1. INTRODUÇÃO E PROPOSTA DE ANÁLISE
Segundo informações oficiais do governo brasileiro, a Itaipu Binacional é responsável pela geração de 8,6% da energia consumida no Brasil e 86,3% da energia consumida no Paraguai no ano de 2022. Os números são prova inequívoca da importância estratégica da usina para os países. Trata-se de projeto ambicioso e bem-sucedido e que apenas foi possível graças a um conjunto de inovações jurídicas incorporadas ao Tratado de Itaipu.
Tendo em vista que o tratado completou cinquenta anos em 2023 e no contexto das renegociações em andamento entre Brasil e Paraguai, o presente artigo busca examinar a relevância do Tratado de Itaipu para a evolução do direito internacional, público e privado. De forma específica, as seções a seguir buscam descrever o status jurídico do tratado à luz do direito brasileiro e os novos mecanismos de coordenação e interação normativa, promovida pelo tratado, entre o direito doméstico e internacional, público e privado, entre os aspectos contratuais e organizacionais do texto convencional.
Dentro dessa perspectiva, o objetivo do trabalho é realçar importantes mudanças incorporadas pelo Tratado de Itaipu em relação à divisão entre direito internacional público e direito internacional privado e às formas de interação entre normas jurídicas oriundas de fontes e ramos do direito distintos. Para isso, inicia-se examinado a natureza e a classificação dos tratados internacionais, bem como a vigência dos tratados no direito brasileiro (parte II); a natureza e o propósito do Tratado de Itaipu (parte III); propõe-se a conceituação do Tratado de Itaipu como um bloco normativo; e, finalmente, algumas reflexões sobre o futuro do tratado são apresentadas a título de conclusão (parte IV).
2. Tratados internacionais: classificação, interpretação, status e eficácia.
2.1. Tratados e sua natureza: tentativas de classificação
O conceito de tratado pode ser extraído das Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados (CVDT) de 1969 e 1986. Nos termos das Convenções, tratado é um acordo internacional formalizado por escrito, constante de instrumento único ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua denominação, firmado entre pessoas jurídicas de direito internacional (Estados e/ou Organizações Internacionais) e regido pelo Direito Internacional. Embora o conceito pareça singelo, é fácil perceber que, sob a denominação geral de tratado, os acordos mais diversos, com os propósitos mais variados, podem ser celebrados entre as pessoas jurídicas de direito internacional.
A importância dos tratados internacionais cresceu consideravelmente nas últimas décadas, dentre outras razões, devido ao surgimento de temas de interesse global e à proliferação de relações essencialmente internacionais entre Estados, entre Estados e particulares ou, ainda, entre particulares situados em diferentes países, fenômenos que tornam as interações no plano internacional cada vez mais intensas e complexas. Nessa linha, tratados e acordos são frequentemente empregados como instrumentos da política e do comércio internacionais para potencializar interesses comuns entre os Estados, solucionar conflitos ou manter disputas sob controle.
A variedade própria dos tratados, que decorre, naturalmente, do caráter complexo e dinâmico das relações internacionais, confere especial importância às tentativas de classificação em função de sua natureza ou de suas características principais, para que seja possível interpretá-los. No direito interno, a circunstância de se tratar, por exemplo, de uma norma de natureza constitucional, civil, penal, tributária ou trabalhista ensejará a aplicação de princípios e parâmetros distintos de interpretação. O mesmo acontece, e ainda com maior razão e maiores repercussões, no caso dos tratados internacionais, como já reconheceu, em mais de uma oportunidade, o Supremo Tribunal Federal.
Diversos critérios podem ser utilizados para a classificação dos tratados. O critério mais importante, porém, já que terá maior repercussão sobre a interpretação dos tratados, é aquele que procura distingui-los quanto à natureza de suas normas. A natureza das normas de um tratado internacional decorre, sobretudo, do objetivo e/ou finalidade que as Partes a ele atribuem, o que poderá ser identificado a partir do próprio texto do tratado e, igualmente, do contexto e circunstâncias de sua negociação e celebração.
Com efeito, o art. 31 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados enumera as regras básicas para interpretação de diplomas internacionais, determinando, dentre outros, que deverão ser interpretados “segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade”. O art. 32 da CVDT prevê, ainda, que o intérprete poderá recorrer aos trabalhos preparatórios do instrumento internacional, bem como às circunstâncias de sua conclusão. Vale dizer: a interpretação do tratado deve levar em conta a sua natureza, determinada, dentre outros aspectos, pelo objetivo, contexto e circunstâncias de sua celebração. Considerando os elementos que se acaba de identificar, os tratados são normalmente reunidos em quatro grandes grupos. São eles: (i) tratados-lei; (ii) tratados-contrato; (iii) tratados-organização; e (iv) tratados-quadro.
Os tratados-lei são geralmente celebrados entre diversos Estados e visam à criação de normas objetivas de conduta, em caráter geral e abstrato. Nas palavras de Francisco Rezek, nos tratados-lei, as partes “editam uma regra de direito objetivamente válida”. É dizer: são instrumentos formados por vontades de conteúdo idêntico e têm a finalidade de criar normas jurídicas, de estabelecer Direito objetivo.
Por sua vez, os tratados-contrato são aqueles que criam direitos e obrigações recíprocas aplicáveis aos Estados-Partes. Geralmente celebrado entre dois Estados (embora possa haver tratados-contrato multilaterais), esse tipo de tratado visa a estabelecer “situações jurídicas subjetivas”, e não propriamente normas de caráter geral e abstrato. Desse modo, embora também possam se apresentar no plano interno, os efeitos dos tratados-contrato têm maior relevância no plano internacional, constituindo negócios entre Estados. São exemplos de tratados-contrato os diversos acordos de cooperação em matéria comercial, tributária e penal. Em uma frase, os tratados-contrato decorrem de vontades de conteúdos diversos, não se destinando a criar normas de conduta de aplicação universal, mas sim situações jurídicas subjetivas caracterizadas pela geração de direitos e deveres recíprocos entre os Estados contratantes.
De outra parte, a proliferação de organizações internacionais dá origem a tratados cujo objetivo é constituir órgãos e entidades de direito internacional, e cuja principal finalidade não é criar obrigações recíprocas e contrapostas entre Estados, tampouco normas de conduta geralmente aplicáveis. Tais diplomas, identificados como tratados-organização, têm por objetivo a criação de organismo internacional pelas partes que os firmaram e contêm, em larga medida, normas autoexecutórias, porquanto a existência do tratado, por si só, já garante o fim pretendido. Além de dispositivos estruturais, os tratados constitutivos de órgãos internacionais também cuidam da competência do ente criado.
Finalmente, a emergência de temas que preocupam diversos países e/ou que apresentam proporções mundiais - como, e.g., o aquecimento global, a degradação do meio-ambiente e o agravamento de crises humanitárias - vem mobilizando os Estados no sentido de tentarem alinhar seus objetivos e estabelecer parâmetros de atuação comum. A via eleita nessas hipóteses é a do chamado tratado-quadro (ou, mais usualmente, convenção-quadro).
Como se verá adiante, o Tratado de Itaipu possui natureza híbrida, assumindo características próprias a mais de uma das tipologias mencionadas. Antes, porém, parece importante descrever sumariamente como, e com qual status, um tratado internacional ingressa no sistema jurídico brasileiro.
2.2. Vigência e Status dos Tratados no Direito Brasileiro
Como é corrente, para que os tratados internacionais de que o Brasil seja parte produzam efeitos no plano interno, é necessário que passem por um processo que envolve os Poderes Executivo e Legislativo (CF, art. 84, VIII). De fato, a elaboração e incorporação dos tratados ao direito nacional cumprem um roteiro que pode ser assim resumido: (i) negociação e assinatura do texto pelo Presidente da República, a quem incumbe privativamente manter relações com Estados estrangeiros e celebrar tratados, convenções e atos internacionais (CF, art. 84, VII e VIII); (ii) aprovação pelo Congresso Nacional por meio de decreto legislativo, sendo certo que não lhe cabe emendar ou alterar o texto, mas apenas aprová-lo ou não (CF, arts. 84, VIII e 49, I); (iii) ratificação, quando o Presidente assina o texto original do tratado e o deposita perante a organização internacional competente, ou adesão, quando o Estado brasileiro se torna parte do tratado após a sua celebração original; e (iv) promulgação e publicação, por meio de decreto do Chefe do Executivo, onde se divulga o texto integral do pacto.
Observado o ritual, o tratado passa a integrar o sistema jurídico brasileiro, cumprindo, portanto, determinar o status com o qual o tratado internacional é incorporado ao direito positivo interno. A posição tradicional do STF, firmada de longa data, é a de que, uma vez internalizados, os tratados passam a ter a mesma estatura da lei ordinária. Como consequência, estão submetidos à Constituição Federal, inclusive para fins de sujeição a controle de constitucionalidade.
Assim, havendo conflitos entre normas convencionais e normas constitucionais, há de prevalecer a Constituição, sem necessidade de recurso a qualquer critério cronológico. O próprio texto constitucional consagra esse entendimento, como se vê do art. 102, III, b, bem como do art. 105, II, a, também da Carta de 1988, que prevê a competência do Superior Tribunal de Justiça para o julgamento de recurso especial contra decisão que contrarie ou negue vigência a tratado, assim como ocorre com a lei federal.
A equiparação geral entre tratado e lei ordinária conduz à conclusão de que norma internacional posterior poderá revogar ou alterar a lei ordinária interna, assim como a lei ordinária posterior poderá, igualmente, ter o mesmo efeito sobre o tratado a ela anterior. O precedente mais célebre do STF a respeito é o RE n° 80.004. A orientação lá firmada foi seguida pelo tribunal em decisões posteriores e a legislação ordinária nacional passou a cuidar inteiramente de matérias até então reguladas em tratados internacionais. Há, contudo, algumas exceções.
A primeira exceção fica por conta do art. 98 do Código Tributário Nacional - recepcionado pela Carta de 1988 como lei complementar, como se sabe -, que prevê a priori a prevalência dos tratados internacionais em matéria tributária sobre a legislação tributária interna. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, firmou interpretação restritiva acerca deste dispositivo, reconhecendo sua aplicação apenas aos tratados-contrato. A mesma regra de prevalência tem sido aplicada de forma mais ampla a todos os tratados-contrato - como, por exemplo, os tratados de extradição.
A segunda exceção, reconhecida pela jurisprudência do STF, diz respeito ao conflito envolvendo tratado internacional sobre direitos humanos. O debate sobre o tema foi travado pela Corte no âmbito do exame da validade da prisão civil do depositário infiel no ordenamento brasileiro. No final de 2008, no julgamento conjunto de diversos casos envolvendo o tema (dentre eles, o HC n° 87.585/TO), o Plenário do STF reviu sua antiga jurisprudência na matéria, tendo em conta a circunstância de o Brasil ser parte do Pacto de San José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto nº 678/92, que restringe a prisão por dívida ao descumprimento inescusável da prestação alimentícia.
Enfrentando a questão relativa ao status de tratado internacional internalizado antes da Emenda Constitucional nº 45/2004, o Supremo Tribunal Federal afirmou o caráter supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, de modo que, havendo conflito entre um tratado de direitos humanos e uma lei de elaboração interna, prevalece o primeiro, em qualquer caso. A nova jurisprudência foi consolidada na Súmula Vinculante nº 25 do STF, além de acompanhada pelo STJ.
Para os tratados promulgados após a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, que incluiu o § 3º do art. 5º da Constituição, parece claro que o status diferenciado dos tratados de direitos humanos depende da observância do procedimento estabelecido pelo dispositivo citado, que garante status equivalente às emendas constitucionais aos tratados de direitos humanos que forem aprovados, em dois turnos, por três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional.
A última e mais recente exceção também foi estabelecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ao julgar o Recurso Extraordinário 636.331, o STF determinou que os tratados internacionais limitadores da responsabilidade de transportadoras aéreas prevalecem em relação às normas do direito brasileiro, por força do art. 178 da Constituição. A discussão específica envolvia o conflito entre, de um lado, a limitação a indenizações por extravio de bagagem constante nas Convenções de Varsóvia, da Haia e de Montreal e, de outro, o dever de reparação integral constante no Código de Defesa do Consumidor.
O resumo, então, é este: os tratados internacionais que passam pelo regular processo de internalização - a saber: (i) negociação e assinatura; (ii) aprovação pelo Congresso Nacional; (iii) ratificação ou adesão; e (iv) promulgação e publicação -, via de regra, são recebidos na ordem jurídica interna com o mesmo status hierárquico da lei ordinária, de modo que eventuais conflitos entre tais espécies normativas serão solucionados mediante a aplicação do critério cronológico ou, quando cabível, da especialidade. As exceções ficam por conta (i) dos tratados-contrato, conforme o art. 98 do CTN e a jurisprudência atual do STJ, que prevalecem sobre a lei ordinária; (ii) dos tratados de direitos humanos, aos quais o STF tem reconhecido caráter supralegal e infraconstitucional, prevalecendo sobre a legislação infraconstitucional interna, independentemente de ordem cronológica; (iii) dos tratados de direitos humanos aprovados na forma do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal; e (iv) dos tratados envolvendo transporte internacional, nos termos do art. 178 da Constituição Federal.
3. O TRATADO DE ITAIPU
Nos tópicos anteriores procurou-se estabelecer sucintamente algumas premissas teóricas relevantes em matéria de interpretação e aplicação dos tratados internacionais, tanto no plano internacional como no plano da ordem jurídica brasileira. Cabe agora examinar, de forma específica e à luz da exposição teórica empreendida, o Tratado de Itaipu.
A identificação da natureza de um determinado tratado internacional pode ser tarefa difícil, eis que, por vezes, suas disposições não parecem se adequar perfeitamente a nenhuma das classificações organizadas pela doutrina. Como já antecipado, este é exatamente o caso do Tratado de Itaipu. Fundamentalmente, o tratado tem as características de um tratado-contrato, estabelecendo direitos e obrigações recíprocos para o Brasil e o Paraguai, notadamente no que diz respeito ao financiamento do projeto, à construção e à operação de Itaipu.
Inúmeras disposições contidas no tratado confirmam o que se vem de dizer. É esse o caso dos dispositivos que regulam questões típicas de direito internacional público, por exemplo ao reafirmar que o acordo entre as partes não importa em alteração das fronteiras nacionais e/ou da jurisdição dos Estados-parte (Artigo VII), ao impedir a imposição de tributos à operação de Itaipu (Artigo XII) ou, ainda, ao expressar o empenho das partes para que a entrada em serviço da primeira unidade geradora ocorresse dentro do prazo de oito anos a partir da ratificação do Tratado (Artigo XVI).
A partir do exame desses dispositivos, é fácil perceber a existência de “situações jurídicas subjetivas” que - não obstante também produzirem efeitos no plano interno - se destacam fundamentalmente como obrigações assumidas reciprocamente por Estados soberanos no plano internacional. Vale dizer: tais disposições aproximam o Tratado de Itaipu de um tratado-contrato, o que, conforme visto anteriormente (cf item II.2, supra) faz com que tais disposições prevaleçam em relação às normas infraconstitucionais brasileiras.
Adotando essa perspectiva, o Supremo Tribunal Federal tem inclusive reconhecido a legitimidade ativa da República do Paraguai para postular, perante o Judiciário brasileiro, a observância das normas previstas no Tratado de Itaipu. Confira-se, nesse sentido, o seguinte trecho:
“Mostrando-se procedentes, ou não, os pedidos formulados nas ações civis públicas, eles inequivocamente afetam prerrogativas reconhecidas à República do Paraguai no tocante à atividade da hidrelétrica de Itaipu, considerada a dupla nacionalidade da pessoa jurídica e as previsões do tratado internacional. A pretensão de submetê-la integralmente ao Direito brasileiro tem o condão de interferir nos interesses do país na atuação da sociedade” [negrito acrescido].
Há, contudo, para além desse primeiro conjunto de regras, um segundo conjunto que se afasta da tipologia dos tratados-contrato. É que o aproveitamento do potencial hidrelétrico do Rio Paraná demandou a criação de uma entidade binacional - a Itaipu Binacional - com personalidade jurídica de direito internacional. Como intuitivo, os dispositivos que cuidam da criação da Itaipu Binacional (e.g., artigos III, IV, VIII e Anexo A) aproximam, neste particular, o Tratado de Itaipu de um tratado-organização, cujas regras são, fundamentalmente, autoexecutórias. Vale dizer: é a própria vontade expressa no tratado por dois Estados soberanos que cria Itaipu Binacional com personalidade jurídica própria e organizada nos exatos termos das regras previstas entre as partes.
A natureza sui generis de Itaipu Binacional e o caráter constitutivo do Tratado de Itaipu também encontram espaço na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como se pode extrair dos seguintes trechos dos votos dos Ministros Marco Aurelio, Luiz Fux e Carlos Ayres Britto, respectivamente:
“De fato, a Itaipu Binacional, cujos alicerces jurídicos decorreram da visão engenhosa do saudoso mestre Miguel Reale, possui posição peculiar no Direito brasileiro, ainda a ser definitivamente assentada pelo Supremo” [negrito acrescido].
“E, no caso, é a União em juízo contra um organismo internacional que tem um sentido mais lato do que se pode imaginar, que é essa pessoa jurídica internacional criada pelo Brasil/Paraguai, com fundamento de sua jurisdicidade num tratado internacional que prevê o cumprimento de obrigações que não podem ser superadas pela aplicação unilateral de uma legislação de um só dos Estados soberanos que participaram dessa empreitada.” [negrito acrescido].
“(...) essas empresas binacionais são constituídas a partir de um tratado, e o tratado é revelador de soberania nacional. É um caso raro de empresa, mas é de empresa estatal, envolvendo, no caso, mais de um Estado, são dois Estados, mas que, subjacente a essa estruturação empresarial, há nítidos elementos políticos, como a soberania e a territorialidade” [negrito acrescido] .
Finalmente, há um terceiro conjunto de regras na convenção examinada que deixa clara a abertura normativa do Tratado de Itaipu, o que se justifica diante da multiplicidade de relações jurídicas articuladas pelo tratado e da complexidade das questões envolvidas. Longe de pretender regular exaustivamente todas as relações jurídicas que decorrem do projeto, o Tratado de Itaipu deve ser interpretado como um texto estruturante que fornece os alicerces básicos da regulamentação das múltiplas relações jurídicas decorrentes da construção da Usina de Itaipu e do Tratado de Itaipu. É precisamente esse o ponto da análise que se segue.
4. O TRATADO DE ITAIPU COMO UM BLOCO NORMATIVO
Tratados internacionais não constituem regimes jurídicos autônomos completamente apartados das demais regras de direito internacional e do direito interno. Em primeiro lugar, e como já visto, a própria definição do que constitui um tratado internacional é fornecida pelo direito internacional público. Além disso, o direito internacional público também fornece regras sobre interpretação dos tratados e as formas de extinção das obrigações convencionais. Nesse particular, o Tratado de Itaipu não escapa à regra geral. As formas de interpretação do texto convencional devem ser orientadas pelo direito internacional público. No Brasil, como visto, a posição normativa de um tratado também depende da análise das normas constitucionais aplicáveis.
Há, porém, um outro plano de abertura normativa que é especialmente relevante no caso do Tratado de Itaipu. Como o financiamento, a construção e a operação da Usina de Itaipu demandaram a articulação entre Estados soberanos, empresas estatais e a Itaipu Binacional, o número de questões jurídicas potencialmente decorrentes do projeto é extremamente vasto. Justamente por essa razão, o Tratado de Itaipu não regula exaustivamente - e sequer poderia ter essa pretensão - todas os aspectos das relações jurídicas decorrentes do projeto.
Por essa razão, o regime jurídico criado pelo Tratado de Itaipu apenas pode ser plenamente compreendido a partir de uma perspectiva teórica que ultrapasse as distinções rígidas entre público/privado e doméstico/internacional. Essa constatação insere o tratado em um novo paradigma de interação entre sistemas normativos. De fato, a partir da segunda metade do século XX, a literatura internacionalista tem sido prolífica em apontar formas de interação complexa entre a esfera pública e a esfera privada, entre o plano nacional e o plano internacional, antes ignoradas pelo direito internacional.
Inicie-se pela primeira distinção, a saber, o binômio público-privado. Trata-se, tradicionalmente, de critério definidor no direito internacional, responsável pela separação entre direito internacional público e direito internacional privado. O exame completo das razões para o crescente desprestígio da distinção entre público e privado é desvio impossível para o presente estudo, bastando o registro de que, ainda em 1958, Sir Hersch Lauterpacht, juiz da Corte Internacional de Justiça, afirmou que “[t]he rights of the parties, especially in an international dispute, ought not be determined by reference to the controversial mysteries of the distinction between private and public law”.
O que se verifica, em síntese, é um número cada vez maior de casos que não se enquadra perfeitamente nem no regime de direito público nem no regime de direito privado. Esta constatação certamente não será estranha no contexto brasileiro: na verdade, a maior participação do Estado em atividades econômicas através de empresas estatais é um dos importantes fatores que contribuíram para o colapso da dicotomia público/privado. O acúmulo de casos que não poderiam ser resolvidos adequadamente a partir da divisão rígida entre público e privado levou à relativização da distinção ao surgimento de novas técnicas de regulamentação da atividade transnacional de pessoas e Estados.
É exatamente neste contexto que se insere o Tratado de Itaipu. Como já se viu, sob a perspectiva do direito internacional público, trata-se de convenção sui generis que reúne características próprias de diferentes espécies de tratado internacional (cf. item III.1, supra). Sob outra ótica, contudo, o Tratado de Itaipu possui também características típicas de um contrato, notadamente na extensão em que (i) estabelece direitos e obrigações pecuniárias entre as partes; e (ii) assume características típicas de um Project Finance, ao criar uma sociedade de propósito específico - a Itaipu Binacional - com fontes de receitas e despesas bem delimitadas, agregando capital próprio e de terceiros para o fim de construir e operar a Usina de Itaipu.
Dito de outra forma, a mera leitura do tratado permite que se conclua que, ao lado das obrigações de direito internacional público assumidas pelos Estados (já apontadas anteriormente neste estudo), existem obrigações típicas de direito privado - contratual, empresarial - presentes no Tratado de Itaipu. Em particular, o planejamento econômico-financeiro do projeto e as obrigações financeiras assumidas pelas partes permitem a identificação clara do que se poderia denominar economia do tratado.
Explica-se. Como se sabe, o conceito de economia do contrato presente no direito privado tem o propósito de “incorporar, na valoração jurídica, como fator de determinação do alcance vinculativo do contrato, elementos de significação colhidos da estrutura e nos fins da operação econômica que ele instrumentaliza”. Vale dizer: cuida-se de reconhecer que, além de expressar o encontro de vontade dos contratantes, os contratos materializam também uma operação econômica.
A aplicação do conceito ao texto convencional ora analisado é bastante intuitiva. O Tratado de Itaipu foi celebrado tendo como objetivo, ao lado da resolução de disputa territorial entre Brasil e Paraguai, viabilizar a construção de uma Usina Hidrelétrica a partir da elaboração de um projeto financeiro avalizado pelos Estados-Partes. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que as disposições de direito internacional público constantes no tratado, apesar de cuidar de matérias extremamente importantes, são em certa medida assessórias ao conteúdo econômico (leia-se: contratual) do tratado. Longe de pretender inovar na ordem internacional, o interesse principal das partes era bastante concreto: construir uma Usina Hidrelétrica. Embora o tema seja desvio impossível para o presente trabalho, a existência de uma economia própria ao Tratado de Itaipu é constatação indispensável para o pleno cumprimento das disposições convencionais.
A situação é bastante similar no que diz respeito à segunda distinção, a saber, o binômio nacional-internacional. O surgimento de empresas transnacionais, de bens jurídicos de escala global (meio-ambiente, internet, saúde pública etc.) e de cadeias contratuais cada vez mais complexas tornou difícil definir claramente relações jurídicas exclusivamente nacionais e relações jurídicas puramente internacionais. Há, ao contrário, um número cada vez maior de situações transnacionais que afetam pessoas, países e empresas indistintamente.
A partir dessa constatação, o direito internacional - público e privado - passou a adaptar seus métodos de modo a comportar os novos dados da realidade. Entre outras relevantes alterações, isso significa que as regras previstas em tratados internacionais, fixadas pelo costume internacional e estabelecidas por legisladores nacionais interagem de forma dinâmica, levando ao abandono do modelo binário ativação/desativação antes vigentes. Vale dizer: a aplicação das regras de direito internacional ou de direito interno, de direito público ou de direito privado, não importa necessariamente a exclusão das demais regras, sendo possível alternativamente verificar diferentes formas de interação e convivência entre tais regras.
É exatamente isso o que se extrai do contexto de conclusão do Tratado de Itaipu e do texto convencional. Como explicitamente reconhece Miguel Reale, figura da maior importância na elaboração do texto convencional, o Tratado de Itaipu foi concebido como uma reação às questões de direito internacional público e privado que se apresentavam. Sob a perspectiva que se vem de apresentar, isso significa que o tratado foi concebido exatamente para escapar das limitações tradicionais do direito internacional, público e privado, de modo a permitir novas formas de interação entre o texto do tratado, o direito brasileiro e o direito paraguaio.
Além disso, sob uma perspectiva estrutural, é interessante notar que o Tratado de Itaipu já foi criado como um “bloco” que abrange não apenas o texto do tratado em si, mas também três anexos (A, B e C) e seis notas reversais. Enquanto o texto do tratado cuida principalmente das relações entre o Brasil e o Paraguai, o Anexo A cuida da organização da empresa Itaipu Binacional, o Anexo B apresenta a descrição geral do projeto, o Anexo C reflete os aspectos financeiros do projeto e as seis notas reversais cuidam de diferentes aspectos financeiro-operacionais do projeto.
No próprio texto do tratado, é possível encontrar referências explícitas ao direito brasileiro e paraguaio para a regulamentação de determinadas relações. É o que consta nos artigos XIX, parágrafo único, e XXI, assim redigidos:
“Artigo XIX. O foro da ITAIPU, relativamente às pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas ou com sede no Brasil ou no Paraguai, será, respectivamente, o de Brasília e o de Assunção. Para tanto, cada Alta Parte Contratante aplicará sua própria legislação, tendo em conta as disposições do presente Tratado e de seus Anexos.
Parágrafo único. Em se tratando de pessoas físicas ou jurídicas, domiciliadas ou com sede fora do Brasil ou do Paraguai, a ITAIPU acordará as cláusulas que regerão as relações contratuais de obras e fornecimentos”.
“Artigo XXI. A responsabilidade civil e/ou penal dos Conselheiros, Diretores, Diretores Adjuntos e demais empregados brasileiros ou paraguaios da ITAIPU, por atos lesivos aos interesses desta, será apurada e julgada de conformidade com o disposto nas leis nacionais respectivas.
Parágrafo único. Para os empregados de terceira nacionalidade proceder-se-á de conformidade com a legislação nacional brasileira ou paraguaia, segundo tenham a sede de suas funções no Brasil ou no Paraguai”.
De outra parte, o artigo XVIII do tratado faz referência clara à necessidade de medidas adicionais a serem adotadas através de protocolos e atos unilaterais. Leia-se:
“Artigo XVIII. As Altas Partes Contratantes, através de protocolos adicionais ou de atos unilaterais, adotarão todas as medidas necessárias ao cumprimento do presente Tratado, especialmente as que digam respeito a aspectos: a) diplomáticos e consulares; b) administrativos e financeiros; c) de trabalho e previdência social; d) fiscais e aduaneiros; e) de trânsito através da fronteira internacional; f) urbanos e habitacionais; g) de polícia e de segurança; h) de controle do acesso às áreas que se delimitem em conformidade com o Artigo XVII” [negrito acrescido].
Em resumo, o que se tem é o seguinte: o Tratado de Itaipu é um instrumento de direito internacional regularmente internalizado na ordem jurídica brasileira. Sendo esse o caso, e diante da natureza de suas normas, as normas constantes no tratado prevalecem seja em razão de sua natureza, quando refletirem normas típicas de tratado-contrato, seja em razão da sua especialidade em relação às demais normas vigentes no direito brasileiro. Esta conclusão é aplicável não apenas ao Tratado de Itaipu e seus anexos, mas também aos demais instrumentos que compõem o sistema normativo de Itaipu e tenham fundamento no tratado. De outra parte, o enredamento normativo aplicável vai muito além do próprio Tratado de Itaipu, abrangendo, evidentemente, os seus três anexos e as Notas Reversais e normas do direito brasileiro aplicáveis.
5. CONCLUSÃO: ALGUMAS REFLEXÕES PARA O FUTURO
Em resumo, o Tratado de Itaipu é um instrumento de direito internacional regularmente internalizado na ordem jurídica brasileira. Sendo esse o caso, e diante da natureza de suas normas, as normas constantes no tratado prevalecem seja em razão de sua natureza, quando refletirem normas típicas de tratado-contrato, seja em razão da sua especialidade em relação às demais normas vigentes no direito brasileiro. Esta conclusão é aplicável não apenas ao Tratado de Itaipu e seus anexos, mas também aos demais instrumentos que compõem o sistema normativo de Itaipu e tenham fundamento no tratado. De outra parte, o enredamento normativo aplicável vai muito além do próprio Tratado de Itaipu, abrangendo, evidentemente, os seus três anexos e as Notas Reversais e normas do direito brasileiro aplicáveis.
O espírito inovador que presidiu a conclusão do Tratado de Itaipu deve novamente se fazer presente por ocasião da revisão do Tratado. Ao lado das questões financeiras envolvidas na negociação, e em um momento em que o plano internacional é marcado por forte tensão geopolítica e crescente consciência sobre os desafios da transição climática, o momento parece oportuno para fazer uso do bloco normativo agregado pelo tratado para o fim de reforçar a convivência pacífica entre Brasil e Paraguai e reforçar o protagonismo brasileiro em matéria ambiental.