1. INTRODUÇÃO
O Tratado de Lisboa, desde a sua aprovação, configurou-se como um ponto marcante na história da integração europeia na medida em que acarretou a abolição das Comunidades1, o que determinou que “a palavra “comunitário” se torn[asse], portanto, obsoleta”2.
No contexto da cooperação judiciária em matéria civil - e, especificamente, no que diz respeito à cobrança de créditos na União Europeia - cabe demonstrar que o Tratado de Lisboa também asseverou o desaparecimento dos pilares comunitários, “com especial ênfase para a determinação de uma competência alargada do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a todas as matérias reguladas nos tratados”3.
Assim, das competências delineadas no seio da União Europeia, resulta do disposto no artigo 4º, nº 2, j) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) que a União Europeia e os Estados-Membros exercem competências partilhadas no domínio do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Tal significa que “tanto a União como os Estados-Membro gozam de iniciativa legiferante”4.
Ademais, numa União Europeia marcada pelas liberdades económicas de circulação e pelo estabelecimento de um mercado interno, houve a necessidade de criar e de sedimentar um espaço onde se acautelassem sensibilidades demonstradas por quem efetivamente exercia ativamente tais liberdades. Surge, assim, o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, tal como o mesmo se encontra desenhado nos termos dos artigos 67º e seguintes do TFUE. Na realidade, determina o artigo 67º, nº 1 que “[a] União Europeia constitui um espaço de liberdade, segurança e justiça, no respeito dos direitos fundamentais e dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados-Membros”. Sob o chapéu deste Espaço desenvolve-se a cooperação judiciária em matéria civil, conforme se deriva do texto do artigo 67º, nº 4 do TFUE: “a União facilita o acesso à justiça, nomeadamente através do princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais em matéria civil”.
A cooperação judiciária em matéria civil dá observância ao princípio do reconhecimento mútuo já que é este que “permite uma harmonização de lacunas e uma aproximação das legislações nacionais dos diversos Estados-Membros”5 sempre que estes não se vejam em condições de levar a cabo tal finalidade6. Ao reconhecimento mútuo há que agregar - sem possibilidade de dissociação - o princípio da confiança recíproca na medida em que não seria viável proclamar uma relação de mútuo reconhecimento, sobretudo num cenário que transcende, como veremos, a mera cooperação judiciária, “[s]em confiança”7.
O artigo 81º do TFUE estabelece, no âmbito do direito originário, que é à União Europeia que cabe desenvolver uma cooperação judiciária em matéria civil, assente na observância do princípio do reconhecimento mútuo e que pode passar pela adoção de medidas de aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros. Assim, os instrumentos de cobrança transfronteiriça de créditos foram adotados pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, observando o procedimento legislativo ordinário8, a fim de promover um melhor acesso à justiça e a eliminação dos obstáculos à boa tramitação das ações cíveis (conforme resulta do disposto no artigo 81º, nº 2, e) e f) do TFUE).
Assim, este texto ganha particular relevância na medida em que todos os mecanismos de cobrança de créditos que iremos tratar foram objeto de aplicação no ano de 2017 - como iremos ver, foram promovidas algumas alterações de fundo ao funcionamento das ações de pequeno montante e ao procedimento europeu de injunção cuja aplicação plena ocorre em Julho de 2014; por sua vez, o regime de arresto de contas bancárias também apenas se passou a aplicar a partir de Janeiro de 2017.
Deste modo, antevê-se que muitas serão as dúvidas - nomeadamente interpretativas - que se irão colocar aos tribunais que terão de implementar tais mecanismos processuais, as quais apenas poderão ser dirimidas através do salutar diálogo entre os tribunais nacionais (responsáveis por tramitar tais mecanismos de cobrança de créditos) e o Tribunal de Justiça, o órgão competente para se pronunciar sobre o sentido e / ou a validade do direito da União aplicável. Tal diálogo opera-se através do reenvio prejudicial, consagrado no artigo 267º do TFUE.
Assim, começaremos por analisar brevemente os mecanismos de cobrança de créditos existentes no contexto da União para, em seguida, apreender como o reenvio prejudicial funciona neste contexto e, bem assim, como se poderá requerer e ver deferida a sua tramitação urgente.
2. A COBRANÇA DE CRÉDITOS NA UNIÃO EUROPEIA E A IMPORTÂNCIA DA TRAMITAÇÃO PREJUDICIAL URGENTE
2.1. A cobrança de créditos na União Europeia
No seio do desenvolvimento de uma mais densa e aprofundada cooperação judiciária em matéria civil, a União Europeia desenvolveu três mecanismos no sentido de promover a viabilização de uma célere e eficaz cobrança de créditos não liquidados no contexto transfronteiriço que caracteriza a Europa, criando concretos e prementes benefícios para as empresas e particulares.
Assim, a União Europeia começou por adotar o Regulamento nº 1896/20069, que criou um procedimento europeu de injunção de pagamento - a sua génese associa este procedimento ao pragmatismo, à rapidez, à celeridade. No entanto, tal pode determinar que se perca a intervenção judicial strictu sensu, na medida em que, dependendo das informações prestadas pelos Estados-Membros, poderá caber a uma entidade parajudicial e / ou administrativa a competência para tramitar esta injunção europeia. A sua criação foi bastante aplaudida pelos agentes económicos na medida em que “os atrasos de pagamento representam uma das principais causas de falência que ameaçam a sobrevivência das empresas, em especial das pequenas e médias empresas, e provocam a perda de inúmeros postos de trabalho”10. Afinal, apesar de a maioria dos Estados-Membros se encontrar dotada de mecanismos de cobrança facilitada de créditos não liquidados, a realidade é que “a Europa era, nesse domínio, uma verdadeira Babel, marcada por fortes assimetrias ao nível dos requisitos formais e substantivos, prazos, autoridades competentes (desde logo «juiz» versus «funcionários» […]) e encadeado de regras adjetivas”11. Assim, este mecanismo de injunção europeia de pagamento surge como “um processo-tipo, único, célere e suscetível de produzir resultados efetivos, potenciadores da economia e credibilizadores dos conceitos de Justiça Europeia e Espaço Judiciário Comum”12.
Este mecanismo produzirá integralmente os seus efeitos caso o devedor, citado para se opor à injunção, não o fizer, circunstância em que o credor congrega, através da aposição de formula executória à injunção, um título executivo europeu que independe de qualquer medida de reconhecimento e / ou de declaração de executoriedade13, podendo o credor livremente executar o devedor no Estado-Membro onde lhe for mais favorável a obter o cumprimento. A injunção permite, ao credor, reclamar o pagamento de créditos que detém sobre outrem desde que se verifique 1) que existe uma dívida; 2) que ésta se encontre pendente14; e 3) que não seja judicialmente controvertida15. Em regra, por força do artigo 2º do Regulamento, este procedimento servirá para demandar o pagamento de créditos emergentes de contratos, excluindo-se da sua aplicação os créditos resultantes de factos ilícitos16. Serve ainda para cobrar créditos de natureza pecuniária, que se encontrem “apurados e totalmente determinados” e que possam ser “peticionados em termos presentes e não meramente futuros”17. Não se lhe impõe qualquer limite pecuniário.
Também no sentido de promover uma eficaz e célere cobrança de créditos, a União Europeia adotou o Regulamento nº 861/200718, que estabeleceu um processo europeu para ações de pequeno montante e que comunga com o procedimento europeu de injunção no ensejo de dotar a União de um espaço onde vigore a livre circulação de decisões judiciais já que “[a] vontade de construir um espaço judiciário europeu levou […] a que o legislador da União ultrapassasse a via da simples coordenação dos processos nacionais, procedendo a avanços na aplicação de processos […] específicos, destinados a regular mais rápida e eficazmente os litígios transfronteiriços, como […] o processo europeu para ações de pequeno montante”19. A ações de pequeno montante, como a designação faz antever, destinam-se a atuar no âmbito da litigância de “baixa densidade”20 já que se verificou que existe um grande ratio de créditos não pagos cujo montante não excede os 10.000,00€21. Assim, inicialmente estas tinham em vista obter a cobrança de créditos do montante de 2.000,00€, recentemente atualizado para um novo limiar de 5.000,00€. Ora, com o advento da crise económica que marcou a União Europeia e os seus destinos, a Comissão aventou, no seu Relatório de 8 de maio de 2013 sobre a “Cidadania da União”, que as ações de pequeno montante iriam contribuir decisivamente para uma das novas finalidades imputadas à União: a promoção da recuperação económica e do crescimento sustentável22.
No entanto, neste contexto de crise, detetou-se que, sobretudo as ações de pequeno montante, mas também, ainda que circunstanciadamente, o procedimento europeu de injunção, eram mais morosos do que se pretendia, embora já tivessem decorrido alguns anos desde a sua entrada em vigor, razão pela qual foi adotado o Regulamento nº 2015/242123 que “acarreta algumas alterações ao funcionamento quer das ações de pequeno montante, quer do procedimento europeu de injunção”24. Tais mutações aplicam-se a partir do dia 14 de julho de 2017 e vão no sentido de conferir maior operatividade aos mecanismos, tendo uma das principais alterações determinado que o montante do crédito capital25 objeto das ações de pequeno montante fosse aumentado de 2.000,00€ para 5.000,00€.
No entanto, a cobrança de créditos saiu ainda mais reforçada com a adoção do Regulamento nº 655/201426 que veio estabelecer um procedimento de decisão europeia de arresto de contas bancárias. Em conjunto com o procedimento de injunção e as ações de pequeno montante, “o arresto de contas bancárias tem em vista facilitar a cobrança rápida e eficaz de créditos não liquidados, assegurando, ao credor, que o património do devedor não é dissipado por este ou por outrem, a seu mando”27.
A par da injunção europeia e das ações de pequeno montante, este mecanismo de arresto “configura-se como um processo europeu uniforme que pode ser usado pelos litigantes como alternativo aos meios previstos no direito nacional - considerando 6 e artigo 1º, nº 2 do Regulamento”28.
No caso do arresto de contas bancárias, verificamos que o mesmo tem em vista facilitar a cobrança de créditos na medida em que “ter de usar diversos procedimentos nacionais acabava por ser complexo e dispendioso”29. Assim, e como a União ainda não se dotou de um processo executivo europeu, continuando a confiar nas soluções jurídico-processuais nacionais, houve a necessidade de assegurar que os bens, nomeadamente de carácter monetário, poderiam ficar salvaguardados através de um procedimento cautelar especificado / tipificado tendente a promover uma “apreensão judicial de bens com caráter provisório” que “emerge de um processo de natureza cautelar e que pode ser decretado previamente à propositura de um processo executivo (quer no âmbito de uma ação declarativa, quer antes da apresentação desta ação em juízo)”30. Parece-nos, assim, como já tivemos oportunidade de expor, que “o legislador da União pensou num mecanismo provisório que, aprioristicamente, poderá ser capaz de facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos (que se lhe seguirá) e que visa não comprometer o equilíbrio hercúleo entre o direito à ação e os direitos de defesa”31.
Está, assim, criado o status quo que nos demanda esta reflexão - na realidade, com a criação e sedimentação de meios mais eficazes de cobrança de créditos, há a necessidade de verificar como os mesmos serão aplicados a fim de não comprometer a uniformidade do direito da União. Na realidade, o direito da União Europeia é maioritariamente aplicado pelos tribunais nacionais - para os quais estes mecanismos também nos conduzem -, havendo a necessidade de assegurar que estes não comprometerão a efetividade do direito da União, quando atuam como tribunais funcionalmente europeus ou como “tribunais de direito comum da União Europeia”32.
Do que ficou explanado, verificamos que as soluções de cobrança de créditos passam pela adoção de atos normativos gerais e abstratos - os Regulamentos - que são diretamente aplicáveis aos ordenamentos jurídicos dos diversos Estados-Membros. Mas a novidade destes atos legislativos europeus prende-se com o facto de criarem soluções jurídico-processuais europeias, em que grande parte do processado é regida única e exclusivamente pelos termos consignados nos Regulamentos respetivos. No entanto, há domínios em que os Regulamentos em questão confiam nas soluções processuais dos Estados-Membros, dando plena observância ao princípio geral da autonomia processual dos Estados-Membros que determina que lhes cabe criarem as vias recursórias adequadas a promover os direitos decorrentes da ordem jurídica europeia - cf., a propósito, artigo 19º, nº 1, 2º parágrafo do TUE.
Por sua vez, as soluções atinentes às injunções europeias, às ações de pequeno montante e ao arresto de contas serão sempre aplicadas pelos tribunais nacionais, observando as regras de conflitos decorrentes da ordem jurídica europeia33, atuando como pontes de transição, verificando-se a existência de um sistema de normas em rede decorrentes de distintas fontes (a europeia e a nacional, através das devoluções pontuais realizadas para as soluções processuais do Estado-Membro do foro), que convivem no mesmo espaço e que determinam como os litígios irão tramitar. Neste contexto, demanda-se uma articulação entre o órgão jurisdicional nacional, atuando como agente europeu, e o Tribunal de Justiça, na qualidade de exclusivo intérprete do direito da União.
Cria-se, assim, a necessidade de averiguar as relações de interação reflexiva entre ordenamentos jurídicos distintos - o do Estado-Membro do foro e o da União Europeia - que se operará, de forma cabal, através do reenvio prejudicial, que trataremos em seguida34.
2.2. O reenvio prejudicial e a tramitação prejudicial urgente
O reenvio prejudicial35 apresenta-se como um mecanismo jurisdicional de que os tribunais nacionais dos Estados-Membros podem dispor, quando se deparam com litígios que se inserem no âmbito de aplicação do direito da União, atuando, nesta sede, como tribunais funcionalmente europeus. Tem como escopo permitir aos juízes nacionais indagarem, junto do Tribunal de Justiça36, da interpretação ou da validade do direito da União que assume relevância para o caso sub judice - vide, a propósito, artigos 19º do Tratado da União Europeia (TUE) e 267º do TFUE.
Conforme foi veiculado pelo próprio Tribunal de Justiça, nas suas Recomendações sobre o reenvio prejudicial, este é “o mecanismo fundamental do direito da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados-membros o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em toda a União”37. No entanto, entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça não existe nenhuma relação hierárquica38.
O reenvio prejudicial caracteriza-se por uma dinâmica objetiva - enquanto “diálogo formal”39 entre os tribunais dos Estados-Membros e o Tribunal de Justiça - e que observa um conjunto de regras próprias, nomeadamente as que resultam dos termos do artigo 267º do TFUE: este artigo, aliás, demonstra-nos que este opera como “um instrumento de cooperação direta entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais”40. Simultaneamente, podemos-lhe adivinhar uma dimensão subjetiva na medida em que se encontra “ao serviço da tutela jurisdicional efetiva”41. Afinal, apesar de não se encontrar na disposição direta dos particulares (porque o Tribunal de Justiça não funciona nem pretende funcionar como um tribunal de recurso e, portanto, os particulares não têm legitimidade ativa neste cerne), o reenvio pressupõe que o Tribunal de Justiça possa fornecer, ao tribunal nacional - que tem de acautelar diretamente os direitos das partes -, os dados necessários em sede de interpretação ou de validade do direito da União aplicável ao litígio, permitindo-lhe decidir e, bem assim, promover a justiça material e o enquadramento dos direitos conferidos pela ordem jurídica europeia. Afinal, é o juiz nacional que irá aplicar, ao caso concreto, a interpretação / a apreciação da validade do direito da União feita pelo Tribunal de Justiça na medida em que “não compete ao Tribunal [de Justiça] pronunciar-se sobre questões de facto suscitadas no âmbito do litígio no processo principal nem sobre eventuais divergências de opinião quanto à interpretação ou à aplicação das regras de direito nacional”42, embora o Tribunal de Justiça se esforce por dar uma resposta útil à boa solução do litígio em que emergiu a dúvida relativa ao direito da União.
O reenvio prejudicial pode, contudo, revelar-se indispensável em processos que revestem, intrínseca ou extrinsecamente, um caráter de urgência. Na realidade, “desde o dia 1 de março de 2008, o Tribunal de Justiça dispõe de um novo instrumento processual que lhe permite decidir questões prejudiciais relativas ao atualmente denominado espaço de liberdade, segurança e justiça (ELSJ)”43. Tal tramitação permite-lhe decidir “dentro de prazos mais curtos do que os previstos em regra para o reenvio prejudicial, em conformidade com as exigências de celeridade que possam colocar-se nos domínios abrangidos”44.
Da leitura combinada do artigo 23º-A do Estatuto do Tribunal de Justiça45e dos artigos 107º a 114º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça46, o reenvio prejudicial poderá observar uma tramitação prejudicial especial, do tipo urgente, sempre que as matérias objeto do reenvio prejudicial sejam relativas “ao espaço de liberdade, segurança e justiça” já que acarreta “condicionantes ainda mais significativas às pessoas envolvidas, uma vez que limita, designadamente, o número de partes autorizadas a apresentar observações escritas” e, “em casos de extrema urgência, [permite] omitir completamente a fase escrita do processo no Tribunal”47.
Para o efeito, “a aplicação desta tramitação só dever[á] ser pedida em circunstâncias em que seja absolutamente necessário que o Tribunal se pronuncie muito rapidamente sobre as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio”48. Assim, o Tribunal de Justiça assevera que são vastas as matérias que se podem subsumir ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça embora concretize algumas matérias onde é mais intuitivo o seu decretamento: “um órgão jurisdicional nacional poderá apresentar um pedido de tramitação prejudicial urgente, por exemplo, no caso […] de uma pessoa detida ou privada de liberdade […] ou no caso de um litígio relativo a poder paternal ou à guarda de crianças […]”49.
Assim, a tramitação prejudicial urgente caracteriza-se por um encurtamento dos prazos para apresentação de alegações e de observações escritas - o prazo é fixado pelo Tribunal de Justiça que o comunica com a decisão da tramitação e com a data previsível da audiência. Tal tramitação deverá ser requerida pelo tribunal nacional: nos termos do disposto no artigo 107º, nº 2 do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, este tem de expor as circunstâncias de direito e de facto comprovativas da urgência que justificam este tipo de tramitação. Nesta exposição, o tribunal nacional deverá, sempre que possível, elencar os riscos em que se incorrerá se a questão prejudicial não for respondida com efetiva urgência. Pelo exposto, verificamos a cumulação de dois requisitos:
- de carácter material: o litígio tem de se subsumir a uma das matérias do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (e não apenas às matérias elencadas no atual artigo 267.º, 4.º parágrafo do TFUE ou àquelas que o Tribunal de Justiça avançou, na sua nota informativa50, como sendo mais usuais); - de carácter casuístico: demonstração da urgência em obter a resposta à questão prejudicial.
O artigo 107º, nº 2, in fine do Regulamento de Processo veicula ainda que o juiz nacional, sendo-lhe possível, deverá indicar qual o sentido que lhe parece que as respostas do Tribunal de Justiça irão seguir.
Por sua vez, se o órgão jurisdicional de reenvio não tiver pedido a aplicação da tramitação urgente, o presidente do Tribunal poderá, excecionalmente, pedir à secção competente que examine se é necessário submeter o reenvio a tal tramitação quando, à primeira vista, tal se lhe afigurar necessário (artigo 107º, nº 3 do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça).
A decisão de submeter um dado reenvio a tramitação urgente é tomada pela secção designada para o efeito, sob proposta do seu juiz-relator, depois de ouvido o Advogado-Geral (artigo 108º, nº 1 do Regulamento de Processo), a qual é imediatamente notificada ao tribunal de reenvio, às partes, ao Estado-Membro, à Comissão e à Instituição (ou Instituições) que tiver adotado o ato objeto do reenvio (artigo 109º, nº 2 do Regulamento do Processo).
Por conta da necessidade de obter a decisão do Tribunal de Justiça em curto tempo, “apenas participam na fase escrita as partes no processo principal, o Estado-Membro ao qual pertence o órgão jurisdicional de reenvio, a Comissão e as outras Instituições se estiver em causa um dos seus atos; dado que estes dominam a língua do processo, a fase escrita pode ter início imediatamente, sem ser necessário esperar pela tradução do reenvio prejudicial em todas as línguas oficiais”51. Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça conta com uma das suas secções para tramitar tais pedidos, a qual é especialmente determinada para o efeito.
Na sequência da decisão do Tribunal de Justiça a decretar a tramitação prejudicial urgente verifica-se imediatamente a notificação da data previsível para a realização da audiência (artigo 109º, nº 5 do Regulamento de processo).
O artigo 111º do Regulamento estabelece que, em casos de extrema urgência, a secção poderá decidir omitir a fase escrita do processo prejudicial.
Tendo em conta o regime jurídico inerente à decretação da tramitação urgente, há que atentar à realidade e aos ganhos temporais que a implementação desta tramitação especial acarretou. Neste contexto, o Tribunal de Justiça publicou, recentemente, o seu Relatório Anual de 2016, onde se refere que a duração média dos processos que aí tramitam ordinariamente é de 14,7 meses52; no entanto, sempre que se tratam de reenvios prejudiciais especiais, nomeadamente que observam a tramitação prejudicial urgente, a média cifra-se em 2,7 meses53.
Ora, atentas as considerações vertidas quanto aos processos atinentes à cobrança de créditos no contexto da União, os considerandos iniciais dos Regulamentos que os instituem ovacionam a celeridade processual que os mesmos pressupõem. Acresce ainda que todas estas matérias se inserem no âmago do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, podendo - e, na nossa perspetiva, devendo - os reenvios prejudiciais a eles atinentes observar esta tramitação urgente.
2.3. A tramitação prejudicial urgente e a cobrança de créditos - relação simbiótica
Conforme ficou claramente plasmado atrás, a tramitação prejudicial urgente, para ser decretada, pressupõe que o reenvio tenha por objeto a interpretação e / ou a aferição de validade de uma norma inserida no âmbito do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. A este requisito material, aduzimos um requisito casuístico - o tribunal nacional (e, excecionalmente, o Presidente do Tribunal de Justiça, quando considere necessário) tem de demonstrar o carácter de urgência imanente ao processo dos autos em que a interpretação e / ou validade de uma disposição de direito da União se revela essencial.
Ora, como também tivemos oportunidade de asseverar, o procedimento de injunção e as ações de pequeno montante já se encontram em vigor, no ordenamento jurídico da União, há longos anos. No entanto, foram objeto de recente alteração legislativa, levada a efeito através do mencionado Regulamento nº 2015/2421, que será plenamente aplicável a partir do dia 14 de julho de 2017. Do mesmo modo, o arresto de contas bancárias é plenamente aplicável a partir de 18 de janeiro de 2017.
Assim, as facilidades inerentes ao Regulamento nº 1896/2006 (relativo ao procedimento de injunção) e ao Regulamento nº 861/2007 (relativo às ações de pequeno montante) encontram-se disponíveis há vários anos. No entanto, das pesquisas jurisprudenciais realizadas para este fim, verificámos que o Tribunal de Justiça nunca decretou a tramitação prejudicial urgente em nenhum processo de reenvio que tivesse por objeto a interpretação das disposições de um daqueles Regulamentos54. Já ficou, contudo, bem demonstrado que quer o requisito material, quer o requisito casuístico se preenchem no âmbito da cobrança transfronteiriça de créditos - porque subsumível aos termos do disposto no artigo 81º do TFUE, relativo à cooperação judiciária em matéria civil e, portanto, dentro do leque de matérias do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, conforme este resulta do disposto no artigo 67º do TFUE, nomeadamente o seu nº 4.
Afinal, quer o procedimento de injunção, quer as ações de pequeno montante criam um processado próprio no seio da União Europeia e, bem assim, afiguram-se como mecanismos tendentes a congregarem soluções jurídico-processuais acessíveis a todos aqueles que interagem economicamente no contexto europeu. Assim, quer num Regulamento, quer no outro, podemos encontrar, na teleologia vertida nos seus considerandos, expressões que os caracterizam por criarem processos céleres e simples, pelo que até o enquadramento abstrato do pressuposto casuístico está preenchido. Cabe depois ao juiz nacional um papel bem mais simplificado: poderá e deverá explicar a urgência associada à decisão, nomeadamente o risco que o requerente / autor corre se o processo demorar, como com a existência mais ou menos premente de uma de insolvência, de uma dispersão patrimonial na pendência da ação, etc. Mas trata-se de uma concretização, embora abstratamente a urgência já seja uma característica inerente aos próprios processos.
Do mesmo modo, o Regulamento relativo ao arresto de contas bancárias (Regulamento nº 655/2014) cria um verdadeiro procedimento cautelar, o qual congrega carácter de urgência imanente (afinal, não é outra a definição de procedimento cautelar), podendo entender-se que aqui o preenchimento de ambos os requisitos é automático: trata-se de um ato adotado no seio do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça e é, por natureza, um processo urgente que, como tal, demanda uma tramitação prejudicial consentânea com o seu cunho. Na realidade, este Regulamento pressupõe que a decisão de arresto seja tomada com especial celeridade55, o que não se compadece, em absoluto, com outra tramitação prejudicial que não seja a urgente.
Da análise jurisprudencial depreendemos que a tramitação prejudicial urgente é normalmente adotada para processos relacionados com família e as suas relações com os menores, quando se trate de um processo em que há uma pessoa detida ou presa ou, ainda, em matéria de vistos, asilo e imigração56. Assim, apesar de tais matérias serem das mais fraturantes em sede do Espaço de Liberdade Segurança e Justiça - e figurarem nos exemplos dados nas Recomendações do Tribunal de Justiça sobre o reenvio prejudicial e no seu Complemento - a realidade é que há tantas outras matérias que mereciam tal atenção. Este Espaço é muito mais amplo do que estas circunstâncias e onde, comprovada e teleologicamente, já se depreende que há situações de urgência na medida em que ou o carácter simplificado dos processos ou o baixo valor associado ao pedido ou o próprio carácter de providência cautelar ditam que a tramitação prejudicial urgente seja a única que deva ser cogitada.
No entanto, não podemos esperar que o Tribunal de Justiça, oficiosamente e de forma excecional, vá decretar esta forma de tramitação única e exclusivamente a seu próprio mote, sobretudo quando sabemos existir uma secção que se dedica ao seu processamento e não se quer votar o seu trabalho a uma maior lentidão.
CONCLUSÕES
Os mecanismos de cobrança de créditos no contexto alargado da União Europeia - cujo ano de 2017 é sobejamente preponderante pois é no seu decurso que as novidades se começaram a aplicar - vieram adensar “as soluções jurídico-processuais que [a União] já oferecia, mais consentâneas com a realidade, permitindo às partes conhecer, mais cabalmente, o regime jurídico a que fica sujeito o processo que iniciam”57. Na realidade, quer as alterações operadas em sede de ações de pequeno montante e de injunções europeias, quer o novo regime de arresto de contas se pautam pela sedimentação de processos-tipo, de caráter alternativo às soluções jurídico-processuais internas, mas que determinam como a tramitação se irá observar, no contexto da União, desde que o requerimento inicial é apresentado até à decisão final. Assim, “as devoluções para as soluções jurídico-processuais dos Estados-Membros se oper[a]m menos vezes e, deste modo, a previsibilidade de como o processo se desenrolará é maior”58.
A sedimentação de formas de tramitação puramente europeias, que terão de ser observadas e implementadas pelos tribunais nacionais, numa perspetiva de proximidade aos elementos determinantes do litígio, acaba por colocar as matérias relativas à cooperação judiciária em matéria civil na ordem do dia. Aliás, na senda da criação destes mecanismos, há mesmo autores que se referem à emergência de um “processo civil europeu”59, nomenclatura que, apesar de indiciadora da maior integração sentida, nós rejeitamos.
Na realidade, a utilização de expressões demasiadamente ataviadas à estrutura processual nacional apenas irá comprometer o processo de integração que se está a desenhar; por sua vez, consideramos que o vocábulo “cooperação” que encontramos na temática onde a cobrança de créditos se encerra está demasiadamente conexionado a um período histórico da União em que a cooperação entre Estados-Membros era o fluxo procurado e onde as decisões eram tomadas observando o método intergovernamental. Ora, atualmente, o estádio de interação entre os ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros e da União Europeia assumiu proporções de marcada importância pelo que, criando-se mecanismos próprios de tramitação de demandas creditícias, em contexto europeu, seria mais consentâneo - sem criar fricções ou temores de atentado às soberanias nacionais - falar já em integração judiciária em matéria civil. Afinal, as realidades aqui estudadas fornecem-nos “o mote para nos deslocarmos da nomenclatura intergovernamental de “cooperação” e da denominação inerente ao ideário estadual de “direito processual civil europeu”60.
Aqui chegados, cabe, assim, afirmar que, face às novidades implementadas em sede de cobrança de créditos na União Europeia - que conhece, no ano de 2017, um ano de concretização e de melhoramento -, este texto tem de se pautar por dois apelos dogmático-conclusivos:
- um apelo à consciência: num contexto em que o reenvio prejudicial permite o diálogo direto dos tribunais nacionais com o Tribunal de Justiça, os operadores judiciários têm, de forma mais premente, de enraizar a necessidade de apresentarem mais e melhores reenvios prejudiciais, absolutamente fundamentais em regimes que se pautam por novidades relativas ao seu funcionamento. Afinal, apesar de “a interação reflexiva entre ordens jurisdicionais que convivem no mesmo espaço jurídico não se esgota[r] no exercício presente de um reenvio prejudicial”61, a realidade é que este é a forma mais adequada para o juiz nacional deslindar as suas dúvidas quando tenha de aplicar o direito da União, especialmente quando se trata de regimes com novos contornos; e - um apelo à necessidade: já que é imprescindível despertá-los para o facto de existir uma tramitação prejudicial urgente que se aplica também aos domínios da cobrança de créditos uma vez que estes se encontram ao serviço da criação e implementação de um Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça.
Revela-se, assim, muito problemático intuir porque não foi ainda decretada esta tramitação em reenvios prejudiciais onde dúvidas sobre a interpretação e / ou validade de termos de atos normativos relativos à cobrança de créditos surgem. Assim, num exercício preventivo, cabe à academia contactar os operadores judiciários e consciencializá-los que este salto qualitativo é preciso e que têm de começar, a par e passo da estruturação das razões que justificam os seus reenvios, a equacionar quando podem efetivamente requerer a sua tramitação urgente em matérias atinentes à cobrança de créditos, já que as mesmas passaram a assumir-se como prioridades da justiça europeia e como um meio de resposta às demandas de tutela jurisdicional efetiva.
Concretizando: as partes, nestes contextos, querem ver os créditos de que são detentoras pagos e a tutela efetiva dos seus direitos manifesta-se se tal cobrança for bem sucedida, for célere e parcamente dispendiosa, podendo o devedor contraditar, em prazo razoável, o que lhe é imputado. Para o efeito, não nos podemos deparar com um processo demorado: ora, sendo um processo tramitado à luz do direito da União, o reenvio prejudicial pode surgir como uma necessidade e, neste caso, só a tramitação prejudicial urgente poderá evitar delongas excessivas nos processos.
Não pode o tempo inerente à emanação de uma decisão de reenvio votar à inutilidade mecanismos que estão também ao serviço do processo de integração.