1. INTRODUÇÃO. A SUBTILEZA DE UM SILÊNCIO EXPRESSIVO
Em trabalho anterior, a lição pessoana serviu de inspiração para um esforço de hermenêutica jurídica europeia a propósito da boa administração1. O objetivo do trabalho havia sido o de proceder a um exercício prático de interpretação jurídica num contexto de interconstitucionalidade - um exercício de intersemioticidade2 - tendo por objeto as diferentes expressões normativas em matéria de boa administração decorrentes da ordem jurídica da União e da ordem jurídico-constitucional portuguesa - que, na ocasião do escrito, celebravam três décadas de entrelaçamento -, promovendo um diálogo interativo e construtivo de ordens jurídicas tendente à articulação reflexiva de uma unidade de sentido que não desvirtuasse, contudo, a autonomia constitucional de nenhuma das ordens jurídicas integrantes do todo.
Não será aqui repetido semelhante exercício. Mas um recente pronunciamento do Tribunal de Justiça3 relevante em sede de boa administração evocam as inspiradoras palavras de Álvaro de Campos também destacadas naquele trabalho:
Há duas formas de dizer - falar e estar calado. As artes que não são a literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém (…)4.
O acórdão Ispas prolatado pelo Tribunal de Justiça em novembro de 20175 confirma a boa administração como caso paradigmático de silêncio expressivo na ordem jurídica da União Europeia. O acórdão é, em si mesmo, relativamente linear. É da sua leitura conjunta com as Conclusões do Advogado-Geral Michal Bobek6 que se revela tudo o que ficou por dizer em matéria de boa administração.
O processo (principal) na origem no pedido de decisão prejudicial7formulado pela Curtea de Apel Cluj, Tribunal de Recurso de Cluj, Roménia, respeitava à situação fiscal dos cônjuges Ispas: uma inspeção fiscal revelou que não haviam cumprido no período 2007-2011 as suas obrigações de declaração em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) - domínio da fiscalidade abrangido pelo âmbito de aplicação do direito da União8. Em consequência, a Direção‑Geral das Finanças Públicas de Cluj notificou os cônjuges Ispas dos montantes a pagar. Inconformados, estes impugnaram os atos de liquidação de que foram destinatários perante o órgão jurisdicional nacional de reenvio, alegando a violação dos seus direitos de defesa - em particular, do direito de acesso ao processo - durante o procedimento (administrativo) de inspeção fiscal. Instado pelos recorrentes, a Curtea de Apel Cluj questionou o Tribunal de Justiça a respeito da compatibilidade da prática nacional em causa com os direitos de defesa tal como protegidos pelo direito da União9.
No acórdão, o Tribunal de Justiça confirma, num primeiro momento, que a situação em causa, na medida em que está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, deve ser apreciada à luz do respeito dos direitos de defesa enquanto princípio geral do direito da União. Assim, quando um Estado-Membro sujeita os contribuintes a um procedimento de inspeção fiscal para garantir a cobrança da totalidade do IVA devido no seu território e de lutar contra a fraude, deve igualmente garantir o respeito dos direitos de defesa tal como protegidos pelo direito da União10. Depois, recorda que, na falta de regulamentação da União na matéria, a situação está igualmente abrangida pelo princípio da autonomia (administrativa) dos Estados-Membros11, cabendo por isso à ordem jurídica de cada Estado-Membro designar os órgãos (administrativos) competentes e definir as regras (procedimentais) aplicáveis à execução do direito da União a nível interno. A aplicação do direito nacional às situações abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União ao abrigo deste princípio da autonomia está, contudo, duplamente condicionada ao respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade, não podendo as regras de direito nacional aplicáveis ser menos favoráveis do que as previstas para pretensões semelhantes de natureza interna, nem tornar na prática impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União12.
à luz deste princípio da efetividade que o Tribunal de Justiça conclui que o princípio geral do direito da União do respeito dos direitos de defesa exige que, nos procedimentos administrativos relativos à inspeção e à determinação da matéria coletável do IVA, os particulares devem ter a possibilidade de obter a comunicação, a seu pedido, das informações e dos documentos que integram o processo administrativo e que a autoridade pública tomou em consideração quando adotou a sua decisão. Mas, esclarece ainda, não impõe uma obrigação geral de i) facultar o acesso integral ao processo, pois objetivos de interesse geral, como proteger as exigências de confidencialidade ou de segredo profissional, podem justificar restrições ao acesso a certas informações e documentos, ii) nem de comunicar oficiosamente os documentos e as informações em que se baseia a decisão prevista13 - o que era in casu pretendido pelos recorrentes.
Considerando a principiologia desenvolvida pelo Tribunal de Justiça sob a alçada do princípio da cooperação leal14 que enquadra a atuação das administrações públicas dos Estados-Membros na sua qualidade de administração da União de direito comum15, o iter cognoscitivo seguido no acórdão Ispas é relativamente simples e direto, diríamos até clássico - sem prejuízo de um q.b. atualista minimalista como se verá adiante. A asserção é, em especial, suportada pelo facto de a expressão “boa administração” sequer figurar do texto do acórdão. Apenas consta do elenco das palavras/expressões chave que introduzem o acórdão - “Direito a uma boa administração e direitos de defesa”. Outra omissão significativa é a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE). Se o Tribunal de Justiça esclarece de entrada que a situação em causa no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, não refere, contudo, a consequência daí decorrente - qual seja: a aplicação da CDFUE nos termos do seu artigo 51º, nº 116, em conformidade com a interpretação jurisprudencial que tem vindo a ser desenvolvida a respeito desta disposição17 - nomeadamente aquela inaugurada no acórdão Fransson18. Este apenas é mencionado a propósito do domínio material específico do direito da União em causa no processo principal (IVA)19, e não a respeito da construção jurisprudencial em torno da aplicabilidade do direito da União para efeitos de aplicação da CDFUE aos Estados-Membros no quadro do qual o acórdão Fransson reveste contornos de cunho quase doutrinário20. Destaca-se, para os propósitos do argumento aqui tecido, a fórmula expeditiva aí estreada: “A aplicabilidade do direito da União implica a aplicabilidade dos direitos fundamentais garantidos pela Carta”21.
Em contrapartida, nas suas Conclusões, o Advogado-Geral Michal Bobek identifica de entrada o “verdadeiro problema” suscitado no caso concreto, o qual, se bem que tratado em primeiro lugar no acórdão que viria a ser prolatado pelo Tribunal de Justiça, não o foi até às últimas consequências - qual seja: “saber se o potencial (não) acesso a um processo administrativo e/ou aos documentos nele contidos no âmbito dos procedimentos nacionais de cobrança do IVA está abrangido pelo âmbito do direito da União, desencadeando assim a aplicabilidade da Carta?”22. É assim que Michal Bobek não se limita a considerar o respeito pelos direitos de defesa enquanto princípio geral do direito da União - como viria a “dizer” o Tribunal de Justiça -, mas também enquanto componente integrante do direito a uma boa administração consagrado no artigo 41º CDFUE - como viria a “calar” o Tribunal de Justiça. A leitura do acórdão Ispas conjugada com as Conclusões apresentadas por Michal Bobek revelam, continuando com as palavras de Álvaro de Campos, a “frase silenciosa” do acórdão em matéria de boa administração, um “silêncio expressivo” carregado de sentido pois sintomático da hermética vinculação dos Estados-Membros ao padrão de boa administração decorrente do direito da União - é o que o presente texto procurará desvendar.
2. A CDFUE E AS ADMINISTRAÇÕES PÚBLICAS DOS ESTADOS-MEMBROS. UM MODELO DE INTEGRAÇÃO ADMINISTRATIVA POR VIA DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1. A CDFUE como integrante do bloco de juridicidade que vincula as administrações públicas dos Estados-Membros
Da mesma forma que Cunha Rodrigues afirmou a respeito da ordem jurídica da União, em geral, e, em especial, da justiça da União, também a administração da União não reside em Bruxelas ou no Luxemburgo, antes “[habita] em cada um dos Estados-membros”23. É, a propósito, amplamente destacada a natureza intersistemática, compósita ou multinível característica do exercício da função administrativa da União, função assegurada quer pelas instituições e pelos órgãos e organismos da União, como pelas autoridades administrativas dos Estados-Membros - assim concebidos como organismos codependentes24 da autoridade administrativa da União considerada no seu todo25. Mas é igualmente inegável o protagonismo dos Estados-Membros na aplicação (administrativa) do direito e das políticas da União: esta opera, por via de regra, “com e através das administrações dos Estados-Membros”26, uma “opção pelo realismo”27 inscrita no código genético do processo de integração europeia28.
As administrações públicas dos Estados-Membros são, assim, o “braço armado”29 da União e a “espinha dorsal”30 do respetivo sistema administrativo compósito ou multinível. Do direito da União decorrem para estas, nos mais variados domínios, títulos atributivos de competências, critérios vinculativos de decisão, princípios orientadores de ação e de decisão no exercício de competências discricionárias, formalidades procedimentais a seguir, mecanismos e fundamentos de controlo da sua atuação - isto para além das modificações operadas em sede de organização administrativa31. Nestas vestes de administração funcionalmente europeia, as autoridades administrativas dos Estados-Membros devem (i) aplicar as disposições do direito da União diretamente aplicáveis, (ii) aplicar as disposições do direito nacional que asseguram a transposição do direito da União para o ordenamento jurídico interno e, em qualquer caso, mesmo fora destas duas constelações, (iii) aplicar as disposições do direito nacional em conformidade com o direito da União pertinente quando a situação em mãos integre o âmbito de aplicação do direito da União32. O direito da União integra deste modo o bloco de juridicidade que vincula as administrações públicas dos Estados-Membros, “penetra[ndo] no interior dos Direitos Administrativos nacionais”33, alterando-os, condicionando a sua criação, orientando a sua interpretação, ajustando a sua aplicação, obrigando, inclusivamente, as autoridades administrativas nacionais a ter um “olhar crítico”34 sobre as soluções de direito interno a fim de assegurar, antes da sua concreta aplicação, a sua conformidade com o direito da União.
Nessa medida, as administrações públicas dos Estados-Membros atuam como a administração da União de direito comum. A valia da expressão é primeiramente descritiva - deste protagonismo das administrações públicas dos Estados-Membros enquanto “executivos naturais”35 das políticas e do direito da União, sendo-lhes confiada, em primeira linha (artigo 291º TFUE36), a execução do direito da União enquanto missão “essencial para o bom funcionamento da União” e “matéria de interesse comum” (artigo 197º TFUE37). Mas é principalmente explicativa - da posição jurídica das administrações públicas dos Estados-Membros no sistema administrativo integrado da União: sem deixarem de integrar o respetivo sistema administrativo nacional, a sua atuação nas vestes de administração da União de direito comum é regida pelo direito da União e, na falta deste, pelo direito nacional no respeito pelo direito da União, o que implica atender aos critérios próprios ditados por este38. Assim é porque, numa União de Direito39, importa que o exercício da função administrativa - e a proteção do administrado que lhe está subjacente - se subordine ao “mesmo direito”40, não podendo variar em função do nível, da União ou dos Estados-Membros, de aplicação do direito da União, nem variar de Estado-Membro para Estado-Membro, sem comprometer o funcionamento e a unidade do sistema jurídico da União e a realização dos objetivos fixados pela União.
esta, entre outros, a teleologia subjacente ao artigo 51º, nº 1, CDFUE. Nos termos deste preceito, as disposições da CDFUE “têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados-
Membros, apenas quando apliquem o direito da União”. O propósito é o de salvaguardar a “estrutura constitucional da União” refletida no princípio da atribuição de competências41. Assim o confirmam a 2ª parte do preceito, bem como o seu nº 2, que, juntamente com o artigo 6º, nº 1, 2º parágrafo, TUE, consagram um princípio de não expansão de competências da União através da CDFUE42. Limitar a vinculação dos Estados-Membros às disposições da CDFUE “apenas quando apliquem direito da União” visa, pois, deixar imperturbada a alocação vertical de competências entre a União e os Estados-Membros no respeito pelo princípio da atribuição de competências43. Em outros termos, a CDFUE não atribui competências à União, apenas limita o exercício de competências atribuídas. Mas o propósito é igualmente o de assegurar o respeito pelo princípio da União de Direito no domínio da proteção dos direitos fundamentais, ou seja, assegurar que, nos domínios abrangidos pelo âmbito de aplicação do direito da União, a proteção dos direitos fundamentais se paute pelos critérios fixados pelo direito da União através da CDFUE. Nas palavras do Tribunal de Justiça, o “objetivo da proteção dos direitos fundamentais no direito da União” consiste em “zelar por que esses direitos não sejam violados nos domínios de atividade da União, seja em razão da ação da União ou em razão da aplicação do direito da União pelos Estados-Membros”, objetivo justificado pela “necessidade de evitar que uma proteção dos direitos fundamentais suscetível de variar consoante o direito nacional em causa prejudique a unidade, o primado e efetividade do direito da União”44.
Sob este prisma, e no contexto específico do exercício da função administrativa da União, ao designar como destinatários das disposições da CDFUE as instituições, os órgãos e os organismos da União, bem como os Estados-Membros quando apliquem, (não só, mas também) por via administrativa, o direito da União, o artigo 51º, nº 1, CDFUE distingue implicitamente e vincula simultaneamente tanto a administração organicamente europeia como a administração funcionalmente europeia ao padrão de jusfundamentalidade que decorre da aplicação das regras e dos princípios inscritos na CDFUE. Não são, nos termos do artigo 51º, nº 1, CDFUE, destinatárias da CDFUE as administrações públicas dos Estados-Membros enquanto tais, mas “apenas quando apliquem o direito da União”, ou seja, no exercício da (parcela significativa da) função administrativa da União que lhes
confiada - princípio da atribuição de competências. Mas decorre igualmente do artigo 51º, nº 1, CDFUE que a autoridade administrativa da União no seu todo encontra-se subordinada ao mesmo direito em sede de proteção dos direitos fundamentais ou, por outras palavras, que as administrações da União e dos Estados-Membros devem, no exercício da função administrativa da União, respeitar princípios e regras comuns em matéria de direitos fundamentais, aqueles fixados na CDFUE - princípio da União de Direito.
Nessa medida, enquanto instrumento vinculativo de direito primário da União, a CDFUE é padrão de conformação da atuação das entidades administrativas dos Estados-Membros na sua qualidade de administração funcionalmente europeia, assumindo papel central na definição do padrão de jusfundamentalidade aplicável nas situações abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União. Da perspectiva do administrado, a CDFUE converte-se desta forma no instrumento de proteção dos seus direitos fundamentais de referência nas suas relações com as autoridades administrativas dos Estados-Membros que relevam do âmbito de aplicação do direito da União. Consequentemente, a CDFUE constitui padrão de controlo de toda a atividade administrativa, seja por ação, seja por omissão, que afete alguma posição jurídica fundada no direito da União, o que robustece, especificamente, a competência dos tribunais funcionalmente europeus (os tribunais nacionais) no controlo da atividade da administração funcionalmente europeia - e, indiretamente, o controlo exercido pelo Tribunal de Justiça através do processo das questões prejudiciais45.
Nesse sentido, a CDFUE providencia aos seus destinatários proteção específica nas suas relações com as autoridades incumbidas do exercício da função administrativa da União. São três as principais disposições da CDFUE relevantes: o artigo 41º relativo ao “direito a uma boa administração”; o artigo 42º que consagra o “direito de acesso aos documentos”; e o artigo 43º respeitante ao direito de apresentar petições ao Provedor de Justiça Europeu - todos eles consagrados no Título V dedicado à “Cidadania”46. Adicionalmente, são ainda de apontar as disposições relativas ao direito de petição ao Parlamento Europeu (artigo 44º), à proteção de dados pessoais (artigo 8º), à igualdade e não discriminação (artigos 20º, 21º e 23º), à diversidade cultural, religiosa e linguística (artigo 22º), ao acesso a serviços de interesse económico geral (artigo 36º) e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 47º). Atenção especial merecerá de seguida a primeira disposição elencada relativa ao “mais administrativo” dos direitos fundamentais consagrados na CDFUE, no sentido de ser o “mais significativo na relação entre a Administração e o cidadão e o mais procedimental dos direitos fundamentais”47 consagrados na CDFUE.
2.2. O artigo 41º CDFUE e a hermética vinculação dos Estados-Membros ao padrão de boa administração decorrente do direito da União
Sob a epígrafe “Direito a uma boa administração”, assim dispõe o artigo 41º CDFUE:
Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável.
Este direito compreende, nomeadamente:
O direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente;
O direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito pelos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial;
A obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões.
Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respetivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros.
Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua.
No estado atual do direito da União, a boa administração pode simultaneamente ser perspetivada como princípio geral e direito fundamental. Em bom rigor, a dupla natureza jurídica que hoje caracteriza a promocação da boa administração na ordem jurídica União Europeia radica do próprio artigo 41º CDFUE48. Com efeito, se bem que as respetivas Anotações se refiram à “jurisprudência [do TJUE] que consagrou a boa administração como princípio geral de direito”, a verdade é que só após a proclamação da CDFUE (2000) veio esta qualificação conhecer expressão jurisprudencial. Só em 2002 viria o atual Tribunal Geral, no acórdão max. mobil, referir-se expressamente à boa administração como fazendo parte dos “princípios gerais do Estado de direito comuns às tradições constitucionais dos Estados-Membros”49, em certa medida espelhando aquela afirmação plasmada nas Anotações ao artigo 41º CDFUE. Por outro lado, contudo, até à proclamação e posterior entrada em vigor da CDFUE50 nunca a boa administração havia sido afirmada enquanto direito fundamental.
A qualidade de princípio geral reconhecido à boa administração confirma a sua importância na ordem jurídica da União e, em especial, o seu papel no enquadramento da aplicação administrativa do direito da União pelas autoridades (da União e dos Estados-Membros) competentes. Apesar de radicar na CDFUE, ela resulta assente de uma construção jurisprudencial, iniciada nos primeiros tempos do processo de integração europeia, que progressivamente acolheu a boa administração como “parte integrante das regras não escritas da legalidade comunitária”51. A sua qualidade de direito (subjetivo) fundamental é, pelo contrário, mais recente. A subjetivização do discurso em torno da boa administração, no sentido da consideração crescente do indivíduo e da proteção dos seus direitos nas suas relações com a Administração, ainda não havia avançado no sentido do reconhecimento de um direito subjetivo a uma boa administração. O disposto no artigo 41º CDFUE sugere, se não a consagração de um tal direito52, pelo menos o reconhecimento de um conjunto de direitos para uma boa administração, assim como a natureza jusfundamental desses mesmos direitos.
Juntando-se a um conjunto de iniciativas de âmbito nacional53,
europeu54 e internacional55 que, com diferentes graus de reconhecimento e de desenvolvimento, procuram delinear os principais elementos constitutivos de uma boa administração, a inscrição de um “direito a uma boa administração” na CDFUE obedeceu a um intuito primacialmente consolidativo56. Nessa medida, é resultado do exercício de visibilidade57 que presidiu a redação da própria CDFUE, procurando reforçar a acessibilidade dos direitos aí contemplados em benefício dos cidadãos-administrados58. Assim, o artigo 41º CDFUE não é, do ponto de vista do seu conteúdo, especialmente inovador, pois acolhe dimensões que já integravam o acquis normativo e jurisprudencial da União. Várias dimensões concretizadoras do “direito a uma boa administração” aí individualizadas encontram expressão em preceitos de direito primário preexistentes à CDFUE e ao Tratado de Lisboa59. Estas e outras manifestações da boa administração encontram também amplo desenvolvimento em jurisprudência assente do TJUE60.
Sublinhou, a propósito, Jacqueline Dutheil de la Rochère que a novidade trazida pelo preceito não reside apenas na consagração de um “direito a uma boa administração” num texto de direitos fundamentais, mas também no facto de os princípios e as regras de direito administrativo inscritos no artigo 41º CDFUE o serem, não em termos de legalidade objetiva de interesse público, mas na linguagem de direitos subjetivos públicos61. Em particular, o artigo 41º CDFUE constitui indício determinante para concluir pela natureza jusfundamental de cada um dos direitos que enuncia. Não se pode deixar de conceber o artigo 41º CDFUE como expressão de um certo consenso alcançado na Convenção que elaborou a CDFUE no sentido de incorporar, sob a alçada de um “direito a uma boa administração”, um conjunto de direitos subjetivos públicos elevados à categoria de direitos fundamentais. A natureza jusfundamental destes direitos não é meramente formal, porque positivados num catálogo de direitos fundamentais com força jurídica vinculativa, mas também porque, na CDFUE, ocupam “o mais alto nível dos valores de referência no conjunto dos Estados-Membros reunidos”, sendo por isso “inexplicável não retirar dela os elementos que permitem distinguir os direitos fundamentais dos outros direitos”62.
Desta forma, a promoção da boa administração na ordem jurídica da União Europeia é, com o artigo 41º CDFUE, colocada sob a égide dos direitos fundamentais. Seria, em consequência, expectável que a proteção destes direitos fundamentais beneficiasse das características específicas do sistema jusfundamental da União. Sucede que o artigo 41º CDFUE delimita expressamente o seu âmbito subjetivo passivo de aplicação em termos que escapam do âmbito de aplicação da disposição geral do artigo 51º, nº 1, CDFUE. Da letra do artigo 41º CDFUE resulta que a boa administração dele procedente obriga apenas as instituições, os órgãos e os organismos da União e já não os Estados-Membros, mesmo “apenas quando apliquem o direito da União” no sentido do artigo 51º, nº 1, CDFUE.
Daqui resulta não estarem os Estados-Membros vinculados ao mais administrativo dos direitos fundamentais consagrados na CDFUE, então que, como se viu, são os Estados-Membros o principal aparato responsável pela aplicação administrativa do direito da União. Como explica Jacqueline Dutheil de la Rochère, a intenção foi a de tranquilizar os Estados-Membros de que não teriam que ter em conta o “direito a uma boa administração” em procedimentos administrativos nacionais, incluindo aqueles que envolvem a aplicação do direito da União63. A autonomia administrativa dos Estados-Membros resulta preservada ao ponto de dispensar as autoridades administrativas dos Estados-Membros do padrão de boa administração procedente do artigo 41º CDFUE, não só nas situações puramente internas
- o que já resultaria salvaguardado pelo artigo 51º, nº 1, CDFUE -, mas igualmente nas situações que relevam do âmbito de aplicação do direito da União - mesmo na acepção mais estrita do conceito de “aplicação” vertido no artigo 51º, nº 1, CDFUE -, ou seja, quando atuam como administração
da União de direito comum.
Esta leitura é confirmada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Apenas em uma ocasião considerou o artigo 41º CDFUE aplicável no quadro de um procedimento administrativo interno. Afirmando que o “direito a uma boa administração” consagrado no artigo 41º CDFUE “reflete um princípio geral do direito da União”, o Tribunal de Justiça retirou a seguinte consequência no acórdão H. N.: “uma vez que, no processo principal, um Estado-Membro aplica o direito da União, as exigências que decorrem do direito a uma boa administração, designadamente o direito que assiste a qualquer pessoa de ver os seus processos serem tratados com imparcialidade num prazo razoável, aplicam-se no quadro de um processo de concessão da proteção subsidiária, (…), conduzido pela autoridade nacional competente”64. Contudo, na jurisprudência que se seguiu, o Tribunal de Justiça tem vindo a seguir orientação oposta, afirmando que “resulta claramente da letra do artigo 41º da Carta que este não se dirige aos Estados-Membros mas unicamente às instituições, órgãos e organismos da União”, de modo que os particulares não podem dele retirar direitos oponíveis aos Estados-Membros, mesmo quando estes atuam no âmbito de aplicação do direito da União65.
Mas a jurisprudência do Tribunal de Justiça não ignora a natureza dual da boa administração na ordem jurídica da União, antes procura dela tirar partido para ultrapassar os limites da interpretação literal do artigo 41º CDFUE. A jurisprudência alimenta uma abordagem dissociativa da boa administração enquanto i) princípio geral jurisprudencialmente assente e de alcance alargado, incluindo a atuação das autoridades administrativas dos Estados-Membros que releve do âmbito de aplicação do direito da União, eha ii) direito fundamental consagrado na CDFUE mas de alcance limitado á atuação das instituições, dos órgãos e dos organismos da União66. A conceptualização concorrente da boa administração enquanto princípio geral e direito fundamental ganha desta forma dimensão prática acentuada pois resultam distintos os respetivos âmbitos de aplicação. O Tribunal de Justiça procura desta forma tirar o máximo partido da aplicabilidade dos princípios gerais de direito, de entre os quais se conta o princípio da boa administração, “a qualquer autoridade encarregada de aplicar o direito [da União]”67, incluindo, pois, as autoridades administrativas dos Estados-Membros, respeitando assim o sentido literal do artigo 41º CDFUE.
3. O CASO ISPAS - A BOA ADMINISTRAÇÃO MORREU, VIVA A BOA ADMINISTRAÇÃO!
O acórdão Ispas em comento confirma a orientação jurisprudencial que privilegia uma interpretação literal do artigo 41º CDFUE no que respeita ao seu âmbito subjetivo passivo de aplicação. Tanto assim é que, como referido supra, a disposição sequer é mencionada no acórdão - para os Estados-Membros, a boa administração do artigo 41º CDFUE morreu. Mas isto não dispensa os Estados-Membros das obrigações decorrentes do princípio da boa administração enquanto princípio geral do direito acolhido na ordem jurídica da União - viva a boa administração!
No acórdão Ispas, o Tribunal de Justiça pronunciou-se com fundamento no princípio geral do respeito dos direitos de defesa68. Decorre da jurisprudência do TJUE tratar-se de um “princípio fundamental do direito da União”69 - qualificação primeiramente datada de 197970 - que responde às “exigências de uma boa administração”71. No que se refere, em especial, ao respeito dos direitos de defesa pelas autoridades dos Estados-Membros, o Tribunal de Justiça considerou ser “dado assente que o princípio do respeito dos direitos de defesa se aplica aos Estados-Membros” aquando da adoção de uma decisão que recai no âmbito de aplicação do direito da União e que, em consequência, não só “as Administrações nacionais têm obrigação de respeitar os direitos de defesa quando tomam decisões que recaem no âmbito de aplicação do direito da União mas também que os interessados devem poder invocar diretamente o respeito desses direitos perante os órgãos jurisdicionais nacionais”72.
O acórdão Ispas inscreve-se nesta orientação jurisprudencial:
(…) O respeito dos direitos de defesa constitui um princípio geral do direito da União que é aplicável sempre que a administração se proponha adotar, relativamente a uma pessoa, um ato lesivo dos seus interesses. Por força deste princípio, os destinatários de decisões que afetam de modo sensível os seus interesses devem ter a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão. Esta obrigação incumbe às administrações dos Estados‑Membros, sempre que estas tomem decisões que entram no âmbito de aplicação do direito da União, mesmo que a legislação da União aplicável não preveja expressamente essa formalidade73.
Nenhuma menção é feita ao artigo 41º CDFUE, em geral, e, em particular, ao direito de acesso ao processo concretamente em causa, concebido na jurisprudência do TJUE enquanto “corolário do princípio do respeito dos direitos de defesa”74 na medida em que garante o “exercício efetivo do direito a ser ouvido”75, para além de se encontrar expressamente consagrado no artigo 41º, nº 2, b), CDFUE - ainda que de alcance limitado à atuação das instituições, dos órgãos e dos organismos da União. Pelo contrário, depois de se alongar na problemática atinente ao âmbito de aplicação do direito da União para efeitos de aplicabilidade da CDFUE76, nas suas Conclusões, Michal Bobek começou por afastar a aplicação do artigo 41º CDFUE à situação em causa no processo principal antes de lançar mão do princípio geral do respeito dos direitos de defesa e, em especial, do direito de acesso ao processo77. No que se refere a este último, o Advogado-Geral rejeitou que a jurisprudência relevante do Tribunal de Justiça desenvolvida no domínio da concorrência fosse “transponível” ou aplicada por analogia a procedimentos nacionais conduzidos ao abrigo do direito da União, como os procedimentos de cobrança do IVA em causa no processo principal78. Foi, por isso, com base no princípio da efetividade79 que o Advogado-Geral propôs que o princípio geral do respeito dos direitos de defesa fosse interpretado no sentido de “exig[ir] que, num procedimento nacional de cobrança do IVA, o particular tenha acesso, mediante pedido, às informações e aos documentos com base nos quais foi adotada a decisão administrativa que estabelece as suas obrigações em matéria de IVA”80 - entendimento que, em formulação próxima, viria a ser perfilhado também pelo Tribunal de Justiça:
O princípio geral do direito da União do respeito dos direitos de defesa deve ser interpretado no sentido de que, nos procedimentos administrativos relativos à inspeção e à determinação da matéria coletável do imposto sobre o valor acrescentado, um particular deve ter a possibilidade de obter a comunicação, a seu pedido, das informações e dos documentos que integram o processo administrativo e que a autoridade pública tomou em consideração quando adotou a sua decisão, a menos que objetivos de interesse geral justifiquem a restrição do acesso às referidas informações e aos referidos documentos81.
A respeito da parte final deste considerando decisório, o Tribunal de Justiça recordou no acórdão Ispas a sua jurisprudência pela qual os direitos fundamentais, tal como o respeito dos direitos de defesa, não constituem prerrogativas absolutas, mas podem comportar restrições, na condição de estas corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituírem, à luz da finalidade prosseguida, uma intervenção desmedida e intolerável que atente contra a própria substância dos direitos assim garantidos.82
Deste modo, sem se referir expressamente aos direitos de defesa, em geral, e ao direito de acesso ao processo, em particular, como direitos fundamentais protegidos pelo direito da União, nomeadamente acolhidos no artigo 41º CDFUE, o acórdão Ispas acaba por acolher uma interpretação atualista daquele princípio - a mesma que resultaria da aplicação conjugada dos artigos 41º, nº 2, b), e 52º, nº 1, CDFUE83. Seja como componente do “direito a uma boa administração” catalogado na CDFUE, seja como componente do princípio geral do respeito dos direitos de defesa jurisprudencialmente construído, o direito de acesso ao processo não é absoluto, sendo o seu exercício suscetível de ser restringido para atender a objetivos legítimos de interesse geral e no respeito pelo princípio da proporcionalidade. O acórdão Ispas singulariza a respeito o objetivo de “proteger as exigências de confidencialidade ou de segredo profissional”84, igualmente mencionadas no artigo 41º, nº 2, b), CDFUE. Apesar de “calado” no acórdão, daqui resulta que, no quadro de procedimentos administrativos nacionais que relevam do âmbito de aplicação do direito da União, os objetivos de interesse geral consagrados pela regulamentação nacional aplicável à luz dos quais é legítima a restrição do direito de acesso ao processo devem ser reconhecidos pelo direito da União e que a ponderação dos interesses envolvidos, inclinados ora ao acesso, ora à proteção de informações e documentos, deve também ser realizada em conformidade com o direito da União.
Concorrendo ainda no sentido de que o Tribunal de Justiça acolheu no acórdão Ispas uma interpretação do princípio geral do respeito dos direitos de defesa que resultaria da aplicação conjugada dos artigos 41º, nº 2, b), e 52º, nº 1, CDFUE, está a afirmação de que “estas exigências”, acabadas de descrever, “decorrem do princípio da efetividade”85. Com esta afirmação, o Tribunal de Justiça insufla o juízo de efetividade - segundo o qual as regras de direito nacional aplicáveis não podem tornar na prática impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos reconhecidos aos particulares pelo direito da União - da retórica típica da restrição aos direitos fundamentais - em particular, a chave de ouro pela qual as medidas restritivas de direitos fundamentais não podem consubstanciar uma ingerência desmedida e intolerável que atente contra o respetivo conteúdo essencial. Não é a primeira vez que o Tribunal de Justiça se socorre do regime das restrições dos direitos fundamentais, nomeadamente vertido no artigo 52º, nº 1, CDFUE, como quadro de referência para a interpretação de princípios ou conceitos específicos do direito da União86 - testemunho, no global, de uma jurisprudência sensível aos ventos de mudança trazidos pela entrada em vigor da CDFUE no aprofundamento do processo de integração europeia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A consagração do “direito a uma boa administração” no artigo 41º CDFUE renovou o interesse pela temática da boa administração na ordem jurídica da União Europeia, alento sucessivamente intensificado aquando da proclamação (2000) e posterior entrada em vigor (2009) daquele instrumento de proteção dos direitos fundamentais. Enquanto instrumento vinculativo do direito primário da União (artigo 6º, nº 1, TUE), a CDFUE converteu-se, em especial, em padrão de conformação da atuação das autoridades incumbidas do exercício da função administrativa da União, bem como em instrumento de proteção dos direitos fundamentais de referência nas relações tecidas entre os cidadãos-administrados e aquelas autoridades - incluindo, pois, as autoridades administrativas dos Estados-Membros quando atuam na qualidade de administração da União de direito comum (artigo
51º, nº 1, CDFUE). Sucede, contudo, que os contornos específicos do artigo 41º CDFUE evidenciam, ou porventura intensificam, as dificuldades, particularmente metódicas, da vinculação dos Estados-Membros ao padrão de boa administração decorrente do direito da União. De alcance limitado à atuação das instituições, dos órgãos e dos organismos da União, do âmbito de aplicação do preceito ficou excluída a atuação daquele que é o principal aparato responsável pela aplicação administrativa do direito da União - os Estados-Membros.
Procurando ultrapassar os limites da interpretação literal do artigo 41º CDFUE, a jurisprudência do TJUE tem alimentado uma abordagem dissociativa da boa administração enquanto i) princípio geral jurisprudencialmente assente e de alcance alargado, incluindo a atuação das autoridades administrativas dos Estados-Membros que releve do âmbito de aplicação do direito da União, e ii) direito fundamental consagrado na CDFUE mas de alcance limitado à atuação das instituições, dos órgãos e dos organismos da União. Para além de conferir dimensão prática à natureza dual da boa administração na ordem jurídica da União - princípio geral e direito fundamental -, pois resultam distintos os respetivos âmbitos de aplicação -, esta orientação jurisprudencial permite qualificar de hermética ou mitigada a vinculação dos Estados-Membros ao padrão de boa administração decorrente do direito da União.
O debate conheceu discreto, mas, porventura, terminante desenvolvimento no acórdão Ispas em comento neste trabalho. O acórdão confirma a orientação jurisprudencial que privilegia uma interpretação literal do artigo 41º CDFUE no que respeita ao seu âmbito subjetivo passivo de aplicação - de modo que, de jure condito, para os Estados-Membros, a boa administração do artigo 41º CDFUE morreu. Nem por isso, contudo, ficam os Estados-Membros, quando atuam no âmbito de aplicação do direito da União, dispensados das obrigações decorrentes do princípio da boa administração enquanto princípio geral do direito acolhido na ordem jurídica da União - e, assim, continua viva a boa administração!
A propósito desta problemática, a leitura conjugada do acórdão Ispas e da opinião anteriormente expressa por Michal Bobek nas suas Conclusões permite identificar alguns desvios nos caminhos seguidos confluentes, contudo, ao mesmo sentido interpretativo. Em particular, e como se viu, do confronto entre o acórdão do Tribunal de Justiça e as Conclusões do Advogado-Geral resulta particularmente evidenciado o silêncio do acórdão Ispas em relação ao artigo 41º CDFUE. Resta desvendar o que terá motivado tal silêncio, ou seja, o sentido deste silêncio expressivo.
Como procuramos explicitar, o facto de uma situação de direito interno integrar o âmbito geral de aplicação da CDFUE na aceção doseu artigo 51º, nº 1, não significa que a específica disposição relevante seja concretamente aplicável - caso do artigo 41º CDFUE. Ao não levantar a questão respeitante à aplicabilidade da CDFUE e, em especial, ao “calar” o artigo 41º CDFUE no acórdão Ispas, o Tribunal de Justiça optou por não veicular a (não muito feliz) mensagem de que, muito embora a CDFUE fosse aplicável, não seria relevante/operante no caso concreto. A orientação seguida pelo Tribunal de Justiça, reiterada agora no acórdão Ispas, implica que a garantia de uma boa administração na ordem jurídica da União tenha ficado parcialmente imune à entrada em vigor da CDFUE, apenas operando enquanto direito fundamental na esfera de atuação das instituições, dos órgãos e dos organismos da União, subsistindo enquanto princípio geral na esfera de atuação da administração da União de direito comum, a saber: as autoridades administrativas dos Estados-Membros87.
Ao privilegiar desta forma uma interpretação principiológica suscetível de ultrapassar os limites textuais resultantes da consagração expressa da boa administração no artigo 41º CDFUE, o Tribunal de Justiça não se deixa intimidar pela falta de vontade institucional verificada nos diversos momentos da vida da CDFUE para vincular os Estados-Membros ao “direito a uma boa administração” enquanto direito fundamental. Esta metodologia não está inteiramente isenta de críticas - desde logo, à luz do princípio da União de Direito, para além de não participar do exercício de visibilidade e consequente reforço da proteção dos direitos fundamentais88 catalogados no artigo 41º CDFUE na ótica dos principais interessados: os cidadãos-administrados. Mas o seu emprego demonstra que o Tribunal de Justiça não abre mão da construção da boa administração enquanto princípio geral, aplicável por isso também à atuação das autoridades administrativas dos Estados-Membros no âmbito de aplicação do direito da União. Continua, pois, de premente atualidade a importância historicamente sedimentada da jurisprudência do Tribunal de Justiça na moldagem dos rumos da integração europeia e, em especial, na proteção dos direitos dos particulares nas suas relações com o poder público da União.