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Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión

Print version ISSN 2307-5163On-line version ISSN 2304-7887

RSTPR vol.3 no.6 Asunción Aug. 2015

 

Nota do Editor

O guarani e MERCOSUL: uma questão de direitos humanos

Raphael Carvalho de Vasconcelos* 

*Tribunal Permanente de Revisión, Paraguay.


Os paraguaios são orgulhosos do guarani. Sim, são. Entre eles. Nas conversas entre paraguaios percebe-se nas piadas e no uso dos termos certa cumplicidade e sensação de pertencimento. Mas esse orgulho parece limitar-se ao mundo informal. O Paraguai formal não usa o guarani. Ou parece sentir-se constrangido ao utilizá-lo. São raras as instituições e os ambientes formais que assumem, de fato, o guarani como língua oficial.

Existem, portanto, dois mundos. O mundo do Paraguai da rua, que aceita e orgulha-se do guarani na informalidade, e o mundo do Paraguai institucional, em espanhol. Apesar de existir comando legal - lei 4251/10 (Ley de Lenguas) - que, em tese, garanta ao idioma protagonismo, o estrangeiro que passa pelo Paraguai tem poucas chances de ingressar no Paraguai autêntico. No Paraguai do Guarani. E muitas vezes esse se torna um elemento exótico, mais uma anedota de viagem.

Outro dado chama atenção. O Paraguai próspero, rico, parece não se sentir confortável em guarani. Em determinados shoppings, restaurantes, no aeroporto - apesar das placas na língua - o idioma oficial é predominantemente o espanhol.

Não cabe discutir as questões históricas que levaram a essa situação. E um estrangeiro não tem, tampouco, legitimidade para fazê-lo. Apenas vale o testemunho do observador externo. Uma opinião que pode ser considerada, com razão, irrelevante.

Permite-se observar, contudo, que a chave da prosperidade do Paraguai pode estar justamente na assunção de suas características, na reconciliação definitiva com seu passado, no traslado do guarani ao posto de destaque que lhe corresponde. Essa pode ser a chave de uma prosperidade inclusiva, fundada na justiça social e nos direitos fundamentais. Mas essa deve ser uma iniciativa dos paraguaios. Uma iniciativa interna - ou mesmo internacional - que depende fundamentalmente dos representantes e das instituições da República do Paraguai.

Trata-se, portanto, de uma questão de direitos humanos. Milhões de pessoas têm o guarani como primeira língua no Paraguai - e também em outros países do MERCOSUL. Respeitar o guarani e reconhecer sua relevância é respeitar e reconhecer os direitos humanos dessas pessoas.

No Tratado de Assunção, em seu artigo 17, estabeleceu-se desde o princípio do MERCOSUL que "os idiomas oficiais do Mercado Comum serão o português e o espanhol". A mesma previsão consta do artigo 46 do Protocolo de Ouro Preto, que fixou a estrutura institucional atual da organização regional.

O MERCOSUL conta, portanto, com apenas dois idiomas de trabalho: o espanhol e o português. Mas e o guarani?

Afirma-se, frequentemente e de maneira equivocada, que o ponto 8 da ata 02/95 da segunda Reunião Especializada de Cultura realizada no dia 02 de agosto de 1995 teria elevado a língua ao status de idioma oficial do MERCOSUL. Além de constituir interpretação incorreta dos fatos e da estrutura normativa do MERCOSUL, esse tipo de afirmação acaba enfraquecendo os esforços para transformar o guarani em língua de trabalho da organização. Ao sustentar o alcance de algum status relevante por meio da referida ata, permite-se - como argumento contrário ao pleito de oficialização - que se assevere já ser esse um objetivo alcançado. O que seria mera falácia.

Juridicamente, portanto, uma ata é completamente distinta de uma norma primária ou secundária do MERCOSUL. O texto da ata de uma reunião, ainda que tenha efeitos declaratórios de direito, não vincula as partes como um tratado ou como uma decisão do Conselho do Mercado Comum ou resolução do Grupo do Mercado Comum. Para que a relevância do guarani seja reconhecida definitivamente, sua condição de língua oficial e, portanto, de trabalho, deve ser oficializada por norma.

Mas a quem caberia o pleito? Quem possuiria o mandato natural para exigir o reconhecimento do guarani como língua oficial do MERCOSUL?

Considerando ser o Paraguai o país - de longe - com a maior população que tem o guarani como língua materna e o fato de sua constituição nacional elevá-lo à condição de idioma oficial, os representantes paraguaios seriam as autoridades com atribuições naturais para impor à organização o fortalecimento do idioma.

Ao contexto descrito, vozes levantam-se afirmando que não seria do interesse dos outros membros da organização que o guarani fosse reconhecido como língua oficial. Que haveria oposições duras, por exemplo, não ao pleito em tese, mas aos custos da contratação de tradutores, intérpretes e de outros profissionais para concretizar uma eventual oficialização. Não se pode supor, contudo, que haverá oposição sem que se apresente a reivindicação. Não atuar imaginando resistência seria matar o rinoceronte para protegê-lo de caçadores. Impossível se faz imaginar desprezo pela ideia, sem que essa seja colocada sobre a mesa.

Mais que isso, observa-se que os argumentos em favor do guarani como língua oficial do MERCOSUL possuem natureza jurídica. O primeiro deles, de caráter eminentemente internacional, diz respeito à língua como direito humano. Diversos são os instrumentos internacionais - declaratórios ou cogentes - que tratam dos direitos das pessoas humanas e impossível se faz imaginar o desenvolvimento pleno de um determinado indivíduo e sua inserção em um contexto social sem que seus direitos linguísticos sejam reconhecidos e protegidos. Sob a perspectiva internacionalista dos direitos humanos, a proteção do guarani constituiria condição fundamental para a plena inclusão de seus falantes em uma experiência integracionista.

Assim sendo, e em uma primeira análise, difícil se faria prosperar oposição ao reconhecimento do status do guarani como língua oficial do MERCOSUL quando fundamentado nos direitos humanos. Nenhum sócio poderia se opor. Nem mesmo o interessado principal poderia se opor.

No que se refere justamente à posição do interessado maior - do Paraguai - no pleito, importante se faz assinalar o status constitucional interno do guarani como língua oficial. O artigo 140 da Constituição da República do Paraguai de 1992 estabelece que tanto o espanhol quanto o guarani são línguas oficiais do país. Ressalvadas as críticas à classificação de normas, pode-se questionar a natureza do referido artigo: se norma de eficácia limitada ou contida. A interpretação mais acertada deve reconhecer seu caráter meramente limitado, ou seja, como um mandato constitucional para que o legislador ordinário regulamente a plenitude do exercício do direito constitucionalmente reconhecido.

Nessa toada, o artigo 140 da constituição paraguaia vincularia os agentes públicos do país à instrumentalização dos idiomas espanhol e guarani como oficiais da república. No campo da elaboração de normas, essa tarefa caberia, internamente, plenamente ao legislador e, internacionalmente, também ao executivo no exercício de suas atribuições para celebrar tratados - em cumprimento estrito do disposto no artigo 4 da acima referida lei 4251/10.

Nesse contexto, detalhe interessante ressalta. A constituição paraguaia data de 1992 e o Tratado de Assunção, que institui o espanhol e o português como idiomas oficiais, foi celebrado em 1991, ou seja, antes da nova constituição do país. Tal contexto cronológico serve de argumento para que o guarani não tivesse sido incluído no acordo marco da organização.

A mesma lógica não procede, contudo, quanto ao Protocolo de Ouro Preto de 1994. Quando da elaboração do artigo 46 do tratado que fixou a estrutura institucional do MERCOSUL, já havia sido promulgado o artigo 140 da constituição da República do Paraguai e perdeu-se oportunidade histórica para regulamentar os direitos nele reconhecidos no protocolo celebrado em Minas Gerais.

À sociedade paraguaia e a seus representantes corresponde impor internamente e internacionalmente o debate para a valorização do guarani - respaldando, por exemplo, o admirável esforço desenvolvido atualmente pela Secretaria de Políticas Linguísticas. Mais que isso, no contexto internacional, considerando as particularidades dos processos de integração regional - distintos do multilateralismo que permite a eleição de reduzido número de línguas de trabalho - a recategorização do guarani impõe-se com fundamento teórico nos direitos humanos e com base legal na constituição da República do Paraguai.

Mas qual seria o panorama atual do guarani no MERCOSUL?

A iniciativa mais expressiva para o reconhecimento do guarani como língua oficial da organização regional partiu do Parlamento do MERCOSUL. Em março de 2014 foi celebrado convênio entre o legislativo regional e a Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai para a seleção de tradutores de guarani a serem contratados pelo órgão. A seleção ocorreu e os primeiros dois tradutores foram admitidos. Trata-se de iniciativa pontual de um órgão do MERCOSUL, mas essa tem simbologia importante por ter sido adotada pelo braço legislativo da organização.

O caso do Tribunal Permanente de Revisão - TPR - é bastante mais limitado. Pouco pode ser feito em termos institucionais. Por um lado, não existe autonomia suficiente para transformar o guarani em língua de trabalho e, por outro, a verba de que dispõe o tribunal em seu orçamento para traduções é bastante reduzida. A realização do Primeiro Seminário da Língua Guarani do TPR em 2014 e a proposta apresentada a importantes instituições e profissionais da língua para a formação de um glossário de termos em guarani sobre o MERCOSUL conformam o modesto aporte que a instituição pode fazer. Ainda que não seja o suficiente, foi o possível.

Das considerações feitas, resta a mensagem de que a recategorização do guarani como idioma oficial do MERCOSUL constitui questão de direito linguístico e, portanto, de direitos humanos. Percebe-se que esse direito já se encontra devidamente reconhecido pela constituição e pelas leis da República do Paraguai e que seus agentes públicos possuem mandato para exigir do processo regional a elevação do idioma ao status de língua de trabalho.

Que um dia o guarani cobre o posto que lhe corresponde não apenas na história e na cultura, mas também nas instituições paraguaias e do MERCOSUL.

Tribunal Permanente de Revisão: Direito para a Integração

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