1. INTRODUÇÃO
Heráclito, um filósofo pré-socrático, argumentou em sua tese "a luta entre os contrários" que os princípios antinômicos estabelecem um “jogo ordenado de convergências”, por meio do qual o consoante e o dissonante se complementam, tendo, no entanto, cada qual a sua própria identidade preservada. Este raciocínio heraclitiano fornece insights valiosos para compreender o modus operandi da harmonização jurídica no âmbito de um sistema internormativo, sobre o qual nos debruçaremos ao longo deste deste trabalho.
Antes de prosseguirmos, é mister definir o que entendemos por sistema internormativo. Este termo refere-se a um conjunto de ordenamentos jurídicos com fontes e legitmidades distintas em constante interação reflexiva num mesmo espaço político, onde partilham práticas jurídicas, tais como, por exemplo, a harmonização jurídica que compreende a elaboração e a aplicação de normas. Embora a interação entre ordenamentos jurídicos distintos não seja um fenômeno propriamente novo, podendo ser observada em organizações internacionais ou em Estados federais, importa notar que num sistema internormativo esse contato ocorre por meio de influência recíproca, sem pretensão de sobreposição.
Não de outro modo que o “jogo ordenado de convergências” inerente a um sistema internormativo encontra sua melhor possibilidade de aplicação em integrações regionais. Essa tese será aqui esboçada a partir da experiência da União Europeia (UE).
Importa sublinhar que a UE não se confunde com uma mera organização internacional, tampouco com um Estado Federal, constituindo-se na primeira referência de integração regional. Seu nascimento deu-se em 1952, com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), após a II Guerra Mundial. Em virtude de ter estreado um novo tipo de composição associativa na “constelação pós-nacional”, muito frequentemente foi e por vezes continua a ser identificada como um projeto sui generis, uma espécie de “post-Hobbesian non-state”, uma “transnational consociation”, ou até mesmo um “unidentified political object” (traduzido em língua portuguesa como objeto político não identificado - OPNI -, expressão que ficou amplamente conhecida por ter sido utilizada por Jacques Delors, ex-presidente da Comissão Europeia entre os anos de 1985 e 1995).
Dado o contexto específico de uma integração regional, especialmente no caso da UE, nosso objetivo é entender de que forma ocorre a harmonização jurídica nesse cenário. No entanto, ao invés de tentar forçar a integração europeia em modelos pré-existentes, o que poderia distorcer ou limitar sua verdadeira natureza e abrangência, optaremos por adotar uma abordagem fundamentada no sistema internormativo. Essa abordagem considera as características intrínsecas de uma integração regional, proporcionando uma análise mais autêntica. Assim almejamos contribuir para o debate acadêmico, enquanto também abordamos potenciais preocupações relacionadas ao aprofundamento de uma integração regional.
Ao contrário de algumas teses que sustentam que um processo de integração regional tende a um super-Estado, as bases teóricas que fundamentam o sistema internormativo demonstram exatamente a prescindibilidade de sobreposição hierárquica na sua conformação. Em um sistema internormativo, as práticas jurídicas a serviço da harmonização jurídica, sobretudo as dinâmicas jurisdicionais facilitadas pelo reenvio prejudicial (previsto no art. 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e no art. 19.°, n.° 3, alínea b) do Tratado da União Europeia - TUE), viabilizam a construção de um Estado de direito dialógico, onde as soluções para os atritos advindos de um contexto de pluralismo jurídico não se pautam em disputas entre autoridades pela última palavra em matéria jurídico-constitucional.
Por meio da análise da harmonização jurídica, investigaremos de que forma as práticas jurídicas operacionalizadas em um sistema internormativo, especialmente as dinâmicas jurisdicionais facilitadas pelo reenvio prejudicial, moldam a aplicação e a interpretação de normas provenientes de fontes e legitimidades diversas, que concorrem entre si. Esse exame nos permitirá compreender como é possível promover um ambiente de diálogo e cooperação entre distintas autoridades jurídicas, visando conciliar as reivindicações de validade de diferentes ordenamentos jurídicos coexistentes no espaço de integração regional da UE.
Para introduzir de modo claro e objetivo os conceitos iniciais até abordar o tema em análise, dividimos este artigo em cinco partes, além da introdução (item 1) e das considerações finais (item 7).
Na primeira parte (item 2), exploraremos o fenômeno das integrações regionais, destacando suas origens, particularidades e a importância que a harmonização jurídica nelas desempenha. Recuperaremos as origens do processo da harmonização jurídica e, posteriormente, sublinharemos sua relevância em integrações regionais.
Na segunda parte (item 3), examinaremos que a complexidade das integrações regionais acompanha o seu aprofundamento, decorrendo daí a necessidade de abordagens teóricas que melhor as possam explicar e compreender. Nesse sentido, para analisar o modus operandi da harmonização jurídica na integração regional da União Europeia, apoiar-nos-emos na teoria da internormatividade/interconstitucionalidade, onde o sistema internomativo encontra suas raízes.
Na terceira parte (item 4), direcionaremos nossa análise ao processo de harmonização jurídica, desvelando suas etapas e complexidades subjacentes. Nosso foco principal, todavia, recairá sobre a aplicação das normas harmonizadas, ressaltando a importância das dinâmicas jurisdicionais nesse contexto. Dentro deste escopo, daremos destaque ao reenvio prejudicial, que viabiliza o estabelecimento de um Estado de direito dialógico sobre o qual subjaz o sistema internormativo.
Na quarta parte (item 5), daremos atenção ao papel dos juízes nacionais e os do TJUE nos processos discursivos viabilizados pelo reenvio prejudicial. Verificaremos de que forma partilham o entendimento possível quando está em causa a aplicação homogênea das normas europeias nos ordenamentos jurídicos nacionais. Aqui testaremos o processo de harmonização jurídica, ou mais especificamente a aplicação das normas harmonizadas no âmbito do sistema internormativo europeu.
Na quinta parte (item 6), ressaltaremos a crescente e significativa participação dos tribunais constitucionais nacionais nos processos discursivos inerentes ao sistema internormativo. Abordaremos as tensões decorrentes dessa participação, uma vez que esses tribunais são desafiados a conciliar as exigências tanto da ordem constitucional nacional quanto da UE. Além disso, examinaremos alguns conflitos normativos que permeiam questões relacionadas aos direitos fundamentais e à identidade nacional/constitucional dos Estados-Membros, e discutiremos possíveis abordagens para a resolução desses conflitos dentro do contexto de um sistema internormativo.
Registramos, por oportuno, que utilizaremos como metodologia o método monográfico, adapatando-o ao comparativo e analítico. Dentre as técnicas de pesquisa, empregaremos a análise documental e bibliográfica. Por meio de um exame qualitativo, utilizaremos recursos metodológicos como a pesquisa doutrinária, legislação e jurisprudência, inclusive aquela envolvendo casos submetidos à apreciação pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) através do reenvio prejudicial.
2. A HARMONIZAÇÃO JURÍDICA EM INTEGRAÇÕES REGIONAIS (OU O "JOGO ORDENADO DE CONVERGÊNCIAS")
As integrações regionais são organizações internacionais que decorrem do fenômeno do regionalismo ou regionalização. Elas envolvem associações entre Estados, geralmente vizinhos - mas não só, com o objetivo de estabelecer relações comerciais mais estreitas, que podem resultar em um spillover effect, ou seja, um contínuo processo de aprofundamento das escalas de regionalismo até chegar à formação de uma nova comunidade política.
À partida, poderíamos pensar que o aprofundamento dessas escalas de regionalismo acabaria em uma sobreposição de unidades pré-existentes, com a criação de um super-Estado. No entanto, à medida que as integrações regionais amadurecem, elas tendem a dar origem a um modelo mais sofisticado e complexo.
A singularidade das integrações regionais nos apresenta, por conseguinte, novos desafios teóricos para compreender os fluxos de interpenetração entre o seu o ordenamento jurídico e os dos Estados-Membros. Nesse sentido, o modus operandi da harmonização jurídica no âmbito de um sistema internormativo parece captar bem a dinâmica de uma integração regional.
A harmonização jurídica é um processo que visa à acomodação da pluralidade e diversidade de normas com fontes e legitimidades distintas. Ela desempenha um papel fundamental ao resolver disparidades, proporcionando as condições necessárias para conferir coerência e assim viabilizar a realização de interesses em comum.
A prática da harmonização jurídica remonta à Idade Média, quando a lex mercatoria foi estabelecida pelos estatutos das poderosas alianças comerciais e pela jurisprudência do mercatorum curiae. Seu objetivo era regulamentar as relações mercantis, atendendo às necessidades dos negócios da época. É importante notar que a lex mercatoria não surgiu como o direito nacional de um Estado nem como um direito uniforme elaborado por vários Estados, mas sim como um direito formado pelos costumes e práticas de uma classe social, os comerciantes. Essa lex mercatoria identificava-se como um direito comum a todos os comerciantes, independentemente de suas origens, e suas regras coexistiam com vários ordenamentos jurídicos (feudais). Por proporcionar maior certeza aos contratos, a lex mercatoria conferia maior segurança jurídica aos comerciantes.
Com a evolução econômica, social e política, a lex mercatoria sofreu transformações. Diante do fortalecimento do Estado, principalmente após a Paz de Vestfália em 1648, o direito se nacionalizou, e os usos e costumes da lex mercatoria foram incorporados a codificações promulgadas pelos Estados. Consequentemente, a lex mercatoria foi deixando de ser utilizada pelos comerciantes, resultando a codificação na perda de relevância dos usos e costumes em todos os ordenamentos jurídicos, exceto naqueles baseados na Common Law.
A partir desse crescente controle do direito pelo Estado, a lex mercatoria entrou em um período de dormência que perdurou até o início do século XX, quando a globalização assumiu destaque no cenário internacional. Nesse período, a lex mercatoria ressurgiu como nova lex mercatoria, buscando regular de forma uniforme as relações comerciais internacionais e resolver conflitos por meio da arbitragem comercial internacional. No entanto, essa nova lex mercatoria enfrenta desafios em termos de legitimidade, estando estritamente vinculada a uma classe de comerciantes e dependendo do reconhecimento por diferentes ordenamentos jurídicos nacionais.
Paralelamente à nova lex mercatoria, o direito internacional se desenvolveu, incorporando-a como uma de suas fontes. Através do direito internacional, os Estados recuperaram parte do controle sobre domínios que já não conseguiam mais intervir em razão da interdependência causada pela globalização. E assim o fizeram enquanto sujeitos de direito internacional que criam normas de igual aplicação para todos. Os Estados então se abriram a essas normas e prepararam seu ordenamento jurídico para recebê-las e dar efetividade, de modo a evitar distorções que poderiam prejudicar negociações comerciais e outros ajustes de natureza diversa.
A experiência adquirida pelos Estados na regulamentação internacional preparou o terreno para o surgimento de espaços onde atividades comerciais, operações financeiras e serviços poderiam ocorrer com segurança jurídica semelhante à que existe no âmbito de seus territórios nacionais. Isso levou ao gradual desenvolvimento do mercado comum em integrações regionais. Os Estados que participam desse modelo se dispõem a ações recíprocas voltadas a um processo de cooperação, por meio do qual seus ordenamentos jurídicos se abrem a fontes externas com vista à complementaridade. Este processo de abertura e adaptação é conhecido como harmonização jurídica em integrações regionais, sobre o qual nos debruçaremos a partir de agora.
3. OS DESAFIOS DA HARMONIZAÇÃO JURÍDICA EM INTEGRAÇÕES REGIONAIS
A harmonização jurídica exerce um papel central na promoção da coesão entre ordenamentos jurídicos distintos, permitindo que eles interajam de maneira mais eficaz. Dentro desse contexto, a harmonização jurídica assume relevância no desenvolvimento de integrações regionais, uma vez que, por meio dela, são eliminados ou reduzidos conflitos normativos entre diversos ordenamentos jurídicos em interação. Essa eliminação ou redução de conflitos é, por sua vez, condição indispensável para o alcance dos objetivos estabelecidos nos tratados de integrações regionais, especialmente no que se refere ao estabelecimento de um mercado comum.
O processo de harmonização jurídica apresenta, contudo, uma complexidade que se agrava à medida que uma integração regional aprofunda os laços de cooperação entre seus Estados-Membros, conduzindo a um spillover effect. Isso acontece porque a harmonização jurídica não se prende apenas com a natureza, composição e controle de produtos, serviços, setores ou profissões, mas também abrange as condições nas quais esses elementos são comercializados, os serviços são prestados e as profissões são exercidas. Em outras palavras, além da elaboração de normas que estejam em sintonia com o funcionamento de um mercado comum, a qualidade das medidas adotadas durante todo o processo de harmonização jurídica em uma integração regional é igualmente crucial. Essa qualidade está intrinsecamente ligada à incorporação de valores e direitos fundamentais ao processo de harmonização jurídica.
O elevado grau de complexidade da harmonização jurídica em integrações regionais se revela, portanto, em função da interação entre o mercado comum, as liberdades econômicas fundamentais (como a livre circulação de mercadorias, serviços, pessoas e capitais) e os valores e direitos fundamentais. Enquanto algumas teorias, como a constitucionalização do direito internacional e a federalização das integrações regionais, oferecem perspectivas interessantes, a abordagem da teoria da internormatividade/interconstitucionalidade parece-nos mais apropriada.
A constitucionalização do direito internacional visa à incorporação dos valores presentes nas constituições dos Estados à estrutura do direito internacional, com foco especial na proteção dos direitos fundamentais. O constitucionalismo, como uma teoria fundamentada no princípio de governo limitado, desempenha um papel fundamental na organização política e social das comunidades. Nesse contexto, emerge uma convergência entre o direito constitucional, os direitos fundamentais e o direito internacional, resultando em uma complementação mútua.
No entanto, é importante notar que, embora a constitucionalização do direito internacional busque promover e proteger os valores constitucionais em uma dimensão transnacional, suas ambições de alcançar uma homogeneização difusa suscitam objeções, especialmente no contexto de críticas baseadas em teses que defendem o relativismo cultural.
Por outro lado, a federalização pressupõe a coexistência e sobreposição de ordens jurídicas dentro de uma forma de união política. A base da federalização reside na existência de um direito único, partilhado por todas as unidades federadas. Embora a federalização não deva ser unicamente perspectivada sob a ótica das estruturas que coincidem com a de um Estado, é inegável que sua origem remonta à promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América em 1787. Nesse modelo, os poderes são divididos entre um governo central e entidades regionais, conhecidas como Estados-Membros. Essas diferentes esferas governamentais obtêm suas competências e níveis de poder da Constituição, seguindo princípios definidos no pacto federativo. O resultado é uma rede de relações verticais entre o poder central e os poderes regionais, cujo quadro revela, imediatamente, a possibilidade de conflitos, os quais, na matriz norte-americana, são dirimidos pela Suprema Corte.
Nesse sentido, a federalização das integrações regionais pode ser motivo de preocupação para Estados mais ciosos de sua soberania, uma vez que tais processos trazem consigo a herança histórica da formação dos Estados Unidos da América, projetando um poder central, uma Constituição da qual derivam os poderes do povo, além de uma identidade nacional única.
A teoria da internormatividade/interconstitucionalidade, por sua vez, surge como uma abordagem capaz de explicar as diversas referências normativas em concorrência, sem impor uma hierarquia entre elas, favorecendo as relações estabelecidas por meio de interações contínuas entre unidades dissímeis que compõem uma integração regional. Assim, no contexto da teoria da internormatividade/interconstitucionalidade e seus desdobramentos, como a interjurisdicionalidade, as medidas de harmonização jurídica são coordenadas de maneira reflexiva entre as disposições constitucionais dos tratados de uma integração regional e os princípios fundamentais consagrados no direito constitucional nacional.
O busílis dessa dinâmica consiste, no entanto, em contrabalançar as tendências centrípetas das instituições e órgãos das integrações regionais e as tendências centrífugas dos Estados-Membros. A busca por esse equilíbrio é crucial para estabelecer uma harmonia no "jogo ordenado de convergências" ao longo de um processo de harmonização jurídica. Daí que podemos afirmar que a harmonização jurídica não se reduz a um mero procedimento técnico, estritamente relacionado ao controle de competências, mas antes levanta profundos questionamentos relacionados a valores e aos princípios democráticos.
É fundamental lembrar que, para avançar com os objetivos estabelecidos em um projeto de integração regional, os Estados-Membros costumam delegar poderes a órgãos supranacionais, responsáveis por gerenciar interesses conflitantes. Assim sendo, para compreender o processo de harmonização jurídica, precisamos estudar como as instituições de uma integração regional se relacionam com seus Estados-Membros, principalmente à luz dos valores democráticos, dos direitos fundamentais e dos princípios que orientam a repartição de competências - não de outro modo podemos também afirmar que a harmonização jurídica encapsula o dilema da governance, pois envolve a maneira como diversos atores se relacionam para assumir uma combinação de compromissos e responsabilidades em conjunto.
4. A DINÂMICA DO PROCESSO DE HARMONIZAÇÃO JURÍDICA EM INTEGRAÇÕES REGIONAIS (OU AS REGRAS DO "JOGO ORDENADO DE CONVERGÊNCIAS" NO SISTEMA INTERNORMATIVO)
Como destacado anteriormente, a harmonização jurídica é um processo complexo que envolve a contribuição de diversos atores nacionais e das integrações regionais. Neste contexto, passaremos agora a analisar mais detalhadamente o processo de harmonização jurídica.
Em um primeiro momento, a harmonização jurídica representa uma abordagem que se insere no conceito mais amplo de aproximação entre legislações. Nesse sentido, engloba procedimentos destinados a estabelecer uma afinidade entre diferentes legislações, seja em seu aspecto substantivo ou adjetivo. O escopo fundamental dessa primeira fase reside, à partida, em uma abstenção, ou seja, os Estados-Membros de uma integração regional devem evitar qualquer medida que coloque em risco os objetivos estabelecidos em comum (harmonização negativa). Em um momento seguinte, verifica-se a necessidade de adoção de um conjunto de normas válidas e obrigatórias para todas as partes (instituições regionais, estaduais e indivíduos), o que implica a atuação de vários atores e levanta questões relacionadas à legitimidade democrática (harmonização positiva).
Em uma etapa subsequente, essas normas resultantes dos ordenamentos jurídicos das integrações regionais precisam ser aplicadas nos ordenamentos jurídicos nacionais de maneira homogênea. Importa compreender que a aplicação de uma norma harmonizada é uma questão distinta da elaboração das próprias normas harmonizadas. Portanto, a atividade legislativa representa apenas uma parte do processo de harmonização jurídica, visto que a realização de seus objetivos depende da aplicação consistente e homogênea das normas provenientes da integração regional nos territórios dos Estados-Membros.
Destaca-se, por conseguinte, o papel desempenhado pelos órgãos jurisdicionais nacionais na tarefa de assegurar a aplicação homogênea das normas regionais, garantindo, desse modo, que os particulares usufruam, em condições de igualdade, dos direitos decorrentes do ordenamento jurídico de uma integração regional.
No decorrer das próximas linhas, daremos enfoque a esta segunda fase - aplicação das normas harmonizadas - no âmbito da qual os órgãos jurisdicionais nacionais desempenham um papel central. Essa abordagem é particularmente interessante na medida em que as dinâmicas jurisdicionais realizadas pelos órgãos administrativos e jurisdicionais nacionais e o TJUE viabilizam uma melhor compreensão acerca do modus operandi da harmonização jurídica no âmbito de um sistema internormativo.
Entendemos por dinâmicas jurisdicionais toda prática jurídica que viabiliza o estabelecimento de processos discursivos no âmbito de um sistema internormativo, como é o caso do reenvio prejudicial previsto nos tratados da UE. Por meio do reenvio prejudicial, os juízes nacionais e os do TJUE encontram as condições necessárias para construírem um Estado de direito dialógico fundamental para o funcionamento do sistema internormativo.
Cumpre salientar que o âmago do conceito de Estado de direito reside na ideia de subordinar uma lei a uma lei superior que não pode ser alterada a bel-prazer do soberano. Dentro desse contexto, o Estado de direito assume uma natureza intrinsecamente dialógica. Isso significa que ele se apoia constantemente em um controle da lei por outra lei que a transcende. Em resumo, o Estado de direito estabelece que o exercício do poder para criar leis gerais (gubernaculum) deve estar permanentemente sujeito à lei superior (jurisdictio), a qual está imune à influência cotidiana que rege o sistema jurídico e escapa ao alcance do soberano.
É evidente que a prevalência de qualquer um desses elementos, seja o gubernaculum ou o jurisdictio, levaria à destruição do princípio fundamental do Estado de direito, que é a manutenção do equilíbrio entre os dois. Não de outro modo que o gubernaculum deve estar sujeito ao jurisdictio por meio de revisão judicial. Nesse contexto, o judiciário tem autoridade tanto para invalidar leis quanto para fornecer orientações adicionais sobre como alcançar os objetivos do gubernaculum dentro dos limites estabelecidos pela jurisdictio. Logo, é impescindível a existência de um diálogo constante entre o legislativo e o judiciário para que assim seja possível assegurar a prática discursiva inerente ao Estado de direito.
Ocorre que, devido à natureza estrutural e sistêmica das integrações regionais, a dinâmica do diálogo entre o legislativo e o judiciário se mostra inapropriada. Ao examinarmos os processos decisórios de uma integração regional, fica evidente que o parlamento possui, nesse contexto, competências majoritariamente consultivas. Isso significa que ele é convocado para aprovar ou emitir pareceres sobre propostas de atos normativos, mas em geral não detém força política suficiente para estabelecer um diálogo em pé de igualdade com o tribunal de uma integração regional, que, por padrão, possui poder de decisão.
A ineficácia do diálogo entre o parlamento e o tribunal de uma integração regional não impede, todavia, a existência de um Estado de direito dialógico em âmbito regional. Esse diálogo assume, no entanto, uma configuração distinta, sendo facilitado pelos tribunais, como é o caso na UE. Por meio de sua capacidade de supervisionar a esfera de competência atribuída ao TJUE, os tribunais nacionais desempenham um papel mais eficaz do que qualquer órgão legislativo na verificação da conformidade com o direito da UE. Isso garante a manutenção do Estado de direito dialógico na UE, embora sob uma dinâmica em que o poder judicial desempenha um papel proeminente no equilíbrio das decisões e no controle da conformidade, em contraposição ao papel do legislativo.
Esse modelo se revela ainda bem mais sofisticado na medida em que o diálogo encetado entre tribunais (nacionais e o da integração regional) não resulta em invalidação de normas estaduais. Isso significa que o tribunal de uma integração regional não tem autoridade para invalidar normas que decorrem dos ordenamentos jurídicos nacionais (tal como no "jogo ordenado de convergências heraclitiano": o consoante e o dissonante se complementam, tendo cada qual a sua própria identidade preservada). Não existe aqui propriamente um controle de constitucionalidade, mas sim um controle de conformidade das normas nacionais com os atos normativos e com os tratados constitutivos de uma integração regional, sendo o princípio do primado do direito de integração regional utilizado para dirimir eventuais conflitos existentes com normas nacionais.
Convém notar que o primado do direito de integração regional diferencia-se daquele concebido no âmbito do direito internacional. Em 1930, o Tribunal Permanente de Justiça Internacional já considerava o primado como um princípio geral do direito internacional que rege as relações entre poderes das partes contratantes de um tratado. Nesse sentido, as disposições de uma norma nacional não podem prevalecer sobre as do tratado. Todavia, esta determinação limita-se às relações entre poderes no plano internacional, uma vez que não se aplica ao funcionamento interno dos ordenamentos jurídicos nacionais, em relação aos quais o direito internacional parece não poder reivindicar uma prioridade sobre as normas nacionais conflitantes.
O primado do direito de integração regional tampouco se confunde com o primado das normas constitucionais nacionais, em que quando existe a fiscalização da constitucionalidade declara-se a invalidade da norma hierarquicamente inferior.
O primado do direito de integração regional não se fundamenta na hierarquia, apenas conduz uma preempção que não invalida o direito nacional contrário - isto é, apenas indica uma preferência aplicativa sobre outras normas de distinta fonte. Como ensina Alessandra Silveira, “[a] hierarquia só se dá entre normas procedentes do mesmo sujeito - e não numa relação entre dois ordenamentos”. Se o critério hierárquico fosse adotado em caso de conflitos entre normas com fontes e legitimidades distintas, uma norma acabaria por invalidar a outra até não existir não existir mais um contexto de pluralismo jurídico ou ordenamental.
Percebemos, portanto, que, no contexto de uma integração regional, as dinâmicas jurisdicionais que fomentam um contínuo processo discursivo entre os tribunais nacionais e o tribunal da integração regional garantem a autonomia e a identidade de cada ordenamento jurídico que interage no sistema internormativo.
O tribunal da integração regional desempenha o papel de intérpetre das normas regionais, enquanto os juízes nacionais aplicam essa norma dentro de seus próprios Estados, considerando a interpretação fornecida pelo tribunal da integração regional. Nesse sentido, cabem aos juízes nacionais afastar a norma estadual em desconformidade com a norma regional. Importa frisar que, mesmo em casos de desconformidade, a norma nacional ainda mantém sua validade dentro do âmbito nacional e pode ser aplicada em contextos nos quais a competência da integração regional não tem alcance.
Esse diálogo exercido entre tribunais nacionais e o tribunal de uma integração regional sugere uma complementaridade entre ordenamentos jurídicos distintos, que inviabiliza a ideia de conexão escalonada. Isso faz sentido na medida em que o sistema internormativo de uma integração regional não é resultado de uma fusão entre ordenamentos jurídicos num só. Ao contrário, contempla uma concorrência circular entre uma pluralidade de ordenamentos jurídicos que tendem a se autoinfluenciarem através de uma seleção natural de conceitos, valores, modelos e práticas fundadas na racionalidade de vetores econômicos, bem como também em outros domínios relacionados à universalização de ideais éticos, democráticos e de direitos humanos, que acabam por assumir formas de hibridização.
Sob esta ótica, o sistema internormativo propicia mais do que uma espécie de “cross fertilisation”, pois cria uma linguagem jurídica através da qual se busca estabelecer uma “partilha de entendimento possível” (em sentido habermasiano). Ao prescindir de uma acomodação hierárquica entre ordenamentos jurídicos, o sistema internormativo instrui uma articulação em rede das reinvindicações difusas em prol da consecução de objetivos em comum. Assim sendo, o sistema internormativo promove processos discursivos que procuram acomodar normas de distintos ordenamentos jurídicos que concorrem entre si num contexto jurídico-constitucional não hierarquicamente estruturado. Esses processos discursivos são realizados principalmente através de uma interjurisdicionalidade que é viabilizada pelas dinâmicas jurisdicionais estabelecidas entre os tribunais nacionais e o tribunal de uma integração regional, mormente através do instrumento de reenvio prejudicial, sobre o qual abordaremos adiante, em especial no contexto da integração regional da UE.
5. A CONTRIBUIÇÃO DOS JUÍZES NACIONAIS NO PROCESSO DE HARMONIZAÇÃO JURÍDICA NA INTEGRAÇÃO REGIONAL DA UNIÃO EUROPEIA ATRAVÉS DO REENVIO PREJUDICIAL
Na UE, os juízes dos tribunais nacionais desempenham uma dupla função, atuando simultaneamente como juízes nacionais e europeus em colaboração com o TJUE. Essa atuação conjunta é de extrema importância devido à ausência de um sistema administrativo e judicial difuso nos Estados-Membros. Sem a participação ativa dos juízes nacionais, a aplicação do direito da UE ficaria comprometida. É por issso que à medida que os tribunais nacionais foram integrados na estrutura judiciária da UE, assumiram um papel mais significativo (empowering effect), indo além das competências previstas em suas legislações nacionais.
Por conseguinte, o TJUE não é o único órgão encarregado de cumprir o "mandato europeu". Embora os Tratados da UE confiram ao TJUE o monopólio interpretativo (art. 19.˚, n.˚ 3, alínea b) do TUE), este nunca atuou de maneira isolada. Com frequência, os tribunais dos Estados-Membros recorrem ao reenvio prejudicial para influenciar na atividade interpretativa do TJUE, alimentando, assim, o processo discursivo que enforma o sistema internormativo e fundamenta o Estado de direito dialógico.
O reenvio prejudicial confere a qualquer órgão jurisdicional nacional a prerrogativa de submeter ao TJUE questões relativas à interpretação ou à validade do direito da UE (direito originário ou derivado) quando surgem dúvidas sobre sua aplicação. Essa faculdade, e em alguns casos uma obrigação - como nos tribunais cujas decisões não são passíveis de recurso -, permite ao juiz nacional solicitar esclarecimentos ao TJUE sobre pontos específicos do direito da UE.
É importante destacar que o reenvio prejudicial é exclusivo ao juiz nacional que está conduzindo o litígio em questão. Ele é responsável por determinar a suspensão do processo em curso e avaliar a pertinência das questões a serem submetidas ao TJUE, considerando as particularidades de cada caso. Essa atuação é de suma importância, pois contribui para aprofundar as dimensões internormativas da integração europeia.
Além disso, o reenvio prejudicial não viabiliza apenas o diálogo entre os juízes (e também advogados-gerais) do TJUE e os juízes nacionais. Ele igualmente alcança as partes envolvidas no processo, os Estados-Membros e as instituições europeias. Todos contribuem com seus pontos de vista sobre a questão submetida ao TJUE. Dessa forma, o reenvio prejudicial representa a via pela qual diversos intervenientes têm oportunidade de apresentar seus argumentos, refletindo a pluralidade e a diversidade dos ordenamentos jurídicos nacionais e europeu.
O reenvio prejudicial também garante uma simetria de posições - condição sine qua non para o diálogo à luz do agir comunicativo habermasiano. Isso porque o TJUE não funciona como um tribunal de apelação com o poder de anular ou modificar as decisões judiciais nacionais. Conforme estabelecido no artigo 267.˚do TFUE, o TJUE não tem autorização para decidir sobre a conformidade de uma norma nacional com os Tratados da UE. No entanto, o TJUE fornece ao tribunal nacional todos os elementos de interpretação com base no direito da UE, permitindo que este avalie a conformidade no julgamento do caso específico em questão.
Nesse contexto, importa notar que, ao contrário dos modelos de autoridade hierárquica, tanto os tribunais nacionais quanto o TJUE mantêm sua própria autoridade nos domínios onde atuam. No entanto, uma vez que o direito da UE não é um sistema externo aos Estados-Membros, mas sim parte integrante de seus respectivos campos de aplicação, sempre que ocorrem situações de interseção que geram conflitos, buscam na prática discursiva promovida pelo reeenvio prejudicial o entendimento mútuo possível.
A base para a partilha de entendimento repousa em um conjunto de valores que são inerentes tanto aos ordenamentos jurídicos nacionais quanto europeu. Esse aquinhoamento de valores pode ser identificado em dois contextos distintos. Em primeiro lugar, no âmbito da construção ascendente (bottom up) do direito da UE, que requer que o TJUE respeite os valores e as tradições jurídicas constitucionais dos Estados-Membros. Em segundo lugar, essa partilha de valores é evidenciada na contínua constitucionalização do direito da UE, que é moldada pela jurisprudência do TJUE, na qual os tribunais nacionais desempenham um papel crucial ao reenviar prejudicialmente. Isto posto, a partilha de entendimento possível no contexto da UE é um processo construído de forma intersubjetiva, com base no compartilhamento desses valores comuns, tendo como instrumento imprescindível para tanto o reenvio prejudicial.
O reenvio prejudial promove, portanto, um diálogo entre os juízes nacionais e europeus, fundamentado em um conjunto de valores compartilhados, visando encontrar soluções para conflitos no âmbito de um sistema internormativo. No entanto, isso não exclui a possibilidade de eventuais desentendimentos, especialmente quando os juízes dos tribunais constitucionais nacionais são os responsáveis pelo pedido de decisão prejudicial. No próximo item, abordaremos as tensões resultantes da participação dos juízes dos tribunais constitucionais nacionais no processo discursivo voltado à aplicação de normas harmonizadas nos Estados-Membros da UE.
6. AS TENSÕES NO PROCESSO DE HARMONIZAÇÃO JURÍDICA COM A PARTICIPAÇÃO DOS JUÍZES DOS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS NACIONAIS NO DIÁLOGO INTERJURISDICIONAL PROMOVIDO PELO REENVIO PREJUDICIAL
Com base na jurisprudência do TJUE, é possível identificar uma ampla variedade de pedidos de decisão prejudicial, alguns dos quais geraram tensões no diálogo interjurisdicional, tendo os tribunais constitucionais nacionais protagonizado esse cenário. Isso ocorre devido à responsabilidade que recai sobre esses tribunais na construção de um Estado de direito dialógico. Vale ressaltar que, em comparação com instituições mais antigas, como o legislativo e os tribunais comuns, os tribunais constitucionais são instituições relativamente recentes. Não obstante sua incipiência - mal tiveram tempo de se consolidar - foram convocados a garantir simultaneamente a integridade da ordem constitucional doméstica e a da UE. Trata-se de uma tarefa desafiadora, mas fundamental para o bom funcionamento do sistema internormativo europeu.
Desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que ampliou o rol de competências delegadas às instituições europeias, incluindo os direitos fundamentais - devido à vinculação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) -, as oportunidades para os tribunais constitucionais nacionais participarem na arena de discussões por meio do reenvio prejudicial aumentaram consideravelmente.
Não obstante os direitos fundamentais já tivessem sido reconhecidos pela jurisprudência do TJUE como princípios gerais de direito da UE, a incorporação formal da CDFUE no direito primário da UE suscitou debates sobre a potencial expansão (ou limitação) na proteção desses direitos que acabaram por desencadear tensões no diálogo interjurisdicional. A questão prejudicial formulada pelo Tribunal Constitucional espanhol no caso Melloni é uma ilustração significativa.
No mencionado caso Melloni, o Tribunal Constitucional espanhol apresentou uma questão prejudicial ao TJUE, a qual dizia respeito à interpretação da decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, que tratava do mandado de detenção europeu. Especificamente, o Tribunal Constitucional espanhol questionou se um Estado-Membro, com base no artigo 53.º da CDFUE, poderia recusar a execução de um mandado de detenção europeu quando a Constituição espanhola oferecia uma proteção mais elevada.
A decisão-quadro tinha como objetivo harmonizar as condições de execução do mandado de detenção europeu para facilitar o reconhecimento mútuo de decisões judiciais em casos nos quais o réu não estava presente no julgamento. O TJUE considerou que, salvo exceções previstas na decisão-quadro, os Estados-Membros não podiam recusar a execução de mandados de detenção europeus. Isso se devia ao fato de que tal recusa violaria os princípios da confiança e reconhecimento mútuo que a decisão-quadro visava fortalecer, comprometendo a sua efiácia.
Assim, um Estado-Membro não poderia usar o artigo 53.º da CDFUE para condicionar a entrega de uma pessoa condenada a uma revisão no Estado-Membro de emissão, a fim de proteger os direitos assegurados pela Constituição do Estado-Membro de execução, se isso comprometesse a eficácia do direito da UE. As dissonâncias em relação à proteção dos direitos fundamentais nos distintos Estados-Membros não poderiam comprometer a unidade, o primado e a efetividade do direito da UE, pois isso implicaria, em última análise, em ameaça ao Estado de direito.
Como podemos observar, o TJUE pautou seu entendimento no rol de competências delegadas à UE. Portanto, não havia espaço para debate sobre o nível de proteção que a Espanha poderia oferecer com base no artigo 53.º da CDFUE. Uma vez que a questão estava dentro do escopo da aplicação do direito da UE, não seria admissível a aplicação do direito nacional de forma contrária às normas europeias.
Essa decisão, no entanto, gerou um clima de tensão evidenciado pelo tom adotado pelo Tribunal Constitucional Espanhol. Embora tivesse concluído que o madado de detenção europeu estava em conformidade com os direitos e limitações estabelecidos na Constituição espanhola, ressaltou que o primado do direito da UE não poderia violar a supremacia constitucional da Espanha. Além disso, afirmou que, se o direito da UE entrasse em conflito com os valores espanhóis, haveria de proteger a soberania do seu povo e a supremacia da Constituição nacional.
Com essa ameaça, o juiz constitucional espanhol parece ignorar que o direito da UE não é interpretado com base no direito nacional, mas sim o contrário: o direito nacional é interpretado conforme o direito da UE. Ao buscar proteger o direito nacional em detrimento das normas de direito da UE, as regras discursivas são violadas, colocando em causa a estabilidade do Estado de direito dialógico e o adequado funcionamento do sistema internormativo. Como consequência, o direito que para os particulares decorre do ordenamento jurídico europeu também é afetado. Afinal, não podemos nos esquecer de que o direito nacional faz parte do direito da UE e vice-versa, sendo complementares. Não há, portanto, necessidade de qualquer sobreposição que resulte na invalidação de uma norma em favor da outra. Além disso, enfatizamos mais uma vez que os juizes nacionais são também juízes europeus, e, portanto, devem zelar pelos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros e o da UE.
Para além dos casos que envolvem questões de direitos fundamentais, como o mencionado Melloni, outros relacionados à cláusula da identidade nacional, prevista no art. 4.º, n.º 2 do TUE, também têm suscitado pontos de inflexão que instigaram os tribunais (constitucionais) a recorrerem ao reenvio prejudicial.
O artigo 4.º, n.º 2 do TUE exige que a UE respeite as identidades nacionais dos Estados-Membros, refletida nas suas “estruturas políticas e constitucionais fundamentais”, incluindo a autonomia local e regional. Esta cláusula foi inicialmente introduzida pelo Tratado de Maastricht, embora de forma mais concisa, pois apenas fez constar no art. F, n.º 1 do TUE que “[a] União respeitará a identidade nacional dos Estados-Membros, cujos sistemas de governo se fundam nos princípios democráticos”. A referência à democracia foi abandonada em 1997, quando o Tratado de Amesterdã alterou a cláusula da forma seguinte: “A União respeitará as identidades nacionais dos seus Estados-Membros” (art. 6.º, n.º 1 do TUE). Foi o Tratado de Lisboa que conferiu à referida cláusula a sua forma atual, delimitando o seu alcance às manifestações de identidade nacional que se encontram nas “estruturas políticas e constitucionais fundamentais” dos Estados-Membros.
Confrontando o texto atual com as versões anteriores, é possível notar que o artigo 4.º, n.º 2 do TUE deu ênfase à identidade “constitucional” nacional dos Estados-Membros. Não de outro modo que, pese o artigo 4.º, n.º 2 do TUE faça referência à “identidade nacional”, esta cláusula tem sido utilizada indistintamente como “identidade constitucional”.
De acordo com as conclusões apresentadas pelo então advogado-geral Miguel Poiares Maduro no processo Michaniki, a cláusula da identidade nacional inclui a identidade constitucional dos Estados-Membros na medida em que o próprio texto do artigo 4.º, n.º 2 do TUE remete a cláusula da identidade nacional às estruturas políticas e constitucionais fundamentais, incluindo a autonomia local e regional dos Estados-Membros. Nesse sentido, o conceito de identidade nacional seria bem mais abrangente, pois compreende o conceito de identidade constitucional.
Segundo Balaguer Callejón, “a identidade constitucional, num sentido amplo, é utilizada para fazer referência a particularidades dos sistemas constitucionais dos Estados que não necessariamente fazem parte da identidade nacional em sentido estrito, enquanto núcleo duro ou essencial da ordem constitucional”. É por isso que, ainda segundo o mesmo autor, “considerando que o conceito de identidade nacional gera problemas de aplicação em termos práticos, a sua outra dimensão “imprópria” (qual seja, a identidade constitucional) pode dotá-la de conteúdo”.
A utilização do termo “identidade constitucional” tem sido muito das vezes preterida nas conclusões dos advogados-gerais do TJUE, talvez porque, como sugere Balaguer Callejón, o seu sentido tenha a capacidade de desativar o “potencial político perturbador do processo de integração europeu”, permitindo uma “melhor confluência entre ordenamentos jurídicos distintos”.
Os tribunais constitucionais dos Estados-Membros têm igualmente demonstrado crescente interesse no conceito de "identidade constitucional", como evidenciado em decisões proferidas pela Corte Costituzionale italiana, tais como Frontini. Granital e Fragd. Essa inclinação pode ser compreendida considerando a responsabilidade dos tribunais constitucionais em proteger a Constituição nacional. Portanto, ao cumprir esse papel, esses tribunais não se restringem apenas a zelar pelas normas constitucionais que expressam a identidade nacional do Estado. Eles também se preocupam com disposições que consideram fundamentais para a própria identidade da Constituição, ou seja, disposições que definem a Constituição e sem as quais ela deixaria de ser a mesma.
A complexidade deste “tabuleiro de xadrez” reside na definição do que pode ser considerado identidade nacional ou constitucional frente a diversidade de ordenamentos jurídico-constitucionais que compõem o sistema internormativo europeu. Portanto, não é surpreendente que esse conceito continue ambíguo no contexto do direito da UE. Contudo, essa falta de clareza conceitual pode levar alguns tribunais constitucionais a invocá-la como justificativa para não cumprir obrigações do direito da UE ou questionar a validade de disposições do direito da UE.
Acontece que o direito da UE não permite "contralimites", exceto como último recurso, e devem ser evitados a todo custo. Isso não impede que um Estado-Membro questione junto ao TJUE qualquer disposição do direito da UE que considere uma ameaça à sua identidade nacional, de acordo com o art. 4.º, n.º 2 do TUE, desde que não coloque em risco os objetivos fundamentais da UE. Na verdade, se uma disposição ou medida da UE violasse a identidade constitucional de um Estado-Membro, isso seria visto como uma violação do próprio direito da UE, e o TJUE invalidaria essa disposição em conformidade com os princípios de direito da UE.
Nesse contexto, o pluralismo que caracteriza a construção jurídica da UE exige que todos os ordenamentos jurídicos, tanto nacionais quanto europeu, respeitem a identidade e as reivindicações normativas uns dos outros. Assim, a invocação da identidade nacional ou constitucional de um Estado-Membro não pode ser usada para minar os fundamentos do direito da UE, pois isso pode levar a bloqueios recíprocos.
Com essa perspectiva em mente, os tribunais constitucionais dos Estados-Membros devem aproveitar o reenvio prejudicial para expressar suas abordagens constitucionais na arena jurídica europeia. Ao desempenharem um papel vital no "jogo ordenado de convergências", esses tribunais têm sido instados a utilizar o reenvio prejudicial para dar voz às suas abordagens constitucionais na referida arena. Quando o juiz de um tribunal constitucional de um Estado-Membro age como um juiz com funções e autoridade europeia, ele se conecta com outros tribunais constitucionais dos Estados-Membros e contribui para uma perspectiva pluralista na narrativa do direito da UE.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise da harmonização jurídica à luz dos princípios que regem o sistema internormativo, e considerando a experiência da integração regional da UE, é possível destacar algumas considerações finais pertinentes.
Ao examinarmos as bases sobre as quais as integrações regionais se desenvolvem, torna-se evidente que tais processos se traduzem em questões profundas e complexas que requerem novos aportes teóricos capazes de explicá-los adequadamente.
A dinâmica de funcionamento de um sistema internormativo, onde normas com fontes e legitimidades diversas coexistem sem uma relação de sobreposição entre elas, é fundamental para compreender a natureza intrincada e multifacetada da harmonização jurídica em integrações regionais.
A análise dos desafios teóricos e práticos enfrentados na harmonização jurídica em integrações regionais revela a importância crucial da cooperação entre os tribunais dos Estados-Membros e o tribunal de uma integração regional, como o TJUE no caso em questão. Essa cooperação visa encontrar um equilíbrio no "jogo ordenado de convergências", respeitando as diversidades e a autonomia que devem ser preservadas em cada ordenamento jurídico.
Destacamos ainda o papel fundamental dos tribunais nacionais na aplicação das normas de direito da UE em seus respectivos ordenamentos jurídicos, bem como o diálogo interjurisdicional entre esses tribunais e o TJUE. O reenvio prejudicial emerge como uma ferramenta essencial nesse diálogo, permitindo que questões até mesmo constitucionais sejam discutidas e resolvidas com base na cooperação e esforços mútuos.
Por fim, concluímos que os tribunais nacionais, inclusive os constitucionais, desempenham um papel vital no contexto da UE no sentido de promover um diálogo construtivo entre eles e o TJUE. Somente através desse diálogo interjurisdicional pode-se garantir a coerência, a eficácia e o respeito pelos direitos fundamentais e a identidade nacional/constitucional no sistema internormativo europeu. Assim, é imperativo que os tribunais nacionais se engajem ativamente nesse diálogo, buscando soluções colaborativas para os desafios que enfrentam no exercício de suas funções e na construção contínua de um Estado de direito dialógico.