INTRODUÇÃO
O tratamento jurídico das fronteiras é um assunto que deve ser privilegiado para a realização dos processos de integração regional. Partindo do princípio de que a regionalização ressignifica as fronteiras entre Estados-membros do processo integracionista, a reversão da lógica das normativas que mantinham controle para separação passam a buscar construir controle conjunto das fronteiras, mas agora para integração, para fazer fluir (pessoas, bens e capital). Nessa ótica, o que acontece nas fronteiras passa a gerar interesse de maneira diferenciada, pois as mesmas deixam de ser a margem para serem espaços privilegiados sob nova perspectiva internacional, e demandam novo tratamento jurídico-político.
Por isso, o presente artigo visa abordar um aspecto dos desafios do Direito Internacional Público da Integração, bem como o Direito Internacional para Integração nas fronteiras. Em específico, buscar-se-á problematizar a nova dinâmica jurídico-política decorrente das implicações dos novos atores da/para integração regional a partir da ressignificação das fronteiras. Com isso, aspira-se refletir sobre a condição das fronteiras num olhar transfronteiriço, considerando o status de uma ordem pós-nacional. De que maneira o Direito Internacional Público da Integração Regional e o Direito Comunitário abordam a questão (trans) fronteiriça? A integração regional gera que tipo de consequências às políticas públicas necessárias para a composição dos desafios próprios das fronteiras, como o reconhecimento de novos atores?
Porém, para que essa trilha seja aberta, há a necessidade de um repensar jurídico-político que viabilize os múltiplos processos de integração. Sob o crivo jurídico, as fronteiras estabelecem um marco territorial para o exercício da jurisdição estatal (ainda que não único, como se percebe na extraterritorialidade da lei penal e civil, e.g.), e um ambiente fecundo para geração de situações jurídicas multiconectadas próprias do Direito Internacional Privado (ramo do Direito que tem como tarefa resolver sobre a jurisdição competente e a lei aplicável acerca dos conflitos de leis no espaço com conexão internacional). Afinal, a fluidez territorial da vida dos habitantes de fronteira subverte o entendimento de que a fronteira é o limite.
Esses novos arranjos político-institucionais tem como consequência uma nova compreensão de que os problemas e os desafios partilhados passam por enfrentamentos e tomadas de decisões que já não se restringem a uma soberania estatal, mas a processos decisórios interestatais, no marco de novas institucionalidades político-jurídicas, com graves implicações em tudo que diz respeito às políticas de fronteiras. Evidentemente não subsume a função do Estado nacional, mas cria uma outra órbita para alinhamento de políticas que serão implementadas conjuntamente ou individualmente por sua soberania, mas de maneira sintonizada.
Nesse contexto, a União Europeia oferece um modelo sobre a abordagem integracionista para as fronteiras, mas certamente não pode ser entendido como o único caminho a ser considerado, pois o modelo ainda está em franca disputa, nos termos indicados a seguir. E com isso as situações de fronteiras interestatais tornam-se campo fértil para a identificação de um conjunto de novos atores geopolíticos, até então encobertos.
O que diferencia o espaço nacional de fronteira em relação aos demais é que se trata da porta de entrada e saída do país, cuja fluidez gera um conjunto de consequências jurídicas tão amplo quanto complexo. Desafios e especificidades que se definem também para as políticas públicas locais, e na governança com os entes subnacionais (no caso do sistema federativo brasileiro, o diálogo entre União, Estados e Municípios). São consequências jurídicas que entrelaçam as órbitas processuais e materiais dos ramos penal, civil, tributário, previdenciário, que deveriam ser de algum modo transformadas com as implicações do Direito da Integração. Mas de que maneira essa nova reorientação geopolítica, em direção à integração regional pós-nacional, impacta a governança das fronteiras estatais e redefine o Direito e as Relações Internacionais? É a esse problema que o presente ensaio buscará se deter.
Para responder a isso, o desenvolvimento do presente texto apresenta três partes. Num primeiro momento traz-se as razões da integração regional e o modo como cada uma das razões muda o papel desempenhado tradicionalmente pelas fronteiras. Na sequência, fundamenta-se a premissa sobre a integração regional tornar-se um paradigma institucional para na terceira parte abordar o debate sobre os modelos institucionais/jurídicos/políticos/econômicos em disputa.
INTEGRAÇÃO REGIONAL E A RESSIGNIFICAÇÃO DAS FRONTEIRAS
Os processos de integração regional constituem um fato histórico consolidado e em consolidação, fruto do redimensionamento vertical das Relações Internacionais. Trata-se de um redimensionamento vertical que tem elevado os espaços decisórios para além do Estado nacional, e engendrado novos foros da geopolítica, no ambiente regional para fora, além do nacionalismo metodológico, forjado em decorrência do Estado moderno. As personalidades internacionais constituídas para promover a regionalização nos últimos 70 anos se multiplicaram, como nas Américas a ALADI (Associação Latino-americana de Integração), o MERCOSUL, a Comunidade Andina, o NAFTA (North American Free Trade Agreement), a CARICOM (Caribbean Community), a UNASUL (União das Nações Sulamericanas),a ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas); na África a UA (União Africana), a ECOWAS (Economic Community of West African States), a SADAC (Southern African Development Community); na Europa o Benelux (Benelux Economic Union) e a União Europeia; na Ásia, incluindo a Eurásia, a APEC (Asia-Pacific Economic Cooperation), a CEI (Comunidade dos Estados Independentes), a ASEAN (Association of South-East Asian Nations), para falar de apenas algumas dentre tantas outras organizações internacionais de caráter integracionista. Todas essas instituições são exemplos do resultado desse novo espectro institucional que redimensiona o papel dos Estados na geopolítica, em reforço ao espaço regional, para produção de decisões políticas, criação de fontes de Direito, construção de políticas públicas variadas, promovendo e criando novos atores, entre tantas outras consequências importantes decorrentes da integração regional.
Consideram-se três principais causas, por vezes mescladas com suas próprias consequências, que impulsionam e compelem os Estados à negociação de esquemas de integração regional. Em primeiro lugar está a questão da paz e a acomodação dos conflitos e das tensões por meio do ajuste dos fatores que prenunciam os conflitos armados; em segundo plano a motivação advém da globalização econômica, que “encurrala” os países economicamente pequenos nos sistemas de negociação do mercado global; e, em terceiro lugar, para promover o equilíbrio de poder à geopolítica mundial. Nesse sentido, a integração regional é gestada pelo viés anti-hegemônico, sob o aspecto econômico ou político-militar, redefinindo o sentido que as fronteiras devem assumir, cada vez mais direcionadas para integrar, para deixar fluir.
Os três elementos aparecem juntos em muitos dos casos, mas dependendo do momento histórico, das demandas internas e da (des) ordem internacional em vigor, um desses três pode ser preponderante, exigindo reformas e ajustes regionais para que o bloco atenda adequadamente as questões de interesse comum. Acomodadas as questões internas, intrarregionais, fulcro de controvérsias internacionais mais graves, a integração econômica tende a assumir interesse maior para um progressivo aprofundamento legal, político, jurisdicional, social e cultural, permitindo uma dinâmica fronteiriça de nova intensidade.
Conforme dito acima, o primeiro elemento que se promove por meio da integração é a busca pela paz. O problema da guerra e a vontade de se resolver de maneira mais permanente as ameaças que os países fronteiriços ainda representam ou representavam, em certo momento, motiva em grande parte as sistemáticas concessões de soberania para entes interestatais regionais. Nesse sentido, é possível se referir aos exemplos da integração nuclear Brasil-Argentina que, após convergirem na disposição de ambos parceiros à política de não proliferação nuclear, abriram-se os caminhos às futuras negociações do MERCOSUL1.
Na Europa, a institucionalização da autoridade intergovernamental sobre carvão e aço entre França e Alemanha por meio da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que fora outrora um “barril de pólvora” dos severos conflitos continentais, forjando um início mais concreto à integração europeia e a formação da EURATOM para criar um controle interestatal sobre energia atômica.
Evidente que a tematização da paz conjugada com a integração regional é pauta de séculos, conforme se vê na abordagem de Charles Irénée Castel de Saint-Pierre (1658-1743), mais conhecido como o Abade de Saint-Pierre, ficou registrada em 1713 no seu “Projeto para Tornar Perpétua a Paz na Europa”2. Mais recentemente, inclusive, com a conhecida Declaração Schumann de 1950 de Robert Schuman e Jean Monnet sentenciava que “a integração era o passo indispensável, sem o qual a ‘paz mundial não poderia ser salvaguardada’”3.
De modo que a causa e os efeitos de confundem, pois a consolidação da paz no interior da região é a primeira consequência prática da integração. Isso não quer dizer paz perpétua, pois não há caminho sem volta no contexto intra-regional. Sempre será possível romper com as instituições diante de ameaças internas dos Estados ou de um conflito mais intenso. De qualquer forma, as chances de se chegar efetivamente a um conflito armado internacional entre os Estados membros da organização regional se tornam cada vez mais remotas. Os fatores em integração tendem a dissipar os conflitos pré-existentes e seus mecanismos de solução de controvérsias antecipam as soluções dos problemas maiores, antes ainda de serem amplificados. Os fóruns permanentes e especializados de interlocução regional, num primeiro momento, permitem hiperdimensionar as diferenças. Aos poucos, com a implementação efetiva das políticas integracionistas amplia-se a percepção de interdependência à opinião pública, e passam a envolver também os sistemas de defesa, organizados não mais apenas no nível nacional, mas já visando estratégias militares regionais, como o Conselho de Defesa da UNASUL4 e o Conselho de Defesa e Segurança a União Europeia5. Tudo isso, em conjunto, vai aos poucos pavimentando os caminhos a uma paz mais e mais estável.
Nesse aspecto, a própria etimologia da palavra “fronteira” remonta ao radical “front”, do francês, enquanto front de guerra, de batalha, ou seja, de raiz bélica. Portanto, a fronteira designando o espaço geográfico onde os conflitos bélicos se realizavam, onde também foram plantadas minas terrestres e todo tipo de armamento empregado para impedir fluxo das tropas inimigas, em que o ápice da violência se realizava. Ante os processos de integração, ocorre uma necessária ressignificação sobre a função exercida pelas fronteiras, por um ambiente propício para as transformações dos conflitos, que se já não são mais bélicos, refletem e desvelam múltiplas diferenças e podem bem ser motivo de violências estruturais, como xenofobia, racismo, injustiças sociais em suas diversas facetas.
O segundo aspecto que direciona a bússola governamental à integração regional é a globalização econômica. Os desafios da competição pós-nacional, aos quais estão expostos os Estados nacionais para fazerem parte do mercado global, são amenizados ou, pelo menos, tendem a ser ajustados na medida em que os mesmos se integram uns aos outros para negociarem como partes, de uma organização regional, que se expressa em nome de todos os seus membros.
Ante a concorrência internacional avassaladora para a economia interna nos países de capitalismo tardio e as dificuldades de expor os produtos internos no mercado mundial, a integração regional cria chances para que ambos ocorram de maneira menos “traumática” à economia nacional, em processo de abertura. Além de robustecer o Estado nas negociações internacionais, a regionalização também é uma alternativa para o desenvolvimento. Para Maria Teresa Dominguez, “a integração constitui no século XXI uma ferramenta política que permite melhorar as condições de inserção no mundo já que implica maior poder de negociação e competitividade para seus componentes, que agora podem atuar como bloco”6.
No contexto da expansão do comércio internacional de bens e serviços e ampliação do trânsito de capitais, as regiões de fronteiras passam a ser acionadas tanto para realização de atos legalmente previstos, potencializando tudo que diz respeito à logística e aos novos arranjos de transportes e transferências, quanto para a subversão da licitude do comércio (descaminho e contrabando, e.g.) e das transações financeiras. Afinal, não é apenas o fluxo de comércio lícito que se expande a mundialização do capitalismo, também todas as formas de tráficos e contrabandos aproveitam as vias pavimentadas pela globalização econômica para explorarem, da sua maneira, novos mercados e novas potencialidades de lucros. Além das ilicitudes evidentes, também os pontos cegos da legalidade acabam por ser exploradas - como bem descrito pela jornalista Denise Paro sobre os “caminhos e descaminhos” de Foz do Iguaçu7, a fronteira mais “viva” do Brasil.
Um terceiro aspecto considerado em separado como razão à integração regional é a projeção política anti-hegemônica do bloco. A aliança entre os Estados tem condições de fazer frente as investidas hegemônicas, seja por conta do aspecto econômico, como mencionado acima, ou mesmo sobre as pretensões de dominação político-militar, na medida em que ocorrem alianças políticas regionais. Interessante com isso notar a sincronicidade, não aleatória, da queda do muro de Berlim em 1989, e as incertezas quanto à ordem mundial do pós-guerra fria, com seus fundados receios acerca de uma política mundial unipolar, seguida da estruturação do MERCOSUL em 1991 e do Tratado de Maastricht, que marcou união econômica com política e alterou a denominação Comunidade para União Europeia, em 1992. Os blocos forjam uma estrutura cada vez menos vulnerável a influências e esquemas de dominação aos atores de fora do sistema regional, permitindo que os Estados, sobretudo os pequenos, se protejam melhor das investidas hegemônicas.
Nesse sentido, as fronteiras acabam sofrendo uma relativização na relação centro-periferia também por serem as margens, ou melhor, as periferias do ponto de vista da centralidade decisória das capitais políticas e dos centros econômicos. Isso implica não apenas na distância física, mas também numa falta de sensibilidade dos centros decisórios quanto à realidade que o cotidiano das fronteiras demandam, bem como na (não) realização ou implementação de políticas públicas de construção plena do Estado de Direito, ante o déficit de políticas de segurança públicas, e dos direitos sociais, como se pode perceber nas condições sociais (educacionais e econômicas, por exemplo) dos municípios de fronteira do Brasil.
É por essas e outras razões que a integração regional tornou-se um paradigma jurídico-político, conforme apresenta-se a seguir.
DESAFIOS DA INTEGRAÇÃO TRANSFRONTEIRIÇA PARA O DIREITO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS : NOVOS MODELOS E NOVOS ATORES
Os novíssimos desafios para construção de políticas públicas de fronteira são profundamente impactados pelas transformações em curso no Direito e nas Relações Internacionais, que ressignificam a função exercida pelo seu princípio basilar, a soberania, solapada sobretudo com as inovações da regionalização. Afinal, é justamente no âmbito dos processos integracionistas que ocorrem as concessões mais significativas de soberania.
Ao mesmo tempo em que os processos de integração regional são replicados em diversos continentes, o modelo institucional que deverá perdurar ainda parece ser uma incógnita, a despeito das insistentes cópias que se fizeram do desenho europeu, sem por vezes construirem-se mediações locais mais adequadas. Por isso, é preciso frisar que, ainda que a União Europeia se consolide como uma referência, os processos em curso comportam diferentes modelos, missões e visões - razão pela qual se justifica comentar o modelo de integração transfronteiriça gestado pela UE.
FRONTEX: Diluição das fronteiras na União Europeia como Referência?
O exemplo paradigmático e talvez o mais óbvio à integração regional advêm da Europa8, não apenas pela sua capacidade econômica e política (militar) que tem de confrontar e resistir à tendente unipolaridade da ordem global, mas também pela novidade política que representa de conformação da experiência singular de uma organização supranacional e de Direito Comunitário9 - que não é nem nacional nem internacional mas uma nova senda da juridicidade que se plasma na regionalização. Trata-se “do processo de integração supranacional mais ousado e complexo que a sociedade internacional já conheceu”10.
A UE é hoje um verdadeiro laboratório de ensaio à política internacional por inovar em estruturas supranacionais, ainda que seja por vezes identificada como uma Organização Política Não Identificada (OPNI) pelo seu não enquadramento nos arquétipos até então conhecidos e pelos eurocéticos que se avolumam ao criticarem o esquema de conexão continental11 ou expressam isso nas urnas (como o retumbante “não” ao Tratado Constitucional Europeu na França e na Holanda, que ousaram submeter referendos ou o êxito eleitoral do Brexit). Mesmo nos que confiam no potencial da união, questionam fortemente a indefinição do seu futuro tendencialmente limitado a um neoliberalismo sem correspondente resposta política que amenize os prejuízos sociais daí decorrentes12- ressalvando que não há caminho único para realidades tão díspares.
Nesse sentido, a União Europeia também inova com relação às fronteiras, ao criar o espaço Schenchen, que viabilizou a liberdade de circulação entre Estados. Criou-se, assim, uma fronteira externa comum, com a liberação para circulação nas fronteiras internas. Isso significa, na prática, que quem entra numa fronteira do espaço Schengen entrou nos outros países também, implicando num sistema de informações integrado. Para isso, foi criado um sistema integrado para gerir fronteiras (European Boarder and Coast), uma agência especializada no controle das fronteiras externas (FRONTEX), com sede em Varsóvia. Ou seja, uma outra dimensão fronteiriça foi criada para que o controle ficasse nas margens da própria região, diluindo o papel das fronteiras intrarregionais, fortalecidas noutro tipo de articulação e construção, pós-nacional.
O Frontex define novos parâmetros de controle de fronteira no marco das políticas de integração regional. A questão é saber se é esse o modelo a ser desenvolvido pelas demais formas de regionalização ou se outros mecanismos terão que ser criados para atender a especificidades locais e regionais.
A perspectiva plural de modelos integracionistas e de regiões fronteiriças
As organizações internacionais de integração regional compõem uma tendência em todos os continentes, influindo de diversas maneiras no interior dos Estados nacionais. De toda maneira, as regionalizações correspondem a um conjunto heterogêneo e multidimensional13. Os propósitos variam, de meras trocas mercantis a uma relação efetivamente mais profunda, a ponto de forjar uma cidadania mais densamente compartilhada, eventualmente voltadas a setores distintos (em determinados períodos eram mais políticos, ante a transnacionalização do capitalismo, a economia tomou conta dos interesses circundantes, podendo passar até a questões de segurança coletiva14, assim como as dinâmicas internas também oscilam conforme atores, histórico e contingências, de pujança econômica ou pobreza e instabilidade/estabilidade política - haja visto por exemplo a ascensão do euroceticismo ante a crise econômica europeia de 2011-2012.
Os regionalismos como um novo arranjo político internacional alteram substancialmente a inserção dos países, e de seus jurisdicionados, na mundialização. Por conta disso, poucos Estados alienam-se de algum desses sistemas. Para se ter uma noção da importância desta tendência, em 2005, de acordo com a OMC apenas a Mongólia, entre todos os seus Estados membros da organização, não fazia parte de qualquer dos 330 acordos de comércio regional15, incluindo tanto zonas preferenciais, áreas de livre comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns - há ainda quem diferencie união monetária.
Em suma, as regionalizações, mesmo heterogêneas e multidimensionais, têm o condão de amenizar os desequilíbrios de competitividade ante a globalização da economia, preparando as economias nacionais, bem como seus povos, para se integrarem de maneira mais salutar à mundialização, estabelecer um novo jogo de forças no âmbito do multilateralismo sob uma nova lógica de equilíbrio de poder16, gerando maiores estabilidades intrarregionais, e tendencialmente integradoras das dimensões econômica e política do projeto. De modo que as regionalizações são, entre outras coisas, um mecanismo de resistência às robustas manifestações hegemônicas que se dão no seio da mundialização.
A formulação de sistemas de integração, notadamente dos mercados, sofre pressões por parte dos movimentos, das instituições e das regras promotoras dos Direitos Humanos, ainda que se constituam como uma novidade aparte em meio à mundialização. Posto isso, cabe pontuar que os processos de integração regional se localizam entre as demandas capitalistas da globalização econômica, neoliberais, neocapitalistas, e as demandas emancipatórias de rearranjos políticos e resistências culturais.
Disso, pode-se depreender que, conforme o marco de integração regional interestatal implicado, e também conforme os desafios próprios de cada região de fronteira, poder-se-ia pensar em políticas públicas transfronteiriças específicas, mediadas pelos atores locais, governamentais e não-governamentais - como aponta Jayme Benvenutto (2016) ao abordar a integração regional a partir da fronteira da Argentina, Brasil e Paraguai. Ou seja, os gargalos do processo integracionista transfronteiriço que desafiam Livramento-Rivera (entre Brasil-Uruguai) são díspares ao que vivencia Posadas-Encarnación (Argentina-Paraguai) ou na fronteira trinacional de Ciudad del Este- Foz do Iguaçu-Puerto Iguaçu (Paraguai-Brasil-Argentina).
Mais atores com novos modelos: Ois, municípios e sociedade civil
Nesse contexto, ainda que modelos interessantes surjam no marco de outros arranjos regionais, resta consolidada a necessidade de se construir adaptações adequadas às especificidades regionais, tanto por conta das ordens políticas quanto econômicas, jurídicas e socioculturais. Para isso, faz-se fundamental para viabilizar uma tal ordem, mediada por adequações específicas, a identificação dos atores específicos que impactam em cada uma das situações fronteiriças. Entre essas, pode-se destacar:
a) As Organizações Internacionais interestatais, constitutivas de pessoas jurídicas de direito internacional, vocacionadas à integração regional. O “novo ator” mais óbvio situado nesse contexto são as próprias organizações internacionais interestatais voltadas à regionalização, já listadas, cujas implicações estão acima descritas, gerando impactos no exercício da soberania dos Estados e da cidadania dos povos, redefinindo conteúdos e práticas jurídicas, fluxos de mercado e distribuição de poder geopolítico. Entretanto, numa lógica pós-vestfaliana das relações internacionais, mais e novos espectros de atores devem ser descortinados e empoderados, para além das pessoas jurídicas de direito internacional convencional - seja pelos entes estatais subnacionais ou mesmo originários da sociedade civil e mercado.
Destaca-se que as concessões de soberania mais densas têm sido realizadas justamente para estas personalidades internacionais, chegando a superar por vezes toda normativa estatal por uma decisão de ordem comunitária - como no caso da União Europeia. Isso para dizer que não são cosméticas as transformações daí decorrente sobre os modelos jurídico-políticos porvir.
b) Cidades/Municípios localizados em áreas de fronteira. Vale a pena chamar atenção para a situação dos municípios situados em regiões de fronteiras - como é o caso de Foz do Iguaçu, Paraná, a fronteira mais viva do Brasil, e do outro lado do rio Paraná, Ciudad de Leste, no Paraguai igualmente relevante ao país vizinho, adensadas por outra fronteira com a Argentina se observado o outro lado do Rio Iguaçu, com Puerto Iguazu. Os municípios fronteiriços são diretamente impactados pela dinâmica internacional, em especial os aspectos bilaterais, sem por vezes terem oportunidade de apresentarem suas demandas e perspectivas nos foros internacionais pertinentes.
A importância das cidades é decorrente, entre outros fatores, da ampliação da população urbana, que há poucos anos passou dos 50% do total da população mundial, e da compreensão que, ao fim e ao cabo, é onde vivem as pessoas - assim, sua mobilidade e bem-estar estão diretamente ligadas às decisões tomadas por entes públicos estatais muitas vezes distantes demais das realidades cotidianas das cidades periféricas, como é o caso daquelas localizadas em faixa de fronteira.
Entes público-estatais sub-nacionais, como os municípios e os Estados membros da federação são legitimamente promovidos cada vez mais enquanto atores da geopolítica - razão pela qual progressivamente os municípios e os Estados têm constituído suas próprias secretarias ou órgãos administrativos análogos de relações internacionais, inicialmente mais reativas aos eventos e demandas que chegam, mas necessariamente deverão se aprimorar de modo mais propositivo à geopolítica que lhe impacta.
Não é ao acaso que o próprio Mercosul forjou o Mercocidades/ Mercociudades, ou que se fez também uma organização para cidades de fronteiras da América Latina como a OLACIF - Organização Latino-Americana de Cidades Fronteiriças. De outro lado, percebe-se a tendência atual de as administrações municipais instituírem suas assessorias ou secretarias de Relações Internacionais, para que estejam capacitadas a participarem de maneira mais técnica desses novos espaços decisórios, pós-nacionais. Isso tudo é parte dos novos horizontes da paradiplomacia.
Nesse contexto chama atenção novos tratados bilaterais voltados à integração fronteiriça que atribuem papéis importantíssimos às políticas públicas locais, como o Acordo Argentina-Brasil sobre Localidades Fronteiriças Vinculadas (assinado em Puerto Iguazú, na Argentina, em 30 de novembro de 2005, aprovado pelo Congresso Nacional em 2 de junho de 2011 pelo Decreto Legislativo 145 e entrou em vigor em 7 de julho de 2011), que serviu de referência para o Acordo Brasil-Paraguai sobre Localidades Fronteiriças Vinculadas firmado em 2017. Tais acordos fomentam a cooperação transfronteiriça em matéria de saúde, educação, trânsito vicinal, com foco na integração, demandando, para sua efetiva implementação, o engajamento das políticas públicas locais.
c) Instituições de Mercado e da Sociedade Civil. Ainda que haja restrições à capacidade decisória das instituições decorrentes das associações empresariais ou da sociedade civil, fato é que tais coletivos apropriam-se mais e melhor das pautas internacionais com ciência sobre o impacto sobre seus campos de interesse e atuação, demandando legitimamente espaços e endereçando suas petições aos foros de política externa ou mesmo diretamente às arenas políticas interestatais.
Se é reconhecida a atuação da sociedade civil global para temas transindividuais globais, como paz, meio ambiente e Direitos Humanos17, cabe, nessa multiplicação de espaços políticos, a possibilidade para que sociedades de recortes geográficos específicos, como as sociedades específicas de fronteiras, possam ter assento e voz para expressarem suas demandas e, até mesmo, indicarem as soluções que soa mais adequado. Da mesma maneira, as dinâmicas de mercado nas fronteiras atendem a especificidades e desafios próprios, cabendo a vista sejam estruturalmente “escutados” no âmbito da administração pública estatal.
Até porque as diferenciações interestatais de faixas de fronteiras por vezes não correspondem à dinâmica cotidiana das sociedades que lá vivem. Como escreveu o professor Aníbal, “Ciudad del Este, Foz do Iguaçu y Puerto Iguazú, deben ser estudiadas y pensada como realidades integradas em la región”18 - o que certamente é o caso de muitas regiões fronteiriças.
A participação da sociedade civil na construção das Relações Internacionais é uma lacuna que fragiliza a legitimidade das decisões daí decorrentes, razão pela qual também funda uma tendência a ser construída, passo a passo, nos diversos ambientes, decisórios ou não.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A premissa do presente texto parte do entendimento de que a condição pós-nacional, ditado pela mundialização, constitui-se enquanto um fato histórico consolidado19. Por isso, impõe-se a necessidade de se produzir soluções político-jurídicas não mais restritas ao mote do nacionalismo metodológico, mas agora também costuradas sob um cenário pós-nacional de construção conjunta com outras soberanias, em co-decisão com outros Estados e em diálogo com atores próprios do contexto, que tradicionalmente não participavam dos espaços decisórios. Isso não exclui o papel das políticas públicas nacionais às fronteiras, apenas inclui no processo a demanda por mais cooperação e elaboração de arranjos internacionais projetados enquanto políticas de Estado - das decisões nacionais para as co-decisões internacionais/ pós-nacionais.
As transformações do Direito e das Relações Internacionais decorrentes da mundialização produzem novas dinâmicas interestatais com profundas implicações sobre suas fronteiras. Tais transformações exigem, desde uma revisão do seu significado do ponto de vista político-militar para uma perspectiva integracionista, até a reinvenção de práticas jurídico-políticas viabilizadoras de um nível satisfatório de segurança jurídica e eficiência das políticas públicas - tanto das áreas de segurança quanto do social.
Insta-se por reconhecer o novo sentido para fronteiras no contexto da integração regional. A realização das políticas públicas estatais, nacionais e pós-nacionais, de integração regional entre Estados nacionais, passa por ressignificar o papel que tem exercido e o sentido que às fronteiras intrarregionais têm sido atribuídos. Originariamente, de marcos de separação, delimitação. Entretanto, para a consolidação da integração regional, as fronteiras devem ser identificadas como espaços de cooperação e de aproximação entre os povos - evidentemente, sem perder de vista as políticas públicas de segurança e inteligência que contemplam desafios específicos e não pouco densos e complexos. Com isso, chega-se a breves conclusões.
a) É preciso desvelar e enfrentar os desafios socioambientais das regiões de fronteiras. As políticas públicas pensadas à luz da problemática evocada pelas fronteiras nacionais têm sido tradicionalmente concentradas para as instituições policiais e as forças armadas - polícia rodoviária federal, polícia federal, receita federal, exército, marinha e aeronáutica. São políticas públicas evidentemente necessárias para garantia do Estado de Direito nos limites da jurisdição nacional, sobretudo por se tratarem de espaços geográficos propícios para criminalidade, conforme o contexto e os desafios do(a) outro(s) lado(s) da(s) fronteira(s). Entretanto, quais são os desafios sociais, conexos/ atrelados aos já conhecidos problemas de segurança, que as políticas públicas sociais, no marco da governança de fronteira, demandam?
b) Urge a interlocução com mais e novos atores transfronteiriços. Da mesma forma com que as Relações Internacionais incorporam cada vez mais atores não tradicionais - que não são personalidades internacionais - nos seus foros decisórios, como membros da sociedade civil, o mesmo deveria ser refletido na redefinição das políticas de fronteira. Até porque a governança das situações fronteiras correm sérios riscos de se desconectarem da faticidade, caso não incluam os atores locais enquanto entes que tem compreensões, interesses e demandas legítimas para a reformulação das políticas de fronteiras. Desconexão que obviamente não se restringe à realidade fronteiriça. Entretanto cabe destacar que a distância física entre capitais e fronteiras - como é o caso de Brasília a Foz do Iguaçu - também gera um distanciamento de demandas e desafios que tendem a ser pouco e mal compreendidos nos foros políticos deliberativos.
c) A projeção dos municípios/cidades como atores locais/globais ou glocais demanda um conjunto de ações sincrônicas, que transita desde o alinhamento com a política externa estatal até a capacitação dos tomadores de decisão dos municípios. Ou seja, é necessário todo um rearranjo da compreensão das políticas públicas locais que passam a ser compreendidas sob espectro cooperativo internacional. Sem, com isso, permitir com que a paradiplomacia dos atores subnacionais acabe por superar a atribuição precípua da diplomacia estatal, mas sim, criando uma sintonia fina e sinérgica em ambas.
e) Fronteiras distintas têm atores diferentes e demandam políticas específicas. A vocação das políticas transfronteiriças é assumir um tal caráter de especificidade que permita mediações e arranjos capazes de atender a ampla diversidade de demandas que de constituem a partir das múltiplas realidades locais. Dito de outro modo, uma política única e homogeneizante, sem arranjos locais/localizados, nos milhares de quilômetros de fronteiras que o Brasil tem, não é capaz de viabilizar a integração transfronteriça em seus potenciais e necessidades. O que é necessário para cidades gêmeas como Santana do Livramento e Rivera (Uruguai) é distinto do que precisamos entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este (Paraguai) e assim nas centenas de circunstâncias e sociedades transfronteiriças que formam uma única realidade, pouco e mal compreendidos do ponto de vista das políticas públicas estatais construídas nas capitais.
Por tudo isso, abre-se uma tendência contemporânea por políticas interestatais transfronteiriças, resultante dos novos arranjos para os novíssimos tempos, integracionistas, que se inauguram.