1. ACORDANDO NUM MUNDO PANDÊMICO APÓS SONHOS INTRANQUILOS
Franz Kafka, em uma de suas obras mais conhecidas, iniciou-a com uma sentença de altíssimo impacto que se tornou num estândar para a literatura que a procedeu: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos...”.
Essa sentença será o leitmotiv do presente trabalho, tendo-se, no entanto, o cuidado de alterar sujeitos e circunstâncias.
Agora, não mais um homem que se tornou “...verme monstruoso ungeheuren Ungeziefer;”, mas o mundo que, sem esperar ou se preparar, acordou de sonos intranquilos provocados por graves acontecimento de diversas ordens na pandemia de SARS-COVD2, lançando-o numa crise sanitária em espiral ascendente não diríamos nunca visto, mas de extremíssima gravidade, e que tem causado não poucas perdas de vidas humanas (no período em que se fez a revisão final desse trabalho já haviam morrido 5.969.364 no mundo, sendo 650.000 no Brasil), mas também econômica (queda em média de 4% do PIB mundial) e política, dada a perda contínua de legitimidade que se abateu sobre muitos governos, em particular aqueles que se alinharam no campo do negacionismo científico de tipo Trump-Bolsonaro-Maduro-Magufuli-Modi, o que provocou um implemento acentuado no número de mortes, e/ou de ineficácia no enfrentamento da pandemia.
Um dado importante, no entanto, e que geralmente tem sido sublimado pelas notícias do número de mortes e infecções, foi a rapidez com que a comunidade científico-farmacêutica, com o financiamento e apoio dos Estados e Organismos Internacionais, lograram desenvolver um número expressivo de vacinas que tem ou alta eficácia imunizadora ou, se baixa (desde que superior a 50%), são capazes de evitar o desenvolvimento de formas graves de COVID19 que levem à internação ou a morte.
Contudo, esse ponto específico também se constituiu numa causa de um despertar de sonhos intranquilos por pelo menos quatro fatores:
a) a Comunidade Internacional abdicou, até o momento, de adotar uma política comum de liberação dos direitos de patentes sobre as vacinas, dando-lhes o status de bem comum da humanidade. Especificamente o Brasil, que em março de 2021 havia se tornado o epicentro da pandemia de SARS-COVD2 em substituição aos EUA, tem mantido uma posição que encontra respaldo somente nos Estados que ou têm uma indústria farmacêutica em pleno desenvolvimento das vacinas (EUA), ou que já adquiriram estoques consideráveis de imunizantes (Reino Unido), em muitos casos em número superior à própria população, tendo se manifestado em sentido contrário às discussões havidas no âmbito da OMC para se enfrentar a chamada “nacionalização” da distribuição das vacinas,
b) os Estados ricos lograram, até o momento, adquirir o maior número de doses de vacinas, criando um lapso de atendimento seríssimo entre os seus cidadãos e os de Estados pobres,
c) o que levou ao surgimento de uma nova forma de desigualdade mundial, os vacinados e os não-vacinados, bem como
d) o aumento das desigualdades econômico-sociais, na medida em que o debelamento da epidemia por meio da vacinação de todos os povos é condição necessária para que ocorra o início da recuperação econômica mundial.
Por fim, a pandemia provocou uma terceira forma de despertamento de sonos intranquilos, e especialmente relacionado ao tema central deste trabalho, como seja, a incidência das regras do Direito Transnacional e seus princípios e regras autônomos em relação às demais formas de normatização das relações internacionais e supranacionais, pegando, por assim dizer, os soberanistas de calças curtas, ou, talvez, e para sermos mais precisos, os soberanistas brasileiros.
Como já afirmado, o Brasil tem sido considerado como um dos piores Estados no enfrentamento da COVID-19. Os problemas são inúmeros e se avolumam de forma tão acentuada, que parece ser impossível indicar a gravidade de um sobre o outro.
É importante reafirmar que isso é uma decorrência da postura adotada pelo governo brasileiro em relação à gravidade da pandemia, bem como a suspeição, que se concretiza cada vez mais em fatos incontestáveis, de que se tenha adotado uma (anti)política de disseminação do SARS-COVD-2 como forma de se induzir àquilo que se denomina de “imunização de rebanho por contaminação”, na medida em que se tem contraposto, indevidamente, o direito à saúde em relação à economia. Uma tanatopolítica, portanto.
Com efeito, em relatório apresentado pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA), da Universidade de São Paulo, coordenado pela Professora Deisy Ventura, se logrou demonstrar, pelo estudo sistemático de todas as normas produzidas pelo governo federal desde a decretação do estado de pandemia em março de 2020, que ele
optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que ela naturalmente induziria à imunidade dos indivíduos, e de que a redução da atividade econômica causaria prejuízo maior do que as mortes e sequelas causadas pela doença”.
Este fato explica muitas circunstâncias da tanatopolítica que se abateu no Brasil nesse período, mas também evidenciou uma manifesta ignorância acerca dos princípios e estândares do Direito Transnacional, que é a esfera normativa em que se insere o complexo sistema de fornecimento de vacinas e/ou insumos para a sua produção nas relações contratuais entre Estados e empresas transnacionais do ramo farmacêutico.
Provavelmente a maior evidência seja a “razão” que o então Ministro da Saúde, Gal. Pazuello, apresentou quando se tornou público, em meio ao aumento exponencial de mortes por COVID-19, que o Brasil havia recusado, em agosto de 2020, a oferta de 70 milhões de doses de vacina produzida pela Pfizer, conforme a Nota do Ministério da Saúde de 20 de janeiro de 2021:
O Governo Federal/Ministério da Saúde informa que recebeu, sim, a carta do CEO da Pfizer, assim como reuniu-se várias vezes com os seus representantes. Porém, apesar de todo o poder midiático promovido pelo laboratório, as doses iniciais oferecidas ao Brasil seriam mais uma conquista de marketing, branding e growth para a produtora de vacina, como já vem acontecendo em outros países. Já para o Brasil, causaria frustração em todos os brasileiros, pois teríamos, com poucas doses, que escolher, num país continental com mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a vacina.
Entretanto, não somente a frustração que a empresa Pfizer causaria aos brasileiros, as cláusulas leoninas e abusivas que foram estabelecidas pelo laboratório criam uma barreira de negociação e compra. Como exemplo, citamos cinco trechos das cláusulas do pré-contrato, que já foram amplamente divulgadas pela imprensa:
1) Que o Brasil renuncie à soberania de seus ativos nos exterior (sic) em benefício da Pfizer como garantia de pagamento, bem como constitua um fundo garantidor com valores depositados em uma conta no exterior;
2) O afastamento da jurisdição e das leis brasileiras com a instituição de convenção de arbitragem sob a égide das leis de Nova York, nos Estados Unidos;
Em nenhum momento, o Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde fechou as portas para a Pfizer. Em todas as tratativas, aguardamos um posicionamento diferente do laboratório, que contemple uma entrega viável e satisfatória, atendendo as estratégias do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, uma ação de valores mercadológicos e aplicação jurídica justa que atenda ambas as partes.
Além da Pfizer, com a qual o Governo Brasileiro continua em negociação, outros laboratórios já estão em fase avançada de negociações com o Brasil, dentro dos princípios e normas estabelecidas.
Merece destaque o fato de que, além dos aspectos já citados, é a única vacina que precisa ser armazenada e transportada entre -70°C e -80°C, prevendo um intervalo de três semanas entre primeira e segunda doses.
Além disso, o laboratório não disponibiliza o diluente para cada dose - que ficaria a cargo do comprador.
Embora o laboratório tenha criado uma solução para a conservação das doses durante o transporte (uma caixa de isopor revestida por um papelão não impermeável, que nos foi apresentada ao final de novembro, naquela oportunidade com a informação de conservação por 15 dias) e tenha oferecido fazer a logística desde a chegada dos EUA até o ponto designado pelo Ministério da Saúde, junto ao CONASS e CONASEMS, a Pfizer não se responsabilizaria pela substituição do refil de gelo seco - que deverá ser reposto a cada cinco dias (informaram que a conservação seria de 30 dias no mês de dezembro). Nos contatos de agosto, setembro e outubro, não havia ainda nos sido apresentada a alternativa da caixa térmica.
Além disso, a Pfizer ainda não apresentou sequer a minuta do seu contrato - conforme solicitado em oportunidades anteriores e, em particular na reunião ocorrida na manhã de 19 de janeiro - e tampouco tem uma data de previsão de protocolo da solicitação de autorização para uso emergencial ou mesmo o registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (Grifamos).
Como se pode verificar, os itens 1 e 2 da “justificativa” do Ministério da Saúde tocam, por assim dizer, no núcleo dos institutos centrais do direito transnacional. Assim, o presente trabalho tem por objetivo compreender as complexas relações transnacionais inerentes aos contratos farmacêuticos entre Estados e empresas farmacêuticas transnacionais, em particular de duas cláusulas geralmente presentes em tais contratos, isto é, o compromisso de arbitragem transnacional como forma de resolução de controvérsias entre os contratantes e a obrigação de formação de fundos não-soberanos como garantia de adimplemento das obrigações, e que encontram legitimidade no Direito Transnacional, no qual o Estado atua como um ator não soberano, e que essas previsões contratuais se orientam pela lógica favor creditoris, isto é, tendem a mitigar os privilégios internacionais dos Estados de forma a se favorecer o efetivo adimplemento da obrigação.
Metodologicamente foi empregado o método crítico, quanto mais por ter se tomado como elemento desencadeador da pesquisa a nota do Ministério da Saúde brasileiro acima reproduzida. Assim, o problema central é saber se, de fato, essas cláusulas são juridicamente inválidas ou se, pelo contrário, encontram justificativa, juridicidade e legitimidade no contexto do Direito Transnacional.
Mas antes, se enfrentará um tópico muito importante na distinção entre Direito Internacional e direito transnacional relacionado à relação entre sujeitos do direito internacional e atores internacionais.
2. ESFERAS NORMATIVAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E A DISTINÇÃO ENTRE SUJEITOS E ATORES INTERNACIONAIS
A expressão relações internacionais é ambígua porquanto com ela se atribui pelo menos três significados distintos assim referidos: objetivo, subjetivo e científico-disciplinar.
Por sua conotação objetiva identifica-se o fenômeno social, isto é, o conjunto de relações sociais desenvolvidas nos mais variados campos - economia, política, cultura, tecnologia, religião etc - no contexto da sociedade internacional, entendendo esta expressão como o cenário externo às sociedades nacionais, como acentua Pecequilo. Para Braillard.
O que caracteriza propriamente as Relações Internacionais é o fato delas constituírem fluxos que atravessam as fronteiras [...]. Podemos pôr em evidência a especificidade das Relações Internacionais definindo-as como as relações sociais que atravessam as fronteiras e que se estabelecem entre as diversas sociedades.
Entretanto, o conceito objetivo de relações internacionais, quando compreendido numa conotação bastante estrita, é identificado pelo conceito de Política Internacional, isto é, às relações de coexistência, coordenação, cooperação e/ou de litígio entre Estados. Pode-se afirmar, nesse sentido, que o principal interesse dos Estados em suas relações recíprocas é, conforme Pecequilo.
a preservação da segurança e da soberania. Para definir outros componentes deste interesse, o Estado atua como ser racional, avaliando seus riscos e seus benefícios. A cooperação, bi ou multilateral, é uma tática possível de ação, não assumindo o caráter de valor. Demandas morais e idealistas não devem ser levadas em conta neste processo, uma vez que a política internacional e a doméstica representam esferas separadas e de lógicas distintas.
Já pelo conceito subjetivo se identifica a relação concreta entre atores internacionais, isto é, as diversas relações subjetivas que os atores internacionais - públicos, privados e quase-públicos - empreendem na sociedade internacional, v.g., o comércio entre parceiros transnacionais, a creditação de um representante diplomático no Estado receptor, a transferência tecnológica na aquisição de material bélico ou nuclear entre Estados, o ataque terrorista promovido por um grupo jihadista etc.
Por fim, o científico-disciplinar idêntica a disciplina que por objeto de estudo as relações internacionais em suas duas conotações, cuja característica mais marcante é a sua interdisciplinariedade.
Do que pode verificar, a relação entre relações internacionais e Direito Internacional se mostra, no mínimo, indissociável para a correta interpretação dos fenômenos jus-internacionais. Contudo, essa indissociabilidade não pode ser confundida com identidade, isto é, entender que haja uma univocidade entre os conceitos, uma vez que se constituem em realidades fenomenológicas distintas. Com efeito, eles não se confundem porque o Direito Internacional não encerra a única esfera normativa das relações internacionais, já que além deste, tem-se o Direito Internacional Privado, o direito transnacional em suas diversas manifestações e, como salienta Gouveia, o Direito Comunitário Europeu, que, conforme amplamente aceito pela doutrina internacionalista, se constitui em ramo autônomo em relação ao Direito Internacional, ao lado de outras formas manifestamente privadas de regulação transnacional.
Ademais, as próprias estruturas lógicas das relações internacionais e do Direito Internacional impedem qualquer tese de identidade, já que aquelas formam uma disciplina hermenêutica, uma disciplina do ser, isto é, que interpreta e busca descrever as relações internacionais tal como elas são a partir de diversos e variados paradigmas e doutrinas. Já o Direito Internacional se constitui em uma disciplina deontológica, vale dizer, um ramo do dever ser, uma vez que, conforme assentado por Accyoli, “é o conjunto de princípios ou regras destinados a reger os direitos e deveres internacionais, tento dos Estados ou outros organismos análogos, quanto dos indivíduos”.
Por que essas distinções são importantes para o presente trabalho? Porque permitem evidenciar que as relações internacionais compreendem esferas de regulações jurídicas que não se circunscrevem somente ao Direito Internacional, já que o adjetivo internacional ainda guarda aquela conotação que Bentham atribuiu em seu Introduction to the Principles of Moral and Legislation, isto é, “...principles of legislation in matters between nation and nation [...] There remain then the mutual transactions between sovereigns, as such, for the subject of that branch of jurisprudence which may be properly and exclusively termed international .
Portanto, o que distingue o Direito Internacional das demais formas de juridicidade que vigem na sociedade internacional é o fato de ele ter seu fundamento no princípio da soberania, pois, conforme Brant, o direito internacional é, por natureza, um atributo da soberania, assim, a capacidade soberana figura como o elemento indicativo primordial da autoridade da norma”.
Já nas demais esferas de normatividade ocorrerá aquilo que Marcelo Neves identificará por transconstitucionalismo. Nessa obra de singular relevância para a compreensão da complexidade e da normatividade das relações internacionais contemporâneas, Neves afirma um ponto essencial: se o Estado, não querendo construir uma ponte de reconhecimento mútuo de legitimidade-validade-eficácia entre o seu ordenamento nacional com as demais formas de ordenações normativas transnacionais e supranacionais (aquilo que ele denomina de acoplamento estrutural), ele se exclui, soberanamente, de referidas relações jurídicas, o que implica para os destinatários finais das normas - indivíduos e empresas -, uma captio diminutio em seus interesses juridicamente relevantes, se não as suas efetivas exclusões.
Essas considerações acima operam um importante efeito no campo das subjetividades internacionais, pois, se a titularidade dessa última é uma atribuição da norma jurídico-internacional, e essa titularidade é condicionada pelo princípio da soberania, uma vez que, em último grau, é a concertação entre os Estados que atribui, por meio das fontes do Direito Internacional, a subjetividade aos sujeitos não-estatais, no âmbito do direito transnacional em suas mais variadas manifestações se pode inferir a dispensabilidade da personalidade jurídica, tendo como único critério para se aferir a ocorrência de uma relação internacional a capacidade fática para se atuar na esfera externa à jurisdição estatal, identifica pela expressão ator internacional.
Um ponto central a ser aclarado para se evitar mal-entendidos: não que o Estado deixe de ser soberano, ou as demais pessoas internacionais percam esse atributo quando suas ações e interesses passam a ser regulados pelas normas do direito transnacional, mas que o atributo da subjetividade internacional não lhes confere qualquer prevalência ou prerrogativa em face do outro ator com quem se relaciona, salvo excepcionalidades demarcadas pelas próprias normas num contexto conglobante de afetações recíprocas para se aferir a (i) liceidade de condutas, principalmente por se ter o Direito Internacional dos Direitos Humanos como paradigma normativo para essa aferição.
Como afirmado por Markus Kotzur,
Quem abandona à soberania, desconhece não somente a realidade social, como também o conteúdo jurídico do conceito, assim como a simples necessidade que as comunidades políticas têm de contar com uma capacidade, competencialmente garantida, de atuação e configuração.
Quem, por outro lado, continua sustentando a habitual, mas questionável equação entre povo, Estado e nação, não é menos cego ante a realidade e frente à necessidade de dispor de uma noção de soberania que lhe seja correspondente.
Nesse contexto de pluralismo normativo, em que não existe mais o uno kelsiano nem o dual triepelino, mas o “múltiplo”, o “plural”, caracterizado por aquilo que Delmas-Marty identificará, no contexto da internacionalização do direito, pelas imagens das “pirâmides inacabadas” e por “estranhos anéis que evocam “raminhos de uma guirlanda eterna”;” nas quais os sistemas normativos, guardando cada um para si uma ampla autonomia de regulação e hierarquização, impõe ao intérprete e ao órgãos estatais a exigência de um pensamento transdisciplinar, principalmente se não quiserem ser pegos descalços e com os coturnos sem cadarços.
Com efeito, conforme Varella identifica, será preciso perceber-se que nesse contexto, normatividade inter, trans e supranacional serão caracterizadas pela: i) a integração frequente entre os direitos nacionais, o direito de sistemas regionais de integração e o direito internacional, ii) a multiplicação de fontes normativas não estatocêntricas, iii) a multiplicação de instâncias de solução de conflitos fora do Estado, iv) a inexistência de hierarquia formal entre as normas jurídicas ou entre as instâncias de solução de conflitos, e v) o acúmulo de lógicas distintas no direito nacional e internacional, cuja interação é impossível com os métodos tradicionais de solução de conflitos de normas e de jurisdição.
Dois exemplos bastam.
O primeiro é dado por Varella no contexto dos sistemas de certificação ISO 9000 (certificação na qualidade de gestão e accountability fornecedor/consumidores internos-externos) e ISSO 14000 (gestão ambiental), e que são exigidos como condições prévias à contratação interna ou externa para o fornecimento de produtos e serviços para o poder público ou particulares. Essas certificações não foram instituídas por órgãos públicos nacionais ou internacionais, mas por um organismo privado - a International Organization for Standardization - cujas regras passaram a viger nas relações internacionais e transnacionais independentemente dos quereres e poderes estatais.
Outra foi a recente decisão da Junta Diretiva do ICANN que deu ganho de causa à Amazon, em detrimento do conjunto de Estados da região amazônica, sobre o domínio “amazon” na internet. Como cabe à ICANN regular a lex digitalis, e tendo ela dado ganho de causa à empresa, não aos Estados, que apresentaram exceções culturais e políticas para o uso exclusivo do domínio, parece ser bastante óbvio que o apelo à soberania não rendeu o sucesso esperado. Com efeito, segundo a decisão da Junta Diretiva, “não há nenhuma razão de política pública pela qual a solicitação de domínio .AMAZON;por parte da Amazon; não deve ser autorizada a prosseguir”.
Terra incognita foi a expressão que Triepel usou para identificar os problemas decorrentes da vigência interna das normas do Direito Internacional em nível interno, especialmente na sua aplicação pelos órgãos subalternos, uma vez internalizada a obrigação internacional. Importante que se lembre: quando feita essa afirmação, no distante ano de 1899 no seminal Völkerrecht und Landesrecht - texto quer serviu de base para seu Curso na Academia de Direito Internacional, na Haia, em 1937 - Triepel fazia referência àquilo que, academicamente, é identificado como Direito Internacional Geral, como seja, o conjunto de princípios e regras internacionais, majoritariamente consuetudinárias.
Passados tantos anos, com tantas viragens que se abate sobre o sistema internacional, não parece que ele tenha deixado de ser menos incógnito como à época de Triepel.
3. O DIREITO TRANSNACIONAL COMO ESFERA AUTÔNOMA DE REGULAÇÃO DE RELAÇÕES JURÍDICAS TRANSNACIONAIS
Atribui-se a Phillip Jessup, em sua obra Transnational Law, de 1956, a paternidade pela criação do nomen que dá origem, ao mesmo tempo, às esferas de regulações normativas criadas por atores não-estatais.
Com efeito, Jessup denominou por Direito Transnacional como “todo direito que regula ações e eventos que transcendem as fronteiras nacionais. Tanto o direito internacional público quanto o privado estão incluídos, bem como outras normas que não se enquadram perfeitamente em uma categoria padrão”.
Em um primeiro momento, portanto, o conceito englobaria todas as formas de normatização das relações internacionais, desde aquelas criadas pelo Estados em suas mútuas relação (Direito Internacional), passando pelas regras internas dos Estados que resolvem problemas relativos ao conflito interespacial de normas, isto é, a partir da fixação das regras de conexão quer determinam se as relações privadas de caráter transnacional serão regidas por normas nacionais ou de direito estrangeiro (Direito Internacional Privado), chegando a formas autônomas de regulação normativa efetuadas por atores não-estatais transnacionais, como fica bastante evidenciado no contexto da lex mercatoria.
O que direcionou Jessup nessa compreensão foi o fato de ele ter observado que a complexidade das relações transfronteiriças não envolvia, somente, a aplicação de uma espécie de norma ou outra, mas um conjunto de normas - sejam de atores estatais ou não-estatais - e que podem e são arguidas pelos interessados para a proteção de seus respectivos interesses.
Um exemplo significativo se dá no concernente a arbitragem transnacional, o meio de solução de controvérsias par excellence do direito transnacional, em que tanto as normas convencionais e o soft law do Direito Internacional é aplicado em conjunto com as diversas regulações de direito material e processual das mais diversas Câmaras e Tribunais de arbitragem, sem que uma norma possa ou reclame precedência ou hierarquia sobre as demais.
Por isso, Vagts sustenta que o que caracteriza o direito transnacional como campo normativo autônomo são as seguintes características: i) que ele versa sobre causas que transcendem as fronteiras nacionais, donde o seu nome transnacional, ii) que não há uma distinção clara entre normas de direito público e de direito privado, e iii) ser regulado por fontes normativas abertas e flexíveis, além das tradicionais listadas no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, incluindo, por exemplo, a soft law, os regulamentos processuais das Cortes de Arbitragem, resoluções da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional etc.
Uma vez que Jessup caracterizou o direito transnacional naqueles termos e desde aquelas características, surgiu uma corrente doutrinária que se orienta pela asseveração de uma autonomia em sentido forte para distinguir o direito transnacional do Direito Nacional e do Direito Internacional, conforme sustentado por Teubner. Em outros termos, o direito transnacional se constituiria em um campo autônomo e não subordinado quer ao direito nacional quer ao Internacional, guardando, pois as seguintes características na concepção de Koh :i) não é tradicional, pois distancia-se das dicotomias históricas que envolvem o estudo do direito internacional de divisão entre público/privado e doméstico/internacional, ii) não é estatal, já que os atores envolvidos nesse processo não são apenas, e nem primordialmente, o Estado. Inclui atores não estatais, iii) não é estático, mas dinâmico, tendo a aptidão de transforma-se do público para o privado, do doméstico para o internacional e vice-versa, e em constante mutação, e iv) é normativo, pois no processo de interação, novas normas emergem, são interpretadas, executadas e internalizadas.
Para que fique mais claro o que se afirma. Para Teubner, os setores sociais produzem normas com relativa autonomia em relação aos Estados, possibilitando a emergência de ordenamentos jurídicos sui generis. Exemplificando os ordenamentos jurídicos transnacionais criados por setores sociais ele cita a lex mercatoria, a lex sportiva e a proteção de direitos humanos. No contexto da discussão sobre a lex mercatoria, Teubner assevera que
observamos aqui é um discurso jurídico auto-reprodutor de dimensões globais que cerra as suas fronteiras mediante recurso ao código binário “direito/não-direito” (Recht/Unrecht) e reproduz a si mesmo mediante o processamento de um símbolo de vigência global (não: nacional). O primeiro critério - codificação binária - distingue o direito global de processos econômicos e outros processos sociais. O segundo - vigência global - delimita o direito global de fenômenos jurídicos nacionais e internacionais. Ambos os critérios são instrumentos da observação de segundo grau, conforme mencionado anteriormente. Assim, o direito observa as suas próprias observações em seus ambientes dos ordenamentos jurídicos nacionais e do sistema social global. Com essa definição rendemos homenagem ao linguistic turn na sociologia e o aplicamos simultaneamente ao “direito no contexto”. Correspondentemente, conceitos-chave da sociologia clássica do direito, como norma, sanção e controle social passam para o segundo plano; seu lugar é assumido pelos conceitos-chave centrais das controvérsias contemporâneas, como ato de fala, énoncé, codificação, gramática, transformação de diferenças e paradoxos. Elas prometem uma compreensão mais aprofundada da lex mercatoria e do pluralismo jurídico global, além daquela que as categorias da tradicional sociologia do direito podem oferecer. A sanção perde o seu papel tradicional como concepção central para a definição do direito, para a delimitação entre as esferas jurídica e social, e as esferas global e nacional. Naturalmente, esse conceito fora importante para a tradição: na teoria do direito, de Austin (commands backed by sanctions), no conceito de direito, de Max Weber (administração por uma equipe jurídica profissionalizada), na distinção de Ehrlich entre normas jurídicas e normas não-jurídicas, e, finalmente, no behaviorismo da teoria jurídica de Geiger (alternativa obediência à norma/sanção).
Nesse mesmo sentido, Nasser inclui a regulamentação privada transnacional que passaria por um processo de deslocamento do nacional para o transnacional e do público para o privado, podendo ser definida como “um novo corpo de regras, práticas e processos” criados por atores independentes e comunidades epistêmicas.
Essa autonomia epistêmico-normativa parece ser orientada pelo princípio favor creditoris, isto é, a ordenação principiológica do direito transnacional em sua manifestação na lex mercatoria para o efetivo adimplemento da obrigação, de forma a se adotarem modelos contratuais, de arbitragem, garantias de adimplemento, cláusulas de seguro e resseguro de forma a se conceder ao credor relativa segurança no efetivo adimplementos do negócio transnacional, o que explica, num sentido bastante elucidativo, a inconformidade de muitos Estados quando se relacionam com outros atores nessa seara.
Com efeito, tanto a cláusula compromissária da arbitragem como a obrigação de constituição de fundo não-soberano para que ocorra o adimplemento da obrigação econômica se orientam efetivamente por uma lógica favor creditoris. Basta pensar que, caso valesse para referidos negócios transnacionais, ou a submissão aos princípios do Direito Internacional - imunidade de jurisdição e sobre bens e valores -, ou do direito nacional - no Brasil, pelo menos quatro instâncias, e ao final delas o adimplemento por precatório -, bastante óbvio que os demais atores poderiam ser conduzidos a um conjunto de procedimentos inibitórios, quando não revogatórios, das obrigações assumidas.
Nesse sentido, o modelo de solução de controvérsias, que no contexto do direito transnacional é a arbitragem transnacional constitui-se num instituto exemplar. Com efeito, a arbitragem é a pedra de toque dessa esfera normativa, na medida em que os seus atores, ao não confiarem na judicialização perante os tribunais nacionais, se socorrem exclusivamente dessa modalidade, utilizando-se de uma complexa rede de tribunais arbitrais dispersos pelo globo, existindo uma gama de fatores que levam os atores transnacionais a dela se utilizarem, tais como a desconfiança em relação às justiças nacionais e os seus elevados custos, a manifesta ausência de celeridade processual, decorrente tanto da inflação processual como da possibilidade de ampla recorribilidade das decisões.
Diversamente ao modelo estatal, na arbitragem preponderam características essenciais que a tornam atrativa, a saber: i) a necessidade de acordo entre os litigantes na escolha da composição do tribunal arbitral, cujos membros gozam da confiança e respeitabilidade da comunidade por seu comportamento e conhecimento técnico, ii) a liberdade de escolha do direito aplicável, tanto material como processual, iii) a celeridade na solução da controvérsia, mesmo que se tenha a necessidade de dilação probatória e seja prevista a hipótese de recorribilidade, iv) a garantia do sigilo que recai sobre a lide e sobre a arbitragem, e v) a executoriedade do laudo arbitral perante o poder judiciário de qualquer Estado.
Assim, aquilo que é visto como espanto, perplexidade ou, em muitos casos, o recurso retórico em torna da “ofensa à soberania”, é nada mais que o Estado acordando de sonhos intranquilos num contexto transnacional em que a sua subjetividade internacional é, embora respeitada, conformada aos princípios e procedimentos que o direito transnacional impõe como condição ao pleno adimplemento das obrigações, isto é, por se guiar por uma lógica favor creditoris.
4. OS CONTRATOS FARMACÊUTICOS NO CONTEXTO TRANSNACIONAL
Na atual economia globalizada, as transações comerciais, do ponto de vista jurídico, podem implicar na formação de contratos transnacionais, gerando uma complexa relação entre pessoas, Estados e empresas, não importando seu porte. Isto reflete a natureza dinâmica (e problemática) dos contratos contemporâneos.
Esses contratos transnacionais contam além do objeto em si (ex: entrega de vacinas ou medicamentos), em várias outras cláusulas previamente pactuadas, como, por exemplo, o foro para dirimir eventuais conflitos à posteriori da celebração do acordo. Segundo Mazzuoli e Prado em 2021, o que os caracteriza é a existência de um conjunto de normas jurídicas aplicáveis que asseguram a sua funcionalidade, o que é especialmente importante em casos de crises, pois, eventualmente, as partes desejarão rever, suspender ou rescindir a relação contratual. Nesse caso, a busca para a solução desta crise está em saber em que base legal foi pautado o contrato e quais as regras ali foram utilizadas.
Na elaboração do contrato, o seu objeto deve respeitar a legislação aplicável, e entre as múltiplas escolhas que o venham a constituir como já visto, pode incluir uma série de direitos internos, ou apenas usar os princípios comuns destes direitos internos bem como os princípios gerais de direito, direito Internacional ou os princípios aplicáveis às relações econômicas internacionais e ainda os princípios não vinculativos de direito privado de origem, a lex mercatoria.
Desse modo, conforme Brant, emergem duas implicações importantes: em primeiro a indicação de múltiplas opções, incluindo a possibilidade de recurso a direitos interno ou ao direito internacional. Este fato parece indicar que a diferença entre esses dois sistemas normativos é de conveniência e não de princípio previamente estabelecido com base no status público ou privado do destinatário. Em segundo, também expressa o apelo a direito autônomo composto por regras do direito internacional público, do direito interno e do direito privado que revelam as limitações desta distinção. Este fato comprova a existência da Lex Mercatoria nos termos em que proposto por Jessup.
Dentre este universo de possibilidade de regras aplicáveis, é tarefa complexa identificar qual dentre estas regras seriam as mais adequadas para o contrato e ainda terem em seu conjunto de regras uma unicidade. De acordo com Mazzuoli e Prado em 2021, no âmbito do direito internacional privado são aplicáveis dois “métodos”. O primeiro método é uma regra formal de conflito (tradicional) cujo método destina a resolver conflitos de lei, que especifica a lei aplicável que pode resolver a relação pertinente (escolha entre várias leis em diferentes ordens jurídicas), no segundo método temos a regra material (uniforme), que determina diretamente a solução aplicável à substância.
Observa-se que nos casos em que os contratos farmacêuticos e/ou vacinas se firmem nas referências clássicas do direito internacional, temos que as regras escolhidas para dirimir os conflitos sejam comuns no sistema jurídico interno dos contraentes envolvidos, havendo, portanto, coesão. Porém, caso tenhamos conflitos nestes regramentos a opção pela adoção das convenções bilaterais (regras de fonte internacionais) podem suprir esta desarmonia. Aliadas a isto, regras não vinculativas (soft law) podem ser utilizadas também para a solução do conflito.
Assim, os contratos farmacêuticos transacionais (especialmente nesta crise de sanitária do COVID-19) são forjados para estabelecerem cláusulas que possam solucionar eventuais conflitos, geralmente aplicando as regras da isenção de responsabilidade em casos fortuitos e de força maior, normalmente previstos nas regramento internos dos estados pactuantes, como se dá, por exemplo, no contexto da legislação privada brasileira.
De semelhante forma, a China passou a emitir desde fevereiro de 2020 através do Conselho da China para Promoção de Comércio Internacional (CCPIT), certificados com base na força maior para as empresas locais, de modo a servir como uma prova pré-constituída. Estes certificados têm o condão de auxiliá-los em eventuais disputas jurisdicionais ou arbitrais com pactuantes estrangeiros por alegação de inadimplemento contratual.
Notadamente estes certificados (CCPIT) e a declaração do Congresso terão um peso expressivo na aplicação da regra chinesa, seja judicial ou arbitral. As empresas que não conseguem cumprir suas obrigações contratuais ainda devem provar que o coronavírus (ou medidas de contenção do governo) as impediu de cumprir seu contrato. Estas medidas - previsão da força maior já foram utilizadas na ocasião do SARS em sendo a disputa do contrato internacional com base no inadimplemento da força maior (pandemia do coronavírus), a cláusula será reconhecida. Nos tribunais brasileiros naquele contexto de pandemia H1N, teve o mesmo entendimento aplicado.
Num contexto de negócios jurídicos transnacionais, essas questões tomam relevo, pois em sistemas da civil law há previsão na lei interna, diversamente do que ocorre nos sistemas da comom law. A saída está entre os pactuantes conceituarem o termo “força maior” e firmarem em cláusula específica (regra material) para ser alegada como excludente de responsabilidade, justificando o seu inadimplemento. A previsão contratual trará mais segurança jurídica e os pactuantes ainda poderão se valer de suspensão ou rescisão das obrigações.
Outro ponto importante nesse contexto é o da previsão de compartilhamento de riscos entre o Estado e a empresa fornecedora.
É de se esperar dos Estados a implementação de políticas públicas locais para garantia e o acesso a medicamentos mais inovadores no mercado e, nesse contexto de pandemia global, que se mostrem hábeis na corrida para a obtenção de vacinas. Logo, todo o processo de compra e aquisição de medicamentos inovadores, em especial da vacina para o vírus SARS-COVD٢, dá-se num contexto de incerteza e de concorrência.
A OMS declarou Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional (EPSIC) em 30 de janeiro de 2020. Logo depois disso, o patógeno que causou um novo tipo de doença respiratória mais tarde conhecido como Covid-19 foi isolado e o primeiro sequenciamento de genoma foi concluído. Somente depois que o EPSI foi anunciado, as instituições científicas / acadêmicas e os fabricantes começaram a desenvolver uma vacina contra o Covid-19. Esse fato tem desafiado cronologicamente o sistema público de saúde em todo o mundo, e as agências reguladoras não são exceção.
Neste contexto, as agências reguladoras que possuem procedimentos padrões para autorizar o uso dos produtos investigados teve que rever suas condições e desenvolver diretrizes, procedimentos e estabelecer grupos de trabalho e redes de cooperação para maximizar a eficiência da avaliação, revisão e autorização de produtos médicos. Segundo a OMS desde a concepção até a coleta de evidências de qualidade, segurança e eficácia suficientes para garantir que as vacinas sejam utilizadas em emergências de saúde pública, há um implemento de dificuldades no caso das vacinas, posto serem um produto médico mais complexo.
E neste cenário que os maiores laboratórios do mundo se voltaram exclusivamente para encontrar uma vacina para o combate do vírus, o que acelerou e um muito o ritmo das pesquisas, aqui considerada não apenas a metodologia, mas o emprego da tecnologia mais avançada para sua aplicação nas fases de estudos clínicos objetivando a neutralização do vírus, implicando no desenvolvimento de diversos processos de pesquisa e a necessidade que um grande investimento.
A despeito disso, o Estado deve garantir a saúde da sua população, devendo buscar eficiência na gestão para garantir o acesso aos medicamentos mais inovadores (vacinas, remédios etc.,). Daí reside a questão emblemática, como investir numa vacina ou medicamento num contexto de incerteza? E mais, reduzir essas incertezas como bem acentua Rodriguez-Ibeas et al. de que modo a garantir “à eficácia e efetividade, segurança, taxa de sub-substituição de outras drogas, tamanho da população de pacientes potenciais, bem como o crescimento da taxa de prevalência da doença”. Todas estas pontuações devem ser consideradas, pois trazem implicações econômicas e enormes custos, devendo ser lidada com probidade e atenção.
O modelo risk sharing (compartilhamento de risco) no setor privado no Brasil tem destaque no caso pioneiro aplicado pela Unimed de São José do Rio Preto em parceria com a GSK Oncologia desde 2011, nesta parceria o desfecho é favorável, a UNIMED desembolsa a integralidade do custo do medicamento, mas se o desfecho não for favorável, o desembolso do custo do medicamento fica por conta da indústria farmacêutica (GSK Oncologia). Nota que o pagamento pelo produto é vinculado ao desempenho da indústria farmacêutica.
No contexto de pandemia a gestão pública se valerá de uma metodologia diferenciada, a expertise para a tomada de decisão em processo voltados a medicamentos novos ou vacinas para o combate da covid-19, exige-se outro comportamento. Neste diapasão Claxton e Fenwick acrescenta que o acesso à informação da tecnologia usada na confecção do medicado ou vacina terá sua implicação na análise destes conhecimentos apresentados o seu valor implicará consequentemente para reduzir os níveis de incertezas e propor custos para novas abordagens no intuito de reunir mais elementos para a pesquisa em saúde.
Em países mais abastados economicamente se valem de contratos de compartilhamento de risco, contudo exige-se equipe governamental preparada neste aspecto da gestão contratual, pois requer atenção rigorosa e um acompanhamento administrativo rigoroso. Casos assim, é muitas das vezes questionados judicialmente, neste particular a previsão de arbitragem em cláusula contratual seria uma saída mais rápida para a solução do conflito.
O interesse neste tipo de contrato de risco compartilhado como assevera Gérard de Pouvourville temos as empresas investindo muitos mais recursos na produção justamente para garantir ótimo conhecimento ex-ante sobre o valor esperado do produto (medicamento ou vacina), e o Estado na qualidade de promitente comprador serão compelidos a ter maior transparência nas suas tomadas de decisões.
Os contratos desta natureza segundo Puig-Junoy e Meneu, normalmente se pautam com os acordos de preço / volume, a ideia é de prevê o volume de vendas que se pretende atingir de acordo com suas expectativas de lucro, conhecendo previamente os níveis decrescentes de preços. Por seu turno, o comprador limita as consequências que um aumento do volume prescrição além das previsões estabelecidas sobre a relação custo-benefício. Assim um contrato de que tem por definição um valor fixo de vendas em sendo alcançados, os preços sofreram redução para o próximo evento ou nos casos de reembolso, que poderia se aplicar aos contratos das vacinas no Brasil, acordos voltados eficácia em caso não sejam alcançadas, os fabricantes restituirão o dinheiro.
Para Towse e Garrison o impacto orçamentário, desconto de preço, incerteza de resultados e subgrupo incerteza são motivos para optar pelo compartilhamento de risco contrato e neste diapasão Stafinski et al reforça que na abordagem de desenvolvimento de acesso com evidência (AED) temos esquemas baseados em resultados de saúde e garantias de resultados financeiros como justificativa para os termos do acordo com base no compartilhamento de risco.
Para evitar que negócios (inclusive contratos de vacinas) que envolvem riscos não sofram uma desigualdade entre os pactuantes na distribuição dos riscos, é que modelo risk-sharing tem sua relevância nestes tipos de negócios, pois as perdas associadas aos riscos podem ser acordadas fixando regras claras, condições ou padrões estabelecidos para gerir e dividir os riscos .
Denota desta afirmação que os regramentos propostos no negócio terão o condão de propiciar um ambiente capaz de maximizarem os ganhos e se minimizarem as perdas dos contratantes que financia ou investe seu capital. O autor ainda destaca que normalmente estas regras podem estar associadas a eficiência ou aos resultados esperados por quem negocia, mas além disso podem visar a redução das perdas associadas a externalidades, esta última não podendo ser controladas tampouco depende de seus agentes envolvidos.
Para uma gestão de risco exitosa deve estar acompanhada ao nível de informação detido pelo agente que administra o risco. Pois do contrário, não será possível chegar a uma precisão do risco e a expectativa de estimar os ganhos reais do negócio investimento.
Na área da saúde e todo o seu entorno demanda medicamentos e sempre os deparamos com inovações que se espera do financiador da pesquisa um comportamento avesso ao risco, é necessário e faz parte deste contexto, pois do contrário inúmeras drogas não estaria disponível no mercado para suprir as mais diversas doenças com grau de complexidade para a cura. Por conta disso temos termos do acordo validado sob a batuta dos ganhos estão associados ao volume de vendas dos produtos ou ao resultado da eficácia do medicamento.
Para Medici, exista a possibilidade de haver dificuldades na organização de esquemas de compartilhamento de risco, não deixa de ser vantajoso “como garantias de que os custos não serão pagos se os resultados não forem alcançados, podem ser usados para sinalizar positivamente uma alta qualidade e confiança quando pela falta de evidências, a eficácia do produto não é facilmente observável”.
O governo pactuando com uma indústria farmacêutica, tem capacidade e logística para auxiliar na gerência de incertezas quanto ao custo e a efetividade de um determinado medicamento. No cenário da pandemia, temos que a pesquisa se baliza na urgência da entrega da vacina, portando os custos decorrente destas externalidades, é preciso ser agregado ao custo que pela natureza a situação passa a ser passível de compartilhamento.
Este modelo é complexo, pois exige uma geração e compartilhamento de informações transparentes e no caso do Brasil perpassa por uma agência Nacional de Vigilância Sanitária para obter evidência, contudo não impede que os negociantes se antecipam, estabelecem no contrato para regular o papel de cada agente aqui envolvido. Numa relação negocial que envolva a incerteza da eficácia da vacina ou medicamento entre empresa e Estado estrangeiro num contrato de compartilhamento de riscos é perfeitamente possível o pedido de reembolso.
5. A PREVISÃO DA ARBITRAGEM E FUNDOS NÃO SOBERANOS
A arbitragem enquanto mecanismo para a resolução de litígios se constitui em um instrumento jurídico importante e útil, e que é usado nas relações privadas em razão do princípio da autonomia da vontade, nomeadamente no que se refere à escolha da lei aplicável nas relações contratuais.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial além das consequências afetas diretamente as nações envolvidas, tem-se o surgimento de organismos internacionais com a pauta de pacificar os conflitos decorrentes relações comerciais internacionais. A arbitragem tem sido utilizada como meio jurídico de resolução de conflitos de destaque devido o impulso comercial que começou a ser desenhado. Muito embora seja um instituto utilizado há muito tempo, é considerado pela doutrina como contemporânea e atual.
As estruturas de organizações no universo internacional são “livres” não se obstaculizam as políticas de negócios, diferente no campo interno, no Direito Nacional, contudo o contexto das transformações impostas pela globalização, exigem por consequência uma mudança ou novo direito, o Direito Transnacional, decorrente do pluralismo jurídico.
Desta forma Montserrat Filho afirma que os Estados são obrigados pela própria imposição da globalização a harmonizar seus interesses com as demais partes envolvidas, de modo a garantir a diversidade de interesses internacionais, acrescenta ainda Ramos produzindo regras ou normas e decisões voltadas para o objeto de disputa, uma visão privada, descentralizada do Estado, mas com apoio direito ou indireto do seu conteúdo normativo.
Assim, a opção da arbitragem como forma de resolução de conflito aliada a previsão da utilização da lex mercatoria como um direito (regras e decisões criadas pelos próprios agentes envolvidos no negócio jurídico) aplicável ao objeto de disputa se deparará num ambiente menos hostil, pois foram baseados na autonomia da vontade, princípio basilar da arbitragem. Deste modo afirma, Strenger:
o regime arbitral é que melhor exprime a independência do comércio internacional no que concerne à solução de seus problemas, residindo nos textos de suas decisões os melhores repositórios para justificar a Lex Mercatoria.
Segue ainda Strenger dizendo que “a arbitragem tem sido campo fértil para justificar a implantação da Lex Mercatoria, dada a sua crescente desvinculação, seja das leis impositivas nacionais, seja das jurisdições estatais.”
Fornasier corrobora a afirmação de Strenger ao afirmar que essas relações transfronteiriças se aprimoraram e tornaram cada vez mais complexas a ponto de o Estado render-se à globalização sob a possibilidade de não avançar nessas relações de diversidades de interesses internacionais, como consequência a marginalização frente às cooperações internacionais de cunho comercial. Trata-se de um instrumento jurídico importante para as nações que pretendem participar ativamente nas interfaces da econômica mundial e não se manter inerte neste processo de desenvolvimento constante da economia mundial.
Nesta lógica as regras da lex mercatória oferecem segurança jurídica aos envolvidos nas relações transnacionais, pois suas regras e decisões são criadas pelos interessados, o que se assoma em razão da disparidade dos sistemas jurídicos e culturais espalhados pelo mundo, ademais a realidade de cada país pode influenciar de modo desfavorável na dinâmica do comércio internacional, a exemplo questões ideológicas, meio ambiente, corrupção entre outros.
A arbitragem se difundiu em razão da clara desconfiança que os atores internacionais em relação aos órgãos nacionais, pois, de fato, há uma clara incerteza em se ficar à mercê das normas internas dos estados, pois, segundo Grebler “não é possível afirmar com certeza que o direito nacional de determinado país será sempre aplicável às transações comerciais que envolverem os seus nacionais”.
Para Dolinger e Tiburcio existem três tipos de arbitragem: arbitragem de direito internacional público, arbitragem de investimentos e a arbitragem comercial internacional. No primeiro caso é necessário a formalização de um tratado internacional, seu processamento e decisão é pautada pelo Direito Internacional Público. Devendo ser cumprida o laudo (decisão) arbitral, sob pena de incorrerem em ilícito internacional. No segundo caso, os investidores estrangeiros e os Estados se submete a lei aplicada pelo árbitro, podendo a lei escolhida não ser de nenhum estado nacional. E vale destacar que pela regra brasileira (Lei de arbitragem) os artigos 34 e 40 exige a homologação do laudo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), com ressalvas determinadas pelo art. 38 da mesma lei. Por fim a arbitragem comercial internacional, que também pode ser identificada pela expressão arbitragem transnacional, esta é empregada a fatos que não se enquadrem nos outros tipos indicados, razão qual ocorreu uma abertura na recepção pelos ordenamentos internos de algum país aos costumes ou princípios que regem o comércio internacional e, no caso do Brasil, com a respectiva homologação do laudo pelo STJ.
A convenção de arbitragem é condição essencial para a instituição da arbitragem, sem a qual o julgamento do conflito ficará condicionado ao monopólio Estatal, eis o caráter imperativo decorrente da autonomia da vontade e se apresentam de dois modos: de cláusula compromissória e de compromisso arbitral. Suas características e vantagens é visível não somente pela confidencialidade em relação ao litígio público estatal e com isso preservando a imagem dos litigantes no decorrer de um processo desgastante, como também é livre e espontâneo o interesse dos litigantes em renunciar à jurisdição estatal para solução do conflito, elegendo a via arbitral. Outro ponto importante, é o fato de as partes ter o poder de escolha e delimitar qual o direito material a ser aplicado e o seu procedimento até a entrega do laudo arbitral e consequentemente a pacificação do conflito.
A cláusula compromissória conforme Didier Júnior é “ato voluntário, em cujo suporte fático confere-se ao sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais”. Nota-se no compromisso arbitral, o contrato pelo qual as partes envolvidas sujeitam um conflito ao julgamento da arbitragem temos apenas uma previsão de sua ocorrência, e uma vinculação ao instituto, enquanto cláusula compromissória precede um conflito de interesses instaurado entre as partes.
Vale ressaltar que dentre os requisitos exigidos na Lei nº 9.307/96 (lei Brasileira) o objeto de regulação da arbitragem se circunscreve aos direitos patrimoniais disponíveis. Em relação aos demais regramentos de instituições arbitrais a permissão para as hipóteses suscetíveis de recurso à arbitragem poderá ser mais abrangente, como é o caso da Lei Modelo da UNCITRAL para Arbitragem Internacional Comercial onde prevê que toda lide relacionada com o comércio internacional se torna suscetível à arbitragem. Já na Câmara de Comercio Internacional a ideia é resolver as disputas comerciais e comerciais internacionais com o intuito de apoiar o comércio e o investimento. Nota-se na mudança da Câmara que retirou a exclusividade relações comerciais de caráter internacional, agora prevê as disputas comerciais, existe diversas possibilidades de escolha de procedimentos administrados como alternativa ao litígio para resolver disputas nacionais e internacionais. Vindo ainda a ampliar a prestação de serviços seja a indivíduos e empresas do setor privado a estados e entidades estatais.
Logo é se notar a relevância da arbitragem como instrumento de solução de conflitos em âmbito internacional, considerando seu caráter jurisdicional, diferente do método negocial da mediação e da conciliação, pois o confronto da pluralidade de ordenamentos jurídicos e, ainda a diversidade encontrada em cada nação envolvida em transações internacionais, provoca divergências importantes na resolução do conflito decorrente das cláusulas negociais. Para Glitz, as “; divergências entre o Direito transnacional e a legislação doméstica tendem a se dissipar conforme se harmonizem os princípios relacionados aos negócios internacionais”.
Nesse sentido, é bastante óbvio pensar que a arbitragem se orienta por uma lógica favor creditoris, vale dizer, uma lógica que privilegia o adimplemento integral da obrigação convencionada, na medida em que a arbitragem transnacional goza de uma credibilidade que os sistemas nacionais não têm.
No caso do contrato de compras das vacinas envolvendo governo brasileiro e a Pfizer/BioNTech previu como cláusulas arbitrais de rescisão: por justa causa, por rescisão mútua ou em caso de insolvência. No caso da justa causa as partes poderão encerrar o contrato desde que notifiquem qual cláusula foi violada e não sanada no decorrer de 30 dias a contar da notificação. Em se tratando da rescisão por parte da Pfizer recairá ao Estado brasileiro o pagamento total de toda das doses contratadas ressalvadas àquelas já pagos à Pfizer anteriormente (data definida no contrato). E na possibilidade de rescisão mútua temos imposição de três condições: a) a vacina não obter a autorização da Anvisa até 30 de setembro de 2021, cláusula já superada, torna sem efeito; b) a Pfizer não cumprir com a entrega das doses do produto até 30 de abril de 2022 e, c) sujeito às prorrogações previstas no contrato; ou se a empresa não entregar todas as doses contratadas até 31 de dezembro de 2022. Neste último caso o Brasil estaria autorizado faturar a Pfizer um reembolso de 100% (cem por cento) daquelas doses já pagas adiantadas e não entregues.
A emergência foi determinante para a lei n. 14.124 de 10 de março de 2021, dispor sobre as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas contra o Covid-19 com previsão da dispensa de licitação por parte da Administração Pública direta ou indireta a celebrar contratos desta natureza.
As cláusulas compromissórias decorrente deste contrato transnacional teve em particular autorização pela mesma lei com a ressalva de que as condições impostas sejam indispensáveis para obter o bem ou garantir a prestação do serviço tais como: “I) eventual pagamento antecipado, inclusive com a possibilidade de perda do valor antecipado; II) hipóteses de não imposição de penalidade à contratada; e III) outras condições indispensáveis devidamente fundamentadas”.
Em que pese a referida lei nada mencionar sobre o método de resolução de conflito, foro competente ou lei aplicável e apenas autorizar em caso de omissão recorrer a nova lei de licitação (Lei N° 14.133 de 1° abril de 2021), que no seu art. 92 parágrafo 1° onde dispõem: “Os contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas físicas ou jurídicas, inclusive as domiciliadas no exterior, deverão conter cláusula que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual (...)”, contudo exclusão disso seria aplicadas somente as ressalvadas trazidas em três hipóteses inclusive não aplicáveis neste caso em questão. A questão deve ser discutida pela lei de arbitragem e não a lei de licitação, onde no seu art. 1º, § 1° autoriza “Administração Pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, logo pela escolha da arbitragem como método de resolução de conflito no contrato entre a União e a Pfizer pauta pela legalidade.
Com relação ao foro competente ambas as leis não trouxeram previsão expressa, mas por analogia aplicaríamos a lei 8.987 de 15 de fevereiro de 1995, que dispõem sobre “o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos (...)” onde no seu art. 23-A. estabelece que “o contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil (...)” no idioma português, nos termos da lei de arbitragem.
Quanto a lei aplicável esta não restou dúvidas, pelo princípio da autonomia da vontade a União anuiu a lei de Nova York ao contrato com a empresa Pfizer, muito embora Lei brasileira de Arbitragem não impôs o seu império como a lei a ser aplicável para dirimir o conflito, aqui estamos diante de atos de gestão e não de império a ponto de sucumbi ou violar soberania estatal. Trata-se de um contrato de compra e venda de vacinas, contudo a parte da doutrina entende que a falta de previsão expressa, não autoriza a aplicação do princípio da autonomia da vontade como justificativa para a submissão da União à legislação de Nova York.
No tocante a jurisdição, sede de arbitragem em Nova York todas as decisões decorrentes do procedimento arbitral daquele tribunal vinculam seus pactuantes ao seu cumprimento. Como o Brasil em cláusula compromissória renunciou a imunidade de jurisdição relativa, para fins de execução de qualquer decisão, despacho ou sentença arbitral. O curioso disto é que em eventual discussão sobre essa renúncia de Imunidade de Jurisdição do Estado e da execução das decisões, tanto o Brasil e os Estados Unidos não ratificaram o aceite da convenção da ONU neste particular.
Ao que nos parece questão de emergência acabou por ditar tom das cláusulas compromissórias no contrato de compra de venda das vacinas contra o Covid-19 entre o Brasil e a empresa Pfizer, pois uma renúncia tão ampla e irrestrita de imunidade de jurisdição em verdade poderia ser perfeitamente ser questionado em sede recurso, ademais em eventual condenação do Estado Nacional teria que passar pelo crivo do STJ para a homologação da decisão estrangeira e a tese certamente levantada seria a violação ao princípio da ordem pública.
Nota-se pela legalidade deste negócio jurídico em questão, a cláusula compromissória controversa poderia recair na renúncia da ampla e irrestrita imunidade de jurisdição e execução, o Brasil evidentemente fica mais exposto num contrato onde idioma e lei aplicável ao julgamento do mérito não é o seu.
De qualquer sorte a situação extrema da pandemia e na busca de garantir a o acesso das vacinas para a coletividade e sob o manto direito fundamental à saúde, a União fragilizou o equilíbrio entre direitos e deveres nesta relação jurídica, cláusula de eventual pagamento antecipado com a possibilidade de perda do valor antecipado, contudo, é do risco compartilhado já tratado anteriormente.
No tocante, de outro lado, à formação de fundos não soberanos como garantia de adimplemento das obrigações avençadas, elas se mostram de extrema importância por excepcionarem a imunidade jurisdicional dos Estados, seja a de caráter jurisdicional, seja a executória.
Com efeito, em decorrência do princípio da igualdade soberana, aplica-se à matéria o princípio “par in parem nom habet judicium”. Assim, qualquer controvérsia entre particular e um Estado deve ser solvido em sua jurisdição, salvo as exceções que têm sido construídas pela jurisprudência dos poderes judiciários nacionais, como a distinção entre ato de império e ato de gestão ou decorrente de graves violações aos direitos humanos.
O mesmo se espraia, como não poderia ser diverso, aos bens e valores pertencentes aos Estados e que se encontrem no exterior. A rigor, referidos bens e valores gozam de imunidade de execução, de forma que não poderão sofrer constrição por ordem de um órgão jurisdicional estrangeiro.
Se a regra é bastante importante para as relações entre os Estados, de forma que bens e valores não poderão sofrer constrição ou restrição de forma unilateral, é bastante óbvio que para os credores particulares essas regras poderão implicar em verdadeiras restrições ao gozo de direitos, na medida em que implicariam na obrigação de judicialização e execução perante os tribunais nacionais, ensejando, em muitas circunstâncias, um atraso significativo para o adimplemento efetivo da obrigação, senão uma impossibilidade temporal prolongada, como ocorre, e.g., no Brasil com a exigência constitucional de precatórios, que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 tem sido causa de uma verdadeira humilhação para muito jurisdicionados, e de enormes celeumas constitucionais, inclusive no campo das propostas de emenda à constituição.
Logo, a previsão de fundos não soberanos como forma de se permitir o adimplemento dos contratos transnacionais, em particular no campo do fornecimento de vacinas e ou demais medicamentos, está ligado imediatamente ao postulado favor creditoris, na medida em que se privilegia a satisfação do crédito em relação ao interesse do devedor, ainda mais em matéria que envolve o desenvolvimento de tecnologia farmacêutica com altíssimo custo para todos os envolvidos.
CONCLUSÃO
No presente trabalho se buscou demonstrar que, por decorrência da incidência das regras e dos princípios do Direito Transnacional, em sua conformação como campo autônomo das relações internacionais, todos os atores internacionais, estatais ou não estatais, se encontram destituídos de privilégios e prerrogativas que o Direito Internacionais concede, em especial aos Estados, como condicionantes necessários à preservação, de um lado, de sua autoridade e independência, e de outro como limitação à intervenção em esfera própria às suas jurisdições. Em síntese, o “par in parem nom habet judicium” é um postulado do Direito Internacional inerente à soberania estatal.
Em sede de Direito Transnacional, pelo fato de o Estado agir como um particular (iure gestionis ou privatorum), ele não pode arguir seus direitos e privilégios internacionais em relação à outra parte, na medida em que, para o bem e para o mal, as relações transnacionais privilegiam a satisfação do crédito.
Logo, as cláusulas de constituição de arbitragem transnacional, de formação de fundos não soberanos ou de risk-sharing são instrumentos que têm por finalidade a distribuição equitativa dos riscos do negócio e satisfação efetiva da obrigação, impondo aos Estados uma relação substancialmente isonômica, vez que não poderá, a rigor, se socorrer de suas prerrogativas asseguradas pelo Direito Internacional.
A “recusa” inicial do governo brasileiro em obter do fornecedor transnacional as doses de vacinas indispensáveis ao debelamento da pandemia de COVID-19 sob tais argumentos foram, de fato, desculpas esfarrapadas para uma péssima, se não criminosa, gestão nacional da crise sanitária. Se o mundo despertou numa manhã de sonos intranquilos na pandemia de COVID-19, os brasileiros parecem ainda estar imersos no pesadelo de final da noite que se abateu, presumidamente a Gregor Samsa. Mas mesmo uma noite tenebrosa termina, e o novo dia trás o esplendor que o sol a nascer comunica na renovação da esperança, que só o é porque, em meio ao caos, se a intui como potência redentora de uma tanatopolítica que assola a todos.