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Revista Internacional de Investigación en Ciencias Sociales

On-line version ISSN 2226-4000

Rev. Int. Investig. Cienc. Soc. vol.13 no.2 Asunción Dec. 2017

https://doi.org/10.18004/riics.2017.diciembre.239-252 

ARTICULO ORIGINAL

Escola como espaço de transformação: a articulação da educação, pobreza e desigualdade social no currículo escolar

School as transformation space: the articulation of education, poverty and social inequality in the school curriculum

Zélia Maria Melo-de Lima Santos1 

1Universidad Autonoma de Asunción. Paraguay. Email: zeliammelo@hotmail.com


RESUMO

Este artigo é uma pesquisa qualitativa com análise documental que investiga o contexto real de uma Escola da Rede Estadual de Ensino do Estado de Pernambuco/Brasil tem como objetivo identificar no Projeto Político Pedagógico (PPP) se contempla metas e ações que garantam a efetivação dos direitos humanos dos alunos, com o propósito de problematizar a repercussão da desigualdade social no currículo escolar, colocando em discussão as práticas pedagógicas. Em caso de atitudes de desrespeito aos direitos humanos na comunidade discente, reavaliar o PPP, buscando uma mudança de postura dos docentes através da formação continuada. O problema desse enfoque é que, se os pobres são vistos como carentes e inferiores em capacidades de atenção, esforço, aprendizagem e valores, acabam sendo responsabilizados por sua própria condição. Assim, são constantemente inferiorizados, reprovados e segregados, consequências da falta de atenção dada pela cultura política, pedagógica e docente às carências materiais, à fome e aos corpos tomados pela pobreza. A metodologia utilizada é de uma pesquisa qualitativa focada na análise documental que permite contextualizar a ideia de educação como direito. Os resultados alcançados se revertem em propiciar uma reflexão acerca da pobreza no currículo desta Escola, possibilitando a inserção de práticas voltadas a inclusão dos mais pobres no currículo da Unidade Escolar.

Palavras-chave: educação; pobreza; currículo escolar.

ABSTRACT

This article is a qualitative research with documentary analysis that investigates the real context of a State School of the State of Pernambuco / Brazil and aims to identify in the Political Pedagogical Project (PPP) if it contemplates goals and actions that guarantee the fulfillment of human rights of students, with the purpose of problematizing the repercussion of social inequality in the school curriculum, putting in discussion the pedagogical practices. In case of attitudes of disrespect to human rights in the student community, reassess the PPP, seeking a change of attitude of teachers through continuing education. The problem with this approach is that if the poor are viewed as needy and inferior in attention, effort, learning, and values, they are blamed for their own condition. Thus, they are constantly inferior, reprobate and segregated, consequences of the lack of attention given by the political, pedagogical and teaching culture to the material needs, the hunger and the bodies taken by the poverty. The methodology used is a qualitative research focused on documentary analysis that allows to contextualize the idea of education as a right. The results achieved will lead to a reflection about poverty in the curriculum of this School, allowing the insertion of practices aimed at including the poorest in the curriculum of the School Unit.

Key words: education; poverty; school curriculum.

INTRODUÇÃO

A educação como direito social e humano passa a ter visibilidade no século XX. Atualmente, assistimos ao crescimento de organizações de movimentos buscando o reconhecimento dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e ambientais, vê-se ainda presente a exclusão dos direitos básicos do ser humano.

O sistema educacional, fruto de um processo histórico, configura-se no bojo das relações sociais e de produção, que dividiram e ainda dividem a sociedade em grupos econômicos distintos e, ainda mais, estabelece uma relação entre classes sociais antagônicas.

Portanto, interessa-nos discutir a chegada dos desiguais à escola, partindo do pressuposto de que a escola é uma instituição marcada pela homogeneidade.

Ao nos depararmos com uma nova realidade, o acesso de todos à escola, garantido em lei, defrontamo-nos com a necessidade de repensar o currículo escolar como articulação da educação, da pobreza e da desigualdade social.

Consideramos a importância de refletir sobre as condições efetivas para que uma escola propicie as condições necessárias na acolhida, no acesso e na permanência de todos.

No entanto, existe a necessidade de uma reflexão sobre a pobreza no âmbito escolar, ou seja, ela deve ser incorporada aos currículos. Um caminho para articular pobreza e currículo pode começar por identificar que experiências, que práticas acontecem nas escolas que procuram incorporar as vivências e a história da pobreza nos currículos, seja de Educação Básica - da educação infantil ao ensino médio e a EJAI -, seja nos currículos dos cursos de licenciatura. A ideia é procurar compreender o currículo na prática, ou seja, se professores-educadores (as) tratam desse assunto e como incorporam a pobreza nos currículos, nos temas de estudo e no material didático.

A Escola, lócus da pesquisa, é uma Unidade Escolar que se encontra inserida na zona urbana da cidade de Passira/Pernambuco, com uma população de discentes vindos da cidade e do interior, porém pertencentes a uma classe social baixa. Daí a importância de trabalhar este tema mesmo porque a desigualdade social é elemento cada vez mais presente no cotidiano das cidades brasileiras. Este fenômeno tem se caracterizado como marca dos centros urbanos, que são capazes de congregar, em uma mesma localidade, diferentes grupos sociais com interesses econômicos, políticos e sociais antagônicos.

Dado o contexto de exclusão desta cidade e a importância que a Educação assume neste processo, uma vez que a escolarização pode fazer a diferença na vida das pessoas, a atuação nesta escola foi fundamental para instigar e refletir sobre a desigualdade social, seu impacto no sistema educacional e sobre alguns desafios inerentes à prática pedagógica com vistas à superação deste quadro.

Desta forma, o problema desta pesquisa centra-se em saber que currículo poderá favorecer o processo de entendimento, por parte dos sujeitos tomados pela pobreza, na compreensão de um passado tão persistente, que invade seu presente, sua sobrevivência hoje, e condiciona o seu futuro?

O objetivo deste trabalho é identificar no Projeto Político Pedagógico (PPP) se o mesmo contempla metas e ações que garantam a efetivação dos direitos humanos a toda clientela discente, aqueles menos favorecidos, que vivem em situação de extrema pobreza e como são engajados nas atividades escolares seja nas de cunho intelectual ou cultural.

Pobreza e cidadania, direitos humanos, justiça e educação - pobreza e currículo, uma complexa articulação

Convém pontuar que a pobreza leva à falta de instrução, uma vez que as crianças são obrigadas a deixar a escola para trabalhar e ajudar a família, enquanto a falta de instrução perpetua a pobreza, pois, sem instrução e qualificação, não há como entrar no mundo do trabalho e sair dessa condição. A exclusão econômica resulta, por sua vez, em exclusão social e politica, visto que os pobres passam a viver à margem da sociedade, com pouca capacidade de se organizarem para fazer com que suas vozes sejam ouvidas, pois faz-se necessário lembrar que a existência da cidadania como situação histórica supõe, necessariamente, um complexo de condições politicas, sociais, econômicas e culturais. Por exemplo, se uma sociedade não garante que todos os seus membros tenham as mesmas oportunidades de acesso ao bem-estar, à cultura e à educação em sentido amplo, tal sociedade apresenta déficits enormes de democratização de sua estrutura social e política. Isso contamina, de forma nociva, o convívio cívico do corpo social, pois o hábito de conviver com a injustiça, o desrespeito e a desigualdade torna todos os habitantes de uma nação embrutecidos e insensíveis à dor do outro e assim de modo geral, os pobres não são ouvidos e muito menos respeitados. Não se lhes aplica o “direito ao respeito” como um direito civil de cidadania. Georg Simmel, em um trabalho de 1906, denominado O pobre, já se referia ao fato dos pobres somente serem reconhecidos pelo Estado na condição de “assistidos” e nunca como sujeitos dotados de vontade própria.

Marshall, (1967, p. 63-64), fala em gerações de direitos, pois, segundo sua observação, historicamente as conquistas dos direitos sociais pressupõe a conquista dos direitos políticos que, por sua vez, pressupõe a conquista dos direitos civis.

A questão da desigualdade, nos últimos anos, tem se tornando objeto de muitos estudos e, em alguns casos, de livros que viraram verdadeiros best sellers. Um deles é, The Spirit Level, de Richard Wilkinson e Kate Pickett: dois epidemiologistas, embora o primeiro tenha se ocupado também de história econômica e a segunda, de antropologia física. Esses dois autores demonstram, com base em uma quantidade impressionante de estudos empíricos, que a desigualdade de renda e riqueza em uma sociedade piora efetivamente, a qualidade de vida, inclusive a das pessoas que se situam no extremo superior da escala social, dos “ricos” e, até mesmo, dos “super-ricos”.

Wilkinson e Pickett (2010, p 29) pontuam, com base nos dados, que a redução da “ [...] desigualdade é a melhor maneira de melhorar a qualidade do ambiente social e, como consequência, a real qualidade de vida para todos”.

Os dois autores citam, muitos estudos que mostram como os resultados escolares são profundamente influenciados pela posição social dos pais (Wilkinson; Pickett, 2010, p. 105). Nessa perspectiva, crianças provenientes de famílias pobres não vivem em um ambiente favorável à sua atividade de estudo.

Essas crianças, quando não são obrigados a deixar a escola para trabalhar e contribuir à renda familiar, tem de lidar com situações domésticas que representam um obstáculo ao estudo: falta de um espaço adequado para se sentar e se concentrar; ausência de livros ou de acesso à internet para fazer pesquisas; obrigação de cuidar dos irmãos menores, etc. Além disso, eles testemunham, frequentemente, episódios de violência doméstica e não recebem um apoio adequado de seus pais, os quais, quase sempre, possuem escolaridade baixa ou nula não sendo capazes, ou mesmo dispostos, a apoiá-los em seus deveres e nesse sentido, há pesquisadores que falam da má fé das instituições, inclusive da instituição escolar (Freitas, 2009, p. 294), para salientar o aspecto objetivo da ausência de políticas públicas eficazes (de planejamento, de alocação de recursos, etc.), por um lado; e das atitudes de desinteresse por parte de representantes das instituições (professores, diretores de escola, etc.), por outro.

Podemos afirmar que a Educação em Direitos Humanos nasce com a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao se referir, como já vimos, à necessidade de que os direitos ali solenemente declarados sejam objetos de instrução. Mas é na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 1993, que a sua Declaração e Programa de Ação realçam a importância da inclusão do tema nos programas educacionais, apelando aos Estados para que assumam essa tarefa. Está registrado nesse instrumento.

A Conferencia Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que os Estados estão moralmente obrigados, conforme estipulados conforme na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, sociais e culturais e noutros instrumentos internacionais sobre Direitos Humanos, a garantir que a educação tenha o objetivo de reforçar o respeito pelos Direitos Humanos e as liberdades fundamentais [...]. A educação deverá promover a compreensão, a tolerância, a paz e as relações amigáveis entre as nações e todos os grupos raciais ou religiosos e encorajar o desenvolvimento de atividades das Nações Unidas na prossecução desses objetivos. (Declaração e programa de ação de Viena, 1993, P. 9).

Especificamente no campo da Educação em Direitos Humanos, a resposta do Estado brasileiro ao chamamento iniciado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e explicitado na Conferência Mundial de Viena se deu com a criação, em 2003 do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, formado por especialistas e representantes da sociedade civil, de instituições públicas e privadas e de organismos internacionais, cuja tarefa prioritária foi a elaboração de um plano nacional que se constituísse em um documento de preferência para a discussão das políticas, ações e programas comprometidos com uma cultura de respeito aos direitos humanos.

As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos foram aprovadas em 2012 por meio do Parecer CNE/CP nº 8/2012 e respectiva Resolução CNE nº 1/2012, adotando como princípios: a dignidade humana, a igualdade de direitos, o reconhecimento e a valorização das diferenças e das diversidades, a laicidade do Estado, a democracia na educação, a transversalidade, a vivência, a globalidade e a sustentabilidade ambiental. Fixou, ainda, como objetivos: a construção de sociedades que valorizem e desenvolvam condições para a garantia da dignidade humana; o reconhecimento pessoal como sujeito de direitos, capaz de exercê-los e promovê-los, ao mesmo tempo em que reconheça e respeite os direitos do outro; o desenvolvimento da sensibilidade ética nas relações interpessoais, em que cada indivíduo seja capaz de perceber o outro em sua condição humana e ainda consideraram ainda as Diretrizes Curriculares que a inserção dos conhecimentos concernentes à Educação em Direitos Humanos nos currículos poderá se dar, respeitada a autonomia dos sistemas e das instituições, pela transversalidade de temas tratados interdisciplinarmente, como conteúdo específico de disciplina já existente ou de maneira mista, combinando transversalidade e disciplinaridade.

Vera Candau (2008), ao refletir sobre as questões pedagógicas da Educação em Direitos Humanos, reforça e explicita a polissemia da expressão, chamando a atenção para a necessidade de que ela não seja confundida ou substituída por outras com sentido mais amplo como “educação cívica”, ou “educação democrática”, ou que a restrinjam a uma “educação em valores”, expressão que não dá conta necessariamente do caráter político de que a Educação em Direitos Humanos é dotada.

O PNEDH (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos), propõe que as experiências de Educação em Direitos Humanos devem se constituir um elemento relevante para a vida da comunidade escolar, envolvendo todos os seus participantes em um diálogo sobre maneiras de aplicar os direitos humanos na sua vida e na sua prática cotidiana. O documento defende, também, que a escola apoie a implementação de projetos culturais e educativos de enfrentamento a todas as formas de discriminação e violações de direitos no ambiente escolar e fora dele; e que incentive, além disso, a elaboração de projetos pedagógicos em articulação com as redes de assistência e proteção social, de maneira particular para aquelas ações voltadas à eliminação da extrema pobreza, com políticas de distribuição de renda e de segurança alimentar. A escola pode, ainda, promover a mobilização e a organização de processos participativos em defesa dos direitos humanos de grupos em situação de risco e vulnerabilidade social.

O modelo de escola e de cultura escolar que ainda hoje é hegemônico em nossa sociedade surge com o nascimento do Estado-Nação e com a necessidade de se ter uma única cultura circunscrita a um único território. Logo, a escola pública, que deveria ser igual para todos, acaba por reproduzir e reforçar as desigualdades econômicas, sociais e políticas presentes em nossa sociedade.

A cultura da homogeneização se arraigou na prática pedagógica da maioria das escolas, transformando muitos e diversos sujeitos em alunos de uma determinada série. A categoria aluno, como bem coloca Gimeno Sacristán (2005), é uma construção social que padroniza corpos, mentes, desejos e aprendizagens.

De certa maneira, isso dá muita segurança aos professores, pois é possível ter um controle muito maior sobre o trabalho, além de desprender menos esforços com o planejamento da série feito, é necessário apenas repeti-lo, ano a ano. Por outro lado, a bagagem cultural dessas crianças e desses jovens que chegam à escola é desconsiderada, desprezada e deslegitimada, já que esta obriga que se encaixem em um modelo que muito se distancia de suas experiências sociais.

Os conteúdos, organizados de forma compartimentada nas disciplinas, passam a ser os únicos aspectos considerados nessa organização. E, para avançar em determinados conteúdos, é preciso vencer os chamados “pré-requisitos”. O resultado disso é a reprovação e a exclusão escolar de muitas crianças e muitos jovens que não se reconhecem nessa escola, nesse currículo, nesses materiais, pois são jovens originários dos coletivos pobres, excluídos dos espaços públicos e do direito de ver sua cultura retratada nos livros escolares, nos materiais didáticos.

Em primeiro lugar, ressalta-se que considerar os sujeitos no centro do processo educativo implica muito mais que colocar a formação de sujeitos críticos e participativos como um dos objetivos do Projeto Político Pedagógico da escola. Considerá-los no centro do processo educativo acarreta reorganizar tempos, espaços, agrupamentos, conteúdos escolares. Importa também em mudar o lugar de educandos e educadores na dinâmica do trabalho e, principalmente, em transformar a vida da escola, entendendo-a como espaço de cultura.Realmente, essa dificuldade pode ser explicada se considerarmos que, para trabalhar com a diversidade em sala de aula, é preciso admitir que os estudantes são sujeitos de vivências diferenciadas e que constroem seu referencial de pensamento e de ação a partir delas.

Ferreiro (2002), coloca que a escola, historicamente encarregada de homogeneizar, de igualar, nunca soube lidar com a diversidade. O resultado dessa falta de reconhecimento foi o surgimento do fracasso escolar, tão conhecido de crianças, jovens e adolescentes das camadas populares. Dessa forma, a diversidade de grupos sociais presentes na escola passa a ser identificada como deficiência escolar, justificada pela condição social e cultural dos sujeitos, com a “culpa” do revés depositada na pobreza, na desestruturação da família, na falta de estímulo do meio cultural em que esses alunos vivem. E esse insucesso acaba tendo rosto: crianças e jovens que fracassam na escola, em sua grande maioria, são pobres, negros, índios, camponeses, moradores de regiões menos favorecidas.Assim, abre-se um parêntese para falar sobre as avaliações em grande escala, que são difundidas e valorizadas nos tempos atuais e que são exemplos dessa homogeneização. Ao ser desconsiderada a diversidade de realidades dos sujeitos, é aplicada uma única “avaliação”, em um mesmo formato, para todos os estudantes, e depois divulgado o resultado, ranqueia-se sujeitos, escolas, regiões. Não é difícil imaginar, portanto, quem são os que se saem pior nesses testes, crianças e jovens dos coletivos feitos desiguais. Esses têm de suportar o estigma de serem os mais fracos, os com “déficit de aprendizagem”, os carentes intelectuais, os fora da idade certa para se alfabetizarem.

O currículo é associado ao elenco de disciplinas a serem ofertadas em cada série, porém, ao nos determos sobre essa discussão, podemos afirmar que o currículo é uma ponte entre a cultura e a sociedade exteriores às instituições de educação, ele também é uma ponte entre a cultura dos sujeitos, entre a sociedade do hoje e do amanhã, entre as possibilidades de conhecer, saber se comunicar e se expressar em contraposição ao isolamento da ignorância. (Sacristán, 2013, p. 10). Assim, o currículo é inerente a todas as instituições educacionais e se desenvolve de múltiplas formas, pois essas instituições trabalham e defendem uma cultura que se expressa por meio dele. Assim, a compreensão que temos sobre currículo é determinante nas nossas ações pedagógicas, nas escolhas que fazemos e nas estratégias que adotamos. Podemos afirmar que “currículo é tudo que acontece na escola”. Partindo dessa perspectiva, adotamos o conceito de que currículo é o conteúdo cultural que as escolas difundem, bem como constitui-se dos efeitos que esses conhecimentos provocam nos sujeitos (Sactistán, 2013). Ele, é, portanto, um artefato social e cultural (Moreira; Silva, 2008). Reflete “[...] todas as experiências organizadas pela escola que se desdobram em torno do conhecimento escolar”. (Moreira, 2001, p. 68, grifos no original). Exprime a ideologia, as relações de poder e a cultura de cada unidade escolar. O currículo nunca é neutro. Podemos, por exemplo, reproduzir as desigualdades e injustiças sociais ou contribuir para a construção de uma sociedade efetivamente democrática. Convivemos com três tipos de currículo: um formal, um real e um oculto.

Na organização curricular das escolas, Veiga (2002) elenca alguns pontos básicos:

O currículo não é um instrumento neutro, pois reproduz ideologia e a escola precisa identificar e reconhecer os componentes ideológicos do conhecimento escolar que a classe dominante utiliza para a manutenção de privilégios. A determinação do conhecimento escolar implica uma análise interpretativa e crítica da cultura dominante ou da cultura popular. Em suma, o currículo expressa uma cultura. b) O currículo não pode ser separado do contexto social, por estar historicamente situado, socialmente produzido e culturalmente determinado. c) O tipo de organização curricular que a escola adota deve ser refletido, pois as instituições de ensino têm sido orientadas para organização hierárquica e fragmentada do conhecimento escolar. No entanto, a escola deve buscar uma nova forma de organização curricular na qual o conhecimento sistematizado para cada disciplina (o conteúdo), estabeleça uma relação aberta e inter-relacionada em torno de uma ideia integradora - o currículo integração - com o objetivo de reduzir o isolamento entre as disciplinas curriculares. d) O currículo formal (conteúdos curriculares, metodologia e recursos de ensino, avaliação e relação pedagógica) atende ao controle social. Por outro lado, esse controle é instrumentalizado pelo currículo oculto.Para tanto, o primeiro passo é identificar os obstáculos encontrados por esses coletivos de profissionais para relacionar pobreza e currículo, e também perceber como a pobreza é abordada nos documentos legais que orientam o currículo na escola. Ao analisarmos as Diretrizes Curriculares de Educação Básica e as Diretrizes Curriculares de Formação Docente, perceberemos que as referências à pobreza estão diretamente ligadas ao papel da educação como um dos elementos fundamentais para combatê-la, porém, continua não havendo lugar para as vivências da pobreza e para a discussão da sua produção histórica.

Na cultura pedagógica e curricular vigente, o caminho escolar teria como ideal apropriar-se do conhecimento, da ciência e das tecnologias; reconstruir outros espaços, outros tempos e outras formas de pensar e de trabalhar, com valores de esforço, superação e empreendedorismo. Logo, esses currículos não dialogam com os pobres ou com a pobreza, nem para entendê-la nem para que os pobres compreendam sua própria condição. Os currículos têm ignorado a pobreza e os pobres como coletivos, e isso resulta exatamente no oposto do que se promete, pois contribui para manter os indivíduos atolados em formas de viver distantes e assim as grandes expectativas depositadas sobre a educação são, muitas vezes, condicionadas a um pensamento que deposita na educação a solução para todos os males, com o cumprimento bem-sucedido de um percurso curricular que, hipoteticamente, tem o poder de libertá-los da circularidade da pobreza ou do pensar irracional, ignorando a necessidade de mudança das relações sociais que produzem a pobreza.

A desmistificação, por parte dos coletivos docentes e discentes, desses entendimentos ainda dominantes de relacionar conhecimento, cultura e racionalidade com progresso e com “superação” da pobreza pode ser o caminho, o início da possibilidade de avançar para outra relação entre currículo, conhecimento, cultura científica, percurso escolar e pobreza.

Nessa visão do conhecimento e da cultura predominante nos currículos, não há espaço para articulação entre currículo e pobreza, mas apenas para ignorar os pobres como fechados no ponto zero ou na outra margem. Os currículos limitam-se a manter os pobres desde crianças na escola infantil, em um permanente exercício de cobrança de percursos exitosos que levam a processos de avaliação rigorosos, segregadores e reprovadores. Além disso, levam as escolas a cumprir o papel de reprovar massivamente os pobres por, supostamente, “não terem cabeça para as letras”, por problemas mentais de aprendizagem, ou ainda por não incorporarem os valores de trabalho, estudo, sucesso e persistência necessários para entrar no progresso e saírem do círculo da pobreza. Essa visão moralizante da pobreza é incorporada pela cultura escolar, criando o ambiente em que socializa a infância e adolescência pobre.

Construir currículos que garantam o direito dos alunos pobres a entenderem sua condição de pobreza não é tarefa simples, uma vez que os conhecimentos dos currículos continuam cultuando um conhecimento abstrato e conceitual que ignora, sobretudo, os sujeitos sociais e suas experiências. Relacionar currículo e pobreza exigirá aproximar os conhecimentos daquele com as experiências sociais da pobreza, com os sujeitos individuais e coletivos que as vivenciam; demandará colocar em diálogo suas indagações sobre a pobreza, suas causas, sua produção histórica com as indagações históricas que os conhecimentos dos currículos condensam.

METODOLOGIA

Esta é uma pesquisa qualitativa que investiga o contexto real de uma Escola da Rede Estadual de Ensino do Estado de Pernambuco/Brasil. Para tanto, elegeu-se a análise documental. Como se trata de uma importante ferramenta para a pesquisa qualitativa, a descrição detalhada sobre o uso de tal técnica, bem como a revisão teórica apresentada, são contribuições metodológicas importantes do presente estudo.

A escolha desta escola como campo empírico de pesquisa ocorreu por estar localizada numa área de risco, atendendo a uma população de alunos oriundos de famílias de baixa renda, onde o índice de violência é crescente, levando-os a fazer parte de uma população de vulneráveis. Além disso, apresentou um índice de evasão no ano de 2015 de 37%. Portanto, a escolha desta escola se deu pela realidade específica apresentada.

O levantamento de dados foi realizado através da análise de documentos oficiais da referida escola, ou seja, do Projeto Político Pedagógico (PPP).

Com o propósito de alcançar o objetivo da pesquisa foi utilizada a observação como instrumento metodológico, pois segundo Deus (2011), o observador assume uma postura ativa nos eventos que estão sendo estudados. Assim houve a necessidade da participação em três encontros pedagógicos dos professores que serviram para reestruturação do PPP da referida escola. Além disso, 5 (cinco) docentes fizeram o Curso de especialização em Educação, Pobreza e Desigualdade Social, o que foi determinante para a reestruturação do PPP no sentido de relacionar currículo e pobreza, colocar em diálogo as indagações sobre a pobreza, suas causas, sua produção histórica com as indagações históricas que os conhecimentos dos currículos condensam.

ANÁLISE DE DADOS

De acordo com os documentos analisados, observou-se que a referida escola tem um total de 1.342 alunos matriculados no ensino fundamental e médio, com um índice de evasão de 37% desses discentes e que os mesmos são oriundos de classes sociais média e baixa do centro urbano e rural do município de Passira/Pernambuco, fato que chama a atenção para realização deste trabalho.

A ênfase da investigação centrou-se no Projeto Político Pedagógico (PPP) da Escola e sua relação com a pobreza, procurando identificar situações que apresentam sinais de desrespeito aos direitos humanos, buscando-se a partir desses sinais reavaliar o PPP da Escola, proporcionando à comunidade escolar possibilidades de mudança de postura através da formação continuada dos professores e de todos os envolvidos com o Projeto de Educação Escolar.

Obteve-se a confirmação de que o currículo escolar assume apenas a responsabilidade de oferecer aos alunos os conhecimentos acumulados sobre a natureza, a sociedade, o espaço, a história, a linguagem.

Descrevemos e analisamos os dados coletados nesta pesquisa e para isso tomamos como base as considerações teóricas discutidas anteriormente, dividindo em dois momentos distintos, sendo o primeiro a análise do Projeto Político Pedagógico (PPP) da Escola e o segundo momento a formação continuada dos professores.

No primeiro momento apresenta-se a análise documental baseada no Projeto Político Pedagógico (PPP) da Escola, evidenciando-se no currículo a falta de espaço para a articulação entre currículo e pobreza, apresentando limitações quando se imprime as cobranças de percursos exitosos que levam a processos de avaliação rigorosos, segregadores e reprovadores, além disso, leva a escola a cumprir o papel de reprovar massivamente os mais pobres por, supostamente, “não terem cabeça para as letras”, por problemas mentais de aprendizagem, ou ainda por não incorporarem valores de trabalho, estudo, sucesso e persistência necessários para entrar no progresso e saírem do círculo da pobreza.

É importante apresentarmos algumas considerações expostas no PPP da Escola. Apontamos a hegemonia do currículo quando desconsidera as diferenças regionais, culturais, econômicas e políticas existentes entre os alunos, avalia todos indiscriminadamente, com base nos saberes dominantes, considera os alunos

“puros espíritos, desprovidos de corporalidade, apenas receptores de conhecimentos, e acima de tudo, pensado unicamente para o mercado de trabalho.

O segundo momento corresponde a formação continuada dos professores com a finalidade de abordagens teóricas metodológicas no intuito de repensar as práticas docentes assim como garantir no PPP uma Proposta Pedagógica agregadora, com base na inclusão principalmente dos mais pobres, proporcionando a diminuição da reprovação dos alunos.

Considerando todas essas possibilidades e com base no resgate da compreensão dos professores sobre currículo, ele é associado ao elenco de disciplinas a serem ofertadas em cada série; porém, ao nos determos sobre essa discussão, podemos afirmar que o grande desafio, porém, está em romper com o que está colocado nos documentos que norteiam as ações pedagógicas da escola como o Projeto Político Pedagógico (PPP) e o currículo, onde mostra uma concepção de conhecimento e de cultura sintetizada que está marcada por uma noção linear do tempo e do espaço e que culmina em uma visão desenvolvimentista, pela qual há uma promessa de progresso por meio do processo escolar. Ainda, de acordo com essa visão, a escola trabalha no alinhamento de formar profissionais para o mercado de trabalho e, para isso, desenvolve nas pessoas uma mentalidade utilitarista e produtivista. Isso significa que a escola sustenta um discurso de que ela mesma seria um rito de passagem capaz de romper o círculo vicioso da pobreza.

A trajetória de estudos na formação continuada dos professores serviu para que fosse feito um trabalho diferenciado na Escola. Primeiramente se inseriu questionamentos abordando currículo e pobreza, promovendo assim uma readequação do Projeto Político Pedagógico e do Currículo da Escola às propostas de inclusão. Em seguida, iniciou-se a reestruturação desses documentos, pois os mesmos subsidiariam e ofereceriam o norte para as mudanças.

Finalmente a escola, locus da pesquisa, assume uma postura de inclusão dos mais pobres e como os mesmos são pensados no currículo, nas teorias pedagógicas, no material didático e na cultura escolar e docente.

A Escola passa de um currículo hegemônico para um currículo que se articula com a pobreza, quando considera as diferenças regionais, culturais, econômicas e políticas existentes e reconhecem os coletivos empobrecidos como portadores de vivências e de questionamentos que refletem a própria realidade; avalia todos, os “outros” saberes trazidos; dão centralidade aos corpos, reconhecendo-os como o eixo das vivências e dos saberes de alunos e alunas; estimulam o questionamento crítico a respeito da realidade social, ou seja, abrem espaço para a reflexão sobre os problemas sociais, entre eles, a existência e a persistência da pobreza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve o propósito de analisar questões relativas à pobreza e o currículo. Considera-se que a pobreza é um dos fatores significativos, que leva os indivíduos a se afastarem da escola. É necessário que a sociedade compreenda que os corpos precarizados pela pobreza vivenciam problemas como preconceito, vergonha, discriminação, críticas dentre tantos outros. A educação pode possibilitar que esses alunos reescrevam suas histórias de vida.

Após todo o processo, verificou-se uma lacuna no Projeto Político Pedagógico no que se refere às ações de inclusão da pobreza na proposta curricular da Escola.

Com este trabalho não se teve a pretensão de esgotar os estudos e investigações, mas evidenciar algumas questões acerca da pobreza e do currículo escolar, portanto abre-se um leque para que outros pesquisadores aprofundem esta temática a partir de um novo olhar sobre a inclusão dos mais pobres no currículo escolar.

Ao concluir este trabalho, ressalta-se que o homem só será efetivamente cidadão quando estiver integrado à sociedade, ao mercado de trabalho, exercendo uma participação mais ativa e crítica da vida social e política, promovendo o crescimento pessoal e da sociedade em que está inserido.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 21 de Março de 2017; Aceito: 28 de Setembro de 2017

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