os homicídios grotescos massivos cometidos pelos estados foram executados materialmente pelas agências do poder punitivo, ou seja, por polícias ou forças armadas em função policial, com consentimento, ausência ou impotência de juízes. Dessa maneira, o poder punitivo e o próprio direito penal se convertem em criminal. O espanto que impulsionou o direito penal humano foi sempre causado por essa simbiose do poder punitivo com o crime. O direito penal humano formou-se como resposta aos crimes do direito penal inumano.

Como visto, quando Carl Schmitt afirmava que a essência do político se encontrava na polarização amigo-inimigo e que político seria apenas quem detinha o poder de escolher o inimigo, negava ao mesmo tempo toda entidade ao liberalismo, que considerava como um incoerente resultado do não político. Seu conceito de político é inadmissível, pois essas são apenas as manifestações das pulsões inumanas, mas é historicamente correto em relação à formação de seus contrários.

18. A PERGUNTA PRIORITÁRIA: PENA OU CONTENÇÃO?

A verificação histórica da gênese e da evolução do direito penal humano nos indica que o caminho metodológico não pode ser dedutivo, ou seja, que não cabe imaginar um estado de direito perfeito e de aí deduzir como deve ser a pena nesse estado, ainda que caiba reconhecer o valor heurístico de tais esforços e investigações. Se, conforme o empirismo histórico, o direito penal humano se formou procurando conter o exercício do poder punitivo, não pode ter nele a prioridade - e menos exclusividade - da pergunta sobre a hipotética função da pena, mas que essa perde importância e a questão de como conter o poder punitivo passa ao centro do cenário.

Além disso, ainda que nunca tenha ficado clara a função que cada autor estabelece para a pena como dever ser para construir seu sistema, menos ainda se pode reduzir a uma fórmula seus efeitos e funções que descobre a sociologia na realidade social, ao que se acrescenta sua extraordinária expansão e o uso praticamente indiscriminado e casuístico da legislação penal. O caminho do liberalismo penal clássico e sua confrontação ideológica com o direito penal inumano centrou-se na pena, quando a verdadeira utilidade do primeiro teria sido prover elementos argumentativos de contenção do poder punitivo.

19. A CAPACIDADE DE CONTENÇÃO JURÍDICA HUMANA

De certo, a função da dogmática penal é limitada: os crimes de direito penal inumano não são contidos pela dogmática penal quando se desata o massacre, pois ela apenas atua quando há juízes que contenham as pulsões inumanas, dado que é um programa dirigido a eles. Quando não há ou desapareceu a contenção jurídica, não há espaço para a dogmática conforme o direito penal humano, pois o poder punitivo arrasa tudo, inclusive os juízes, como no caso do Kmer Vermelho cambojano.

Há em alguns casos, porém, juízes, procedimentos mais ou menos complexos e dogmáticas ou teorizações legitimantes dos crimes do direito penal inumano e do poder punitivo descontrolado. Quando, nesses casos, o nível de elaboração do discurso é elevado, o direito penal humano deve tomar partido dessas teorizações inumanas para: a) individualizar os argumentos discursivos por onde penetram as defesas de seu sistema; b) aprender a detectar esses argumentos como elementos negativos das pulsões inumanas para valer-se dos próprios juízes, infiltrando a contenção jurídica na dinâmica constante dos estados de direito; c) aperfeiçoar seu próprio discurso de contenção à medida que se descobrem os pontos vulneráveis de seus sistemas defensivos.

Levando-se em conta, pois, que o direito penal humano foi formado como reação ao inumano, a dogmática penal politicamente orientada à neutralização das pulsões inumanas deve começar pelo aprofundamento da análise que se desenvolveu para racionalizar o direito penal inumano e não tanto - como no liberalismo clássico - pela imaginação de um estado de direito ideal, do qual se possa deduzir um dever ser da pena que nunca chega a ser na realidade social. As legitimações elaboradas do direito penal inumano são fonte inesgotável de experiência para a permanente evolução da dogmática penal humana.

20. A PESQUISA NO DIREITO PENAL INUMANO

A partir dos objetivos apontados anteriormente, faz-se indispensável para o progresso do direito penal humano o aprofundamento das pesquisas relacionadas ao inumano, mas com a advertência de que isso faz sentido, como observado, na medida em que exista um espaço para que a dogmática jurídico-penal possa exercer seu poder de contenção jurídica.

Nem sempre quando houve um massacre estatal com múltiplos homicídios grotescos este foi legitimado ou precedido por discursos jurídicos de certo nível de elaboração: não os necessitou o Kmer Vermelho para fuzilar todos os juízes cambojanos, obviamente, tampouco parecem ter tido maior amplitude elaborativa os discursos de Vychinski. Esses massacres são inquestionavelmente de interesse histórico, mas sua análise não é útil para nossa abordagem, dada a pobreza discursiva em matéria penal.

Não obstante, há momentos históricos, nos quais as racionalizações legitimantes do direito penal inumano alcançaram um altíssimo nível de elaboração teórica e que, assim, são os que chamam nossa atenção: trata-se de (a) a inquisição (tanto romana quanto ibérica e, fundamentalmente das teorias demonológicas e da síntese do Malleus maleficarum) e de (b) a dogmática penal alemã, especialmente entre 1933 e 1945. O material que oferece a refinada elaboração do discurso jurídico desses momentos, como legitimação de massacres e aberrações, não pode ser ignorado na hora de se construírem as defesas do direito penal humano.

Dado o considerável material que requer tratar esses temas, não seria possível resumir nesse espaço as pesquisas a seu respeito. Não obstante, mostra-se importante ao menos fazer referência à dogmática penal alemã, por ser a fonte comparada mais imediata da ciência penal local e regional.

Em várias ocasiões ressaltei, com demasiada frequência, que na América Latina (a) importamos a dogmática alemã sem levar em consideração seu contexto sociopolítico, como que se se tratasse de sucessivos modelos de forma que o mais recente superaria o anterior. Do próprio país de origem nos chegava o anseio do pretenso caráter apolítico da dogmática penal, sobre o que refletimos muito; e (b) tampouco refletiu-se profundamente entre nós sobre o que aconteceu na ciência penal alemã entre 1933 e 1945, de forma que predomina a sensação de que se trata de uma interrupção que não tem contato com as etapas anteriores ou posteriores, o que hoje se questiona fortemente na Alemanha.

21. A DOGMÁTICA POLÍTICA NEUTRA

A pretensão de neutralidade política de alguma dogmática alemã não conforma simples capricho, mas responde a fatores históricos de três ordens que pouco ou nada tem a ver com nossa experiência local e regional.

a) Em primeiro lugar, boa parte da dogmática alemã foi elaborada em condições políticas muito negativas, nas quais empunhar o argumento da cientificidade política asséptica era quase uma legítima defesa.

b) Na Alemanha não se pode subestimar o peso das drásticas alterações de regime político e modelos de estado pelos quais esse país passou em pouco mais de setenta anos (império, revolução, república, totalitarismo, ocupação, República Federal em confronto com a Democrática, reunificação). Se diante dessa instabilidade pretende-se manter a continuidade da doutrina jurídico-penal, não resta outro recurso que o de proclamar sua independência da política.

c) Em terceiro lugar, foi a chamada escola de Kiel que sustentou que a dogmática deveria responder ao modelo de estado por sua inexorável vinculação à política, o que - apesar de correto - não seria a melhor lembrança para o penalismo alemão.

Nenhuma dessas circunstâncias se deu no penalismo latino-americano, no qual tem mais peso nesse aspecto a doutrina importada. Ainda que tenham sofrido múltiplos acidentes políticos (intervenções estrangeiras abertas ou encobertas, ditaduras, falsas democracias com proscrições etc.), quase sempre apresentaram-se como restaurações do republicanismo ou da democracia, sem pretender eleger modelos de estado diferentes.

Enquanto na Alemanha cada modelo se apresentou com seu próprio rosto jurídico, na América Latina os mais diferentes modelos reais usaram a máscara jurídica - as vezes a carranca - da República e da democracia. Isso sempre colocou muito em evidência que o plano do dever ser social se distanciava da realização social e política desse programa. Não seria possível negar na região a contradição entre o dever ser da constituição e o ser (realidade constitucional), que em ocasiões chegou a distanciar-se de forma tão abismal que qualquer opinião contraria apenas poderia ser irônica ou hipócrita. Logicamente, menos ainda tivemos uma experiência como a da escola de Kiel.

22. A DOGMÁTICA PENAL IMPORTADA EM SUA ORIGEM

Uma tarefa impostergável seria a de analisar politicamente o material que importamos, que seria um aspecto que quase sempre ignoramos, deslumbrados pela lógica (nem sempre tão perfeita) dos sistemas.

Quando a região superou o grosseiro positivismo perigosista e racista do neoconstitucionalismo, traduzido penalmente numa aliança entre médicos legistas e policiais, a dogmática alemã recém importada impressionou tanto que sem grandes reservas se deu por descontado que era uma garantia de liberalismo.

O primeiro que chegou foi a dogmática de Franz von Liszt e de imediato a pouco compreensível elaboração última de Ernst von Beling e, com grande êxito, o neokantismo penal de Mezger, com alguma pitada da teoria culturalista de Max Ernst Mayer.

Atualmente, os mais renomados historiadores do direito penal alemão estão convencidos de que Binding e von Liszt não sustentavam um direito penal liberal. O positivismo jurídico de Binding era o mesmo dos tempos de Bismarck e seus contornos são análogos aos do posterior fascismo italiano, tanto que von Liszt - com a imputação paralela - deu origem à pena indeterminada para habituais, finalmente consagrada legislativamente pelo nazismo em 1933. Na verdade, a caracterização da dogmática penal alemã anterior ao nazismo como liberal é obra de seus inimigos.

Tampouco o neokantismo que nos chegou era liberal. Entre 1933 e 1945 iniciou-se polêmica entre os neokantianos que sustentavam sua assepsia política, que lhe permitia servir muito bem ao nazismo (Schwinge, Zimmerl, Mezger, Sauer, etc.) como qualquer outro modelo de estado, e que propunham uma dogmática politicamente comprometida com o nazismo (Dahm e Schaffstein). Esses últimos autores demoliram a sistemática neokantiana (aproveitando-se com inteligência das contradições internas do sistema) e elaboraram uma nova dogmática conforme um modelo sistêmico; seu sistema era uma famosa comunidade do povo nazi (Volksgemeinschaft), organicamente configurada como uma colmeia de abelhas.

Terminada a segunda guerra mundial, o finalismo de Hans Welzel recolheu os restos do edifício demolido pelos de Kiel e encarregou-se das contradições neokantianas que estes haviam detectado, recompôs um sistema que deu lugar a um penalismo de recorte conservador, próprio dos tempos de Adenauer, mas que teve o grande mérito de introduzir uma teoria do conhecimento realista com sua tese mais geral das estruturas lógico-reais (sachlogischen Strukturen). Como seria natural, não se animou a transportá-las à teoria da pena.

Novamente, a importação dessa sistemática deu lugar a um equívoco sem precedentes, pois os que inexplicavelmente viam o neokantismo que havia legitimado a legislação nazista como única garantia do liberalismo penal a acusaram de autoritária. E não faltou quem afirmasse em tempo de segurança nacional que abriria o caminho para o marxismo.

Hoje em dia nos manuais alemães predomina uma volta ao neokantianismo (também uma renovação do pensamento sistemático, mas sem muito eco em seu país de origem). Em geral, parece seguir predominante a ideia de que a dogmática penal seria uma ciência independente da política, que evoluiria por impulso interno próprio. Há resistência à incorporação dos dados da realidade social, o que gera um abismo em relação às ciências sociais, que parece recordar o solipsismo dos velhos práticos do século XVIII. Em nossa região, importamos alegremente essa dogmática em meio a realidades que são dramáticas. Seguimos especulando sobre o dever ser da pena, para dizer a nossos juízes como devem impor penas imaginadas quando a pena mais usada é a prisão preventiva processual.

23. AS PULSÕES INUMANAS E O PODER PLANETÁRIO

As pulsões inumanas e seus massacres não são nada distantes do longo processo de expansão do poder planetário que passou pelo colonialismo e pelo neocolonialismo até chegar à atual globalização, mas nesse breve espaço não seria possível analisar essa relação. Não obstante, cabe advertir que as pulsões inumanas descontroladas e seus muitos milhões de mortos não são miudezas pontuais de questões de bairro.

A partir da decadência e do fim do colonialismo e da chamada revolução tecnológica que provocou um fortíssimo salto qualitativo nas comunicações, inaugurou-se a atual etapa de poder planetário ou globalização. Dada a enorme facilidade de comunicação e de controle eletrônico, o poder estatal e o das corporações transnacionais dispõem hoje de uma capacidade de criação de realidade e de controle de conduta de magnitude nunca antes conhecida.

No que se refere à criação de realidade, o potencial do formidável aparato capaz de provocar pânico está livre de dúvidas. A eleição de riscos reais para maximizar depende da região e das modalidades conjunturais: desde o 11 de setembro de 2001 o terrorismo é uma das fontes preferidas porque proporciona um extraordinário álibi para estabelecer controles violatórios da privacidade de toda a população, incluindo a dos máximos políticos mundiais.

Nas regiões onde não existe essa fonte de risco, apela-se à criminalidade organizada, que apresenta manifestações claramente favoráveis para as corporações de países hegemônicos e certas funcionalidades financeiras, sem que fique muito clara tampouco a função anticíclica que cumpre a enorme massa de dinheiro que se recicla constantemente.

Quando nem sequer existe um mínimo de realidade que permita criar algum dos anteriores perigos cósmicos, apela-se à amplificação dos perigos da delinquência comum, levando-a a limites impensados, inclusive em países que registram índices relativamente baixos de homicídios.

24. TRAÇOS COMUNS DA ATUAL PULSÃO INUMANA

Em linhas gerais e a apesar de as pulsões inumanas se manifestarem de forma diferente em cada região e inclusive com variantes dentro de uma mesma região, podemos apontar alguns traços e tendências que tendem a ser generalizadas.

Em princípio, o poder punitivo vai perdendo limite relacionado ao controle eletrônico da condita de toda a população (armazenamento de dados, escutas, registros, cruzamentos, invasão de privacidade, extorsões, etc.). Apesar de não implicar renúncia da intensificação do poder punitivo repressivo, seu aspecto controlador adquire um desenvolvimento predominante, tendente a configurar um estado vigilantista onividente.

O estado policial, vigilante noturno, quartelizado, mínimo, do fundamentalismo do mercado (chamado de liberalismo econômico), passa a ser um estado máximo policial onividente, ainda que paralelamente vá diluindo seu poder político e gerando um caos anárquico no pior sentido do termo, porque importante se faz advertir que esse poder não se esgota nas agências estatais, dado que também dispõem dele corporações transnacionais (as agências estatais autonomizadas alugam ou vendem seus dados), em contexto de claro retrocesso do poder político frente aos grupos de poder financeiro.

Este modelo policial onividente não deixa de matar inimigos naturais, mas já não necessita matar brutalmente os traidores e os perdedores, pois basta-lhe eliminá-los por meio da extorsão midiática. Não se faz possível prever o efeito último dessa modalidade de neutralização: talvez chegue a um momento, no qual perda eficácia porque se tornará comum a divulgação dos atos mais íntimos das pessoas, ou seja, que todos se habituem ao estado onividente e a ninguém importe sua divulgação. Sem dúvida essa seria uma mudança cultural enorme - com resultados inimagináveis - ainda que hoje relativamente distante, de modo que a eficácia da eliminação midiática tem garantido um bom tempo de vigência.

Outra perspectiva de controle eletrônico seria a possibilidade de eliminação ou redução ao mínimo da prisão, tal como a conhecemos na atualidade: as grades seriam substituídas por chips. A atual marcante tendência a aumentar o aprisionamento, mesmo por fatos de escassa gravidade, tem limites, pois a prisão, inclusive em condições deploráveis, tem custos muito altos (e ainda muito maiores quando são privatizados seus serviços), o que de alguma maneira (certamente não a mais racional) coloca um limite ao crescimento da população aprisionada, de forma que o controle eletrônico poderia chegar a ser mais barato e estender-se a um número ilimitado de pessoas. Isso pode acontecer em um futuro não muito distante, o que dependerá do lobby dos fabricantes de prisões.

25. OS SUPERIORES E INFERIORES NA GLOBALIZAÇÃO

Identificam-se nessa pulsão básica do direito penal inumano também algumas tendências claras. Os superiores são os membros do intra-grupo das classes médias urbanas (incluídos), de forma que os estranhos inferiores são todos os excluídos, como os imigrantes do mundo faminto (fenômeno que favorece a tecnologia de transporte e dá lugar a outra criminalidade organizada), os desocupados e empregados temporários (legião relacionada à crise do trabalho e à precarização laboral) ou diretamente os adolescentes de bairros e de assentamentos precários (boa parte da população mundial vive hoje em favelas e tende a aumentar). Tudo isso proporciona uma matéria prima praticamente inesgotável para a transferência da categoria de estranhos para a de inimigos naturais.

Traidores tendem a ser todos do intra-grupo de classe média urbana que denunciam e criticam a arbitrariedade da situação ou que reclamam espaços de protesto e, claro, os juízes e juristas que pretendem impor limites ao exercício do poder punitivo. Todos esses e alguns outros vão integrando a categoria de inimigos declarados.

Os perdedores têm natureza diversa: os eliminados por desqualificação política, ou seja, alguns que são vítimas de novas técnicas midiáticas de eliminação (ainda que sejam chefes do FMI), como também os que perdem no mundo financeiro ou excedem-se em seu poder lesionando a outros poderosos e ficam sem a cobertura da impunidade.

26. AS LINHAS GERAIS DA GLOBALIZAÇÃO

O poder punitivo da globalização responde a um enfrentamento claro entre os modelos de sociedade, ou seja, entre aqueles das pulsões tradicionais que lutam em todo o direito; por um lado a humana, que procura configurar modelos de sociedades inclusivas, que reduzam a estratificação mediante certo grau de redistribuição de renda e aumentando a base da cidadania, por outro lado, a inumada está dominada pelo poder financeiro, que procura reforçar e aumentar a posição daqueles que levam a melhor parte da distribuição e movem poderosos fatores de poder em direção a um direito inumano. À pulsão redistributiva corresponde o modelo de um cidadão mediano trabalhador, de forma que seu contrário constitui a imagem de um cidadão médio vítima de um delito.

À crescente concentração de riqueza (cerca de setenta pessoas possuem o equivalente ao que é possuído pelos três bilhões de habitantes mais pobres do planeta), que postula uma completa liberdade de ação das corporações transnacionais cujo poder vai superando o dos estados nacionais ou comprando sua política, opõe-se um modelo de estado que intervenha para conter e reverter o fenômeno.

A crescente concentração de riqueza produz uma paralela exclusão social, a qual se procura controlar para evitar que se organize e desestabilize o sistema, por meio do qual esse modelo de predomínio hegemônico de corporações requer um poder punitivo em expansão, que nem pode se legitimar novamente por uma ciência penal politicamente neutra ou por uma demanda sistêmica ou organicista, como ocorreu sempre na história dos massacres.

Do ressaltado anteriormente não cabe deduzir que no interior dos próprios estados que procuram uma maior distribuição da riqueza desaparecem as pulsões inumanas, pois estas seguem em confronto em todos os estados e sociedades. A diminuição da violência social em consequência de uma melhor distribuição da renda não é automática. Os oligopólios dos meios de comunicação representam corporações e jogam a favor do direito inumano, colocam em cheque esses estados por meio de sua construção da realidade e determinam reações repressivas que, como defesa primária (em ocasiões perigosamente ingênuas) testam seus próprios dirigentes frente à extorsão mediática.

CONCLUSÃO ABERTA

O punitivismo do nosso tempo de globalização, isto é, do atual avanço do direito penal inumano, exige uma resposta dogmática que proporcione aos juízes (que mesmo que ameaçados dispõem de um espaço de poder jurídico de contenção) um sistema interpretativo de direito penal humano, que já pode ser deduzido de concepções ideológicas imaginadas, pois a Constituição obriga a verificar a realidade constitucional para dar impulso ao avanço de sua realização e conter as pulsões que buscam a reversão, o que exige a incorporação de dados da realidade social, eliminando a tradicional distância entre o direito penal e a sociologia e evitando ao mesmo tempo tanto os reducionismos de um realismo excessivamente sociologizante como os defensivos encastelamentos normatizantes.

O procedimento empírico histórico de uma dogmática penal que aprenda suas lições da experiência dos discursos legitimantes dos crimes das pulsões inumanas descontroladas deve traduzir-se em um direito penal humano muito mais eficaz na contenção da pulsão genocida, em razão da decidida assunção de sua função política que lhe determina a Constituição, bem como pela maior condutibilidade que proporciona o realismo cognitivo frente ao panorama de luta de poder que, por ser essencialmente dinâmico, não pode ser confrontado com idealismo estáticos.

É fundamental avançar com urgência um passo além do tradicional enfrentamento entre o direito penal liberal e autoritário, que hoje perde perigosamente clareza na doutrina e na jurisprudência. É necessário explorar a hipótese da maior utilidade da contenção do poder punitivo do estado por meio de sua substituição pela antítese entre o direito penal humano e inumano, que implicaria passar do relativamente estático ao eminentemente dinâmico, da realidade a sua superação, do deduzido de modelos ideais ao induzido da racionalização de experiências criminais, do opinável ao imposto pela Constituição, da pretensão perfeccionista à realização do mais humano (ou do menos inumano) possível, e de uma dinâmica ideológica e quase sempre idealista a um enfrentamento de forças necessariamente realista.

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