1. INTRODUÇÃO
A cooperação jurídica internacional é frequentemente limitada pela literalidade aparentemente restritiva ou mesmo escassez de disposições específicas em tratados, especialmente em matéria criminal. De fato, algumas restrições historicamente reconhecidas pelo direito internacional são justificadas e respeitadas pelos textos das convenções sobre o tema, como por exemplo, aqueles atos que coloquem em risco sua soberania, sua segurança, sua ordem pública ou outros interesses fundamentais - como o princípio do ne bis in idem, entre outros. Entretanto, há uma premissa comum de que não existe um dever geral de cooperar, e que a cooperação e cada providência dela decorrente é condicionada a existência de uma disposição expressa e específica em tratado.
Em outra frente, há a perspectiva de que as convenções sobre cooperação refletem a preocupação com a simplificação de suas solenidades. Em destaque, a criação da figura da autoridade central, dispensando-se a via diplomática tradicionalmente instituída e mais lenta - essa via se revelou de forma marcante nos Acordos sobre Cooperação vigentes no âmbito do MERCOSUL1. Nos seus termos, passa a preferir a cooperação por meio da autoridade central. Isso significa que as comunicações relativas à cooperação jurídica deixam de transitar por meio diplomático (político) para acontecer por intermédio de órgãos e profissionais especializados nos aspectos jurídicos. De fato, isso tende a facilitar imensamente a comunicação e a eficiência do processo cooperativo, mas não deve ser entendida como uma nova condicionante.
No entanto, a interpretação literal e restritiva, como, por exemplo, a que toma a Autoridade Central como um ator necessário e condicionante no processo cooperativo é equivocada - embora comum. Essa perspectiva é compatível com a evolução do direito internacional em uma determinada tendência voluntarista, mas merece ser revista. Em contraposição, a linha proposta, segundo a qual existe um dever geral de cooperar, parte da mesma premissa de Häberle, ao defender o Estado Constitucional Cooperativo. Para o autor, o aspecto central da cooperação, segundo os princípios fundamentais da Carta da ONU, está em que “o ‘direito comum de cooperação’ recebe dos direitos fundamentais os mais fortes impulsos, integra-os para ‘tarefas da comunidade’ e tem neles um garante confiável”2.
Essa perspectiva é consistente com as bases atuais do direito internacional, embora ainda frequentemente contestada3 sob o argumento de inexistir uma norma expressa e cogente que obrigue os Estados a cooperarem. A questão, portanto, está essencialmente no fundamento, que é determinante para que a cooperação jurídica internacional se revele como um sistema desnecessariamente burocrático que lhe extrai a efetividade material ou, por outro lado, em um instrumental para efetividade de direitos e valores compartilhados pelos Estados.
A premissa de necessidade de tratado específico para admitir-se a cooperação, ou determinadas providências, é equivocada porque transforma um meio facilitador em condicionante. A questão deve ser vista não como de permissão, mas como de viabilidade. Por sua vez, o objetivo dos tratados de cooperação, específicos, deve ser visto não como condição para a existência da cooperação, mas sim como instrumental para torná-la mais simples e acessível.
Importa reforçar, sobre o contexto regional, que o Mercosul possui normas sobre cooperação jurídica envolvendo os Estados Partes - Acordo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa entre os Estados Partes do Mercosul, a República da Bolívia e a República do Chile4 e, ainda, o Acordo sobre Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais entre os Estados-Partes do MERCOSUL, a República da Bolívia e a República do Chile5 - que não figuram como meras enunciações a espera de confirmações específicas, mas como normas efetivas, de validez internacional e que geram direitos e obrigações, para utilizar a mesma expressão utilizada pelo Plenário do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL, na Opinião Consultiva nº01/2008:
3.- Que as normas originárias do MERCOSUL, uma vez ratificadas e incorporadas às legislações nacionais conforme aos mecanismos internos de cada Estado Parte, tem validez internacional e geram direitos e obrigações6.
Assim, ganha força a ideia de que a cooperação jurídica internacional não é mais mera questão de comitas gentium7. A discricionariedade estatal é delimitada pelo direito internacional, além das próprias regras de seu direito interno. A ruptura em questão com a comitas gentium - especialmente no âmbito processual penal -, no entanto, pode levar à tendência radicalmente oposta, atrelada a um legalismo extremo e fechado, sem grandes vantagens. Esse legalismo está relacionado com o voluntarismo extremo - para quem um tratado específico é condição de legalidade para a cooperação.
2. “QUAL VOLUNTARISMO (?)” E O DEVER GERAL DE COOPERAR
Uma reflexão útil, nesse contexto, sobre a formação do direito internacional em sua perspectiva demanda uma analise a partir de Grócio8, que pode ser referido como o jurista da tese de ruptura da autoridade papal. Embora não deixe de fazer alusões aos textos das sagradas escrituras cristãs9, sendo autor plenamente conectado aos argumentos e às questões religiosas, Grócio propõe a ruptura com a ideia de autoridade papal ou com o fundamento transcendente do direito. De fato, essa é uma diferença essencial em relação ao período anterior, como se pode notar das ideias de Vitoria, por exemplo10.
Grócio marca uma transformação na aplicação dos pressupostos religiosos; de fato, há uma alteração significativa na conformação da religião e do poder que dela decorre, no seu pensamento. É conveniente relembrar, nesse contexto, que o jurista holandês advoga, não por acaso, contra o princípio do omni-insular - princípio de direito público europeu do século XIII que reconhece o domínio papal sobre mares e ilhas11. A participação holandesa na conquista marítima era pretensão a que se antepunha a bula Inter Coetera12 em favor dos ibéricos. Em outras palavras, a tentativa de construção de argumentos de autoridade apoiada na figura papal (elemento religioso) será contestada e definitivamente enfraquecida neste momento histórico, em sintonia com a tese grociana13.
Esses valores presentes nas ideias de Grócio14 - princípios da igualdade jurídica entre os Estados, dentre outros valores mencionados há pouco - serão encontrados nos tratados de Munster e Osnabruck, que colocam fim à Guerra dos Trinta Anos e compõem o chamado sistema de Vestfália de 164815. Casella e Accioly16 lembram a importância de Vestfália como marco do direito internacional, conformador do que se conhece atualmente.
Anos mais tarde, Vatell (1714-1767) irá tratar da distinção entre o direito natural e o direito voluntário, sendo especialmente lembrado por isso. Embora outros tenham trabalhado sobre o mesmo problema, é a Vatell - discípulo de Wolf - que a doutrina se refere, de modo geral, sobre a consolidação do voluntarismo no direito internacional:
Vattel abandona a concepção da civitas maxima de Wolf e põe seu foco na soberania e nas relações entre estados, o que vai ao ponto de enfraquecer o fundamento objetivo do direito internacional, na medida em que os estados se fazem os únicos juízes de seus atos, de seus direitos e deveres17.
Em passo de evolução, o direito internacional atual deve ser capaz de conciliar as diferenças profundas, sem permitir uma descrença absoluta e generalizada na paz com os outros. Esse tipo de pensamento - segundo o qual é impossível a paz com o “bárbaro” - sugere que só a guerra destrutiva é solução e que o bárbaro, portanto, não merece direito algum ou respeito. Esse desafio, por sua vez, demanda uma reflexão crítica sobre o voluntarismo inaugurado por Vattel.
Essa linha voluntarista ganhou força no direito internacional, a tal ponto de autores voluntaristas negarem, até mesmo, a possibilidade de aplicação dos princípios gerais18 - a que se refere o artigo 38, § 1-c, do Estatuto de Corte Internacional de Justiça - sem uma “autorização convencional expressa”. Em outras palavras, mesmo a aceitação convencional do texto do Estatuto de Corte Internacional de Justiça é insuficiente, sob essa perspectiva voluntarista mais extremada. É preciso, por outro lado, segundo essa perspectiva, uma autorização voluntária expressa para cada caso.
A mesma índole voluntarista está presente em visão de parte da doutrina, em relação ao dever de cooperação jurídica internacional. Até mesmo a despeito das disposições contidas em tratados multilaterais sobre criminalidade transnacional, parte importante da doutrina refere-se à necessidade de tratados específicos para viabilização da cooperação jurídica internacional, como se fosse impossível admitir um dever geral de cooperar - fundado em tratado já existente e expresso, ou sobre princípio. Assim, essa premissa voluntarista, que é marcante na jurisprudência brasileira, por exemplo, é sintetizada por Denise Abade ao afirmar que, “De fato, o Brasil adota, claramente, a corrente voluntarista, uma vez que os tribunais superiores brasileiros não aceitam a realização da cooperação que não esteja amparada em acordo prévio ou ainda em promessa de reciprocidade”19.
Na verdade, a posição segundo a qual “o dever genérico de cooperação, baseado em princípios gerais de direito, costume ou ainda na Carta da ONU não é suficiente”20 mostra-se incompatível com a própria tradição doutrinária. Rezek, com certa profundidade, lança uma importante perspectiva de que o consentimento não é apenas o criativo, como fonte do direito.
Nesse sentido, Rezek enuncia seu apreço pelo voluntarismo: “sistema jurídico autônomo, onde se ordenam as relações entre Estados soberanos, o direito internacional público - ou direto das gentes, no sentido de direito das nações - repousa sobre o consentimento”21. No entanto, vai além:
O termo vontade tem o grave inconveniente de induzir à idéia do consentimento criativo, e tão-somente deste. É irrecusável, no entanto, que os Estados vêm consentindo secularmente em torno de normas que lhe parecem, por um lado, advindas de um domínio diverso daquele de sua própria e discricionária inventividade e, por outro - e consequentemente -, imunes ao seu poder de manipulação22.
Assim, Rezek reconhece que o fundamento de validade dos princípios gerais não difere, em essência, daquele sobre o qual assentam os tratados e o costume: o consentimento. Refere-se, nesse sentido, a consentimento não expresso ou escrito, pelo qual são reconhecidos determinados princípios, a exemplo do pacta sunt servanda, da lex posterior derrogat priori e do nemo plus juris transfere potest quam ipse habet23.
Importa, neste ponto, um esclarecimento: a tese que se advoga é a de que o dever de cooperação jurídica internacional consiste em um princípio previsto em convenções internacionais e que, além disso, decorre de princípios gerais de direito internacional (inclusive da igualdade soberana entre os Estados), além de princípios de direitos humanos. É, portanto, uma realidade que se impõe, a despeito de eventualmente não constituir prática suficientemente corrente - que pudesse lhe conferir o status, ainda, de norma costumeira.
Sobre essa relação entre o costume como fonte de direito e a cooperação jurídica internacional e suas providências, importa uma observação. Como é amplamente aceito, e decorre inclusive da redação do artigo 38, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, a norma costumeira exige dois elementos: 1) a prática geral e 2) aceita como direito24. O surgimento da cooperação jurídica25, ou mais precisamente da extradição no direito internacional é frequentemente associada aos usos e costumes das guerras e das relações diplomáticas, passando a ser regulada a partir dos séculos XV e XVI26. Importa citar, nesse sentido, ROLIN27, para quem a negativa à extradição configura evidente violação ao direito internacional obrigatório, decorrente de práticas reconhecidas e observadas por todas as nações “civilizadas”, e, deste modo, com “valor de um direito positivo”. Contudo, a perspectiva adotada aqui é a que versa sobre um dever geral de cooperar que atinge, inclusive, determinadas providências cooperativas ainda incomuns ou não previstas expressamente em tratados. De fato, sustenta-se aqui que essas providências fundamentam-se em um dever geral de cooperar, quando compatíveis com o direito internacional dos direitos humanos na visão proposta por Haberle. Pois bem: sobre esse detalhe existe uma questão sobre a “prática corrente e aceita como direito”, razão pela qual o eixo da argumentação é deslocado da norma costumeira - como tradicionalmente desenvolveu-se a própria extradição - para os princípios e, sobretudo, para o direito internacional dos direitos humanos.
Enfim, a tese ora defendida é indiferente à tese voluntarista, só não se harmoniza com um tal voluntarismo extremado e estrito, apontado por Abade28, que sustenta a necessidade de consentimento expresso e escrito para a prática de atos de cooperação jurídica internacional, como o auxílio direto em matéria penal, por exemplo. Esse voluntarismo extremado, como se quis demonstrar, é incompatível com a linha segundo a qual a vontade não precisa ser sempre e necessariamente criativa, mas pode ser também perceptiva.
Em outros termos, retornando a Rezek:
Isso determina a distinção entre o direito livre e originalmente forjado pelos Estados e o direito por estes não mais que reconhecido ou proclamado. A propósito, parece que grande parte do vigor da crítica ao pensamento positivista deveu-se à fixação do observador na formula relativa a um direito internacional resultante, por inteiro, da vontade dos Estados29.
Assim, a mera negativa da possibilidade de auxílio, fundada na interpretação restritiva das normas internacionais vigentes, às quais se considere insuficientes por carecerem de ato formal, expresso e prévio consubstanciado em um tratado específico de cooperação, não é compatível com o direito internacional. Não o é, nem mesmo sob uma perspectiva voluntarista, uma vez que determinadas relações jurídicas não precisam ser criadas, mas podem ser percebidas e admitidas. Apenas uma postura ostensivamente negativa quanto à cooperação, pautada em uma visão voluntarista extremada e incompatível com a atual conformação da soberania e com a ordem mundial, justifica essa exigência tão específica.
3. TRATADOS E DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DO ESTADO COOPERATIVO
De fato, a realização de valores tidos como fundamentais e universais é uma tarefa da comunidade internacional. É que as fronteiras costumam ser um meio de subtrair-se ao direito estatal, em muitos casos. Considerando-se, pois, que o direito estatal - na maioria dos casos - reflete valores humanitários comuns, e permitir que alguém se subtraia ao controle oficial e das sanções respectivas implica em desprestigiar tais direitos.
Além disso, ao lado da ideia de comunidade internacional, a nova caracterização do conceito de soberania em andamento considera elementos e encontra vantagens na ideia de cooperação. A visão proposta nega a ideia de soberania como conceito estático, para a qual a cooperação implica na interferência externa em questões internas - ainda que por ato volitivo prévio do Estado demandado. Em outras palavras: não se trata mais de entender o dever de um Estado por cooperar como enfraquecimento de sua soberania, por limitação de suas possibilidades de se negar a tanto. Pelo contrário, a cooperação significa que suas decisões e seus atos, que estejam conforme o direito, serão respeitados mesmo além de suas fronteiras. Implica, desta forma, compreender a importância das interações estatais na afirmação da soberania estatal, enquanto instrumento para a realização de valores universais, no mesmo sentido abordado por Araújo30.
Vale lembrar, nesse sentido, que a soberania de Jean Bodin (1530-1596) refere-se a um poder essencial à ideia de Estado, supremo e ilimitado31, já que a soberania se refere ao suporte jurídico para a ação do rei com vista à construção do Estado32. Casella aprofunda-se, para lembrar que a noção de governo, para Bodin, tem como fonte a razão, mas sob a fórmula do despotismo no qual nenhuma lei é sagrada a ponto de não poder ser mudada sob o império da necessidade33.
Embora relacionada, em Bodin, com a justificação do absolutismo e à ideia de omnipotência do Estado34, conformou-se modernamente a parâmetros do direito positivo e à organização da sociedade internacional:
[...] contrariamente ao que escrevem os autores voluntaristas, a limitação da soberania não deriva da vontade do Estado, mas das necessidades da coexistência dos sujeitos de direito internacional. A soberania aparece, nestas condições, como a fonte das competências que o Estado recebe do direito internacional; estas não são ilimitadas mas nenhuma outra entidade as detém em maior grau35.
Casella vai além, ao especificar a limitação imposta pelo direito internacional ao conceito de soberania:
O direito internacional se construiu como conjunto de princípios e de parâmetros de atuação internacional, impondo limites ao conceito de soberania: a regulação do direito internacional pós-moderno se faz impondo limites ao poder discricionário dos estados. A construção do conjunto de normas regentes da vida e do sistema internacional pressupõem a aceitação de valores, que se exprimam por meio de normas, que, por sua vez, se traduzam em procedimentos internacionais adequados para a consecução dos fins para os quais foram criados36.
Integram-se, nesse ponto, os direitos humanos37, que assumem, no sistema onusiano, uma centralidade inédita, dando profundidade aos objetivos, antes relacionados simplesmente à ideia de manutenção da paz e segurança previstos no preâmbulo do Pacto da Sociedade das Nações. Nesse contexto, os direitos humanos ascendem à condição de fins, expressos em normas e, mais do que isso, jurisprudência internacional - parâmetro de limitação ao poder discricionário dos Estados e que, assim, conforma uma nova concepção de soberania.
É certo que essa perspectiva de soberania, como um dever-poder relacionado à realização dos direitos humanos, merece ser incorporada - e propagada - pela cultura jurídica brasileira. É assim que, segundo a perspectiva de Häberle:
O Estado constitucional cooperativo se coloca no lugar do Estado constitucional nacional. Ele é a resposta jurídico-constitucional à mudança do Direito internacional de direito de coexistência para o direito de cooperação na comunidade (não mais sociedade) de Estados, cada vez mais imbricada e constituída, e desenvolve com ela e nela o “direito comum de cooperação”. A sociedade aberta dos interpretes da Constituição torna-se internacional38.
Essa realidade, que se manifesta cada vez mais intensamente, implica ainda a superação do voluntarismo extremado, já que a discricionariedade estatal não encontra mais fundamento na soberania.
Destaque-se, paralelamente, que a doutrina de Pellet reconhece, também, determinados princípios que limitam a liberdade de ação dos Estados. Refere-se, nesse sentido, à exigência do respeito do direito internacional pelos Estados, à proibição de ingerência nos assuntos internos e à proibição de recurso à força, obrigação de resolução pacífica dos conflitos e dever de cooperar. Em relação a este último, o autor destaca o duplo interesse: é o “contraponto da soberania nos domínios em que esta é definida de maneira muito enérgica” e “prolonga o princípio da autonomia constitucional, convidando os Estados a encontrar fórmulas jurídicas adaptadas à diversidade dos seus sistemas económicos e políticos”39.
4. NOVAS FRONTEIRAS DO DIREITO INTERNACIONAL: PAPEL DO ESTADO E PROTAGONISMO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ANTE A CRIMINALIDADE TRANSNACIONAL
Casella40 contrasta os deveres negativos dos Estados, de abstenção, típicos do Estado liberal do século XIX, às normas positivas de mútua colaboração, do século XX, apoiando-se inclusive em Lafer - ainda que sobre o campo econômico. Evolui, todavia, a uma reflexão sobre Lindberg (1970), no que se tange à integração política internacional ser uma “evolução no tempo de um sistema coletivo de tomada de decisões entre os países, em substituição a meios e processos exclusivamente nacionais”. A razões são reconhecidas pela doutrina de um modo geral, que associa o fenômeno às transformações tecnológicas.
Evidenciam a necessidade de atuação positiva e mútua colaboração, o insistente tratamento da criminalidade transnacional em documentos internacionais, sempre associado, em passo de evolução, à cooperação jurídica internacional. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, ou Convenção de Mérida, é o último dos três importantes documentos da ONU que tratam da cooperação. A Convenção referida, assim como as precedentes, não são meros tratados internacionais aos quais os Estados aderem voluntariamente, mas consistem também em verdadeiros atos de organização internacional.
A adesão é livre e aberta a qualquer Estado, membro ou não da ONU; no entanto, antes disso, o texto constitui um ato de organização internacional41: elaboração da Convenção contra a Corrupção é decorrência da Resolução no 55/61 (An effective international legal instrument against corruption), da Assembleia Geral da ONU. Essa Resolução pretendia o desenvolvimento de um documento, independente da Convenção de Palermo, embora relacionado, em função do reconhecimento do poder erosivo da corrupção ante a democracia, a economia, o desenvolvimento e o Estado de direito (rule of law).
Tão logo ficou pronto, o documento foi submetido à Assembleia Geral, aprovada pela Resolução no 58/4 (United Nations Convention against Corruption). Essa, por sua vez, faz referência, entre outros documentos, à Resolução ECOSOC 2001/13, de 24 de julho de 2001, denominada Fortalecimento da Cooperação Internacional na Prevenção e Combate de Fundos de Origem Ilícita, Derivados de Atos de Corrupção, Incluindo Lavagem de Dinheiro42. Como se pode ver, trata-se de texto inicialmente aprovado pela Organização e, portanto, com efeitos jurídicos próprios. Mais do que isso, insere-se em um contexto de sucessivos atos.
Como destaca Soares43, embora o ato de organização internacional não esteja na lista de fontes do artigo 38, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, “a importância crescente da diplomacia multilateral’ tem ‘revolucionado as concepções clássicas do Direito Internacional Público”. Soares reconhece uma gradação na força normativa de cada ato, lembra das Resoluções do Conselho de Segurança - que, de fato, detém natureza formalmente vinculante e alto potencial coercitivo - que diferem, por exemplo, de um ato da Organização Mundial da Saúde sobre padronização de fármacos.
Seja como for, as organizações internacionais, conforme Alvarez44, exercem um papel fundamental no direito internacional, permitindo a participação ativa de todos os Estados na construção do direito e criando um sistema jurídico especialmente útil para encarar as questões transnacionais. A esse respeito, o autor esclarece:
As OIs são vistas como principais veículos de transformação do direito internacional de estruturas rudimentares de relações bilaterais para sistemas de governança pressuposta na cooperação multilateral. As OIs proporcionam melhores oportunidades para todos os Estados, a despeito de riqueza ou poder, de participar da formação do direito. A realização do direito internacional na era da OI está agora aberta a Estados não europeus que teriam sido afastados como “incivilizados” no século XIX, e cada vez maior número de atores não estatais, de ONGs a corporações multinacionais (MNCs)45.
Alvarez complementa, afirmando que as organizações internacionais têm produzido mais direito, de forma mais democrática e transparente. O autor lembra, ainda, que a cooperação promovida pela resolução de disputas no ambiente internacional, onde se pode incluir a atuação das Cortes Internacionais de modo geral, tem um papel fundamental, associado por alguns com a “constitucionalização” do direito internacional e, ainda, com o crescimento do fenômeno chamado de transjudicial communication - que envolve a interação entre as diversas Cortes Internacionais e, também, entre os tribunais nacionais. Alvarez assim conclui:
A tendência de judicializar as formas de resolução de litígios em regimes tão distintas como o comércio e o direito penal internacional é considerada como uma mudança fundamental, longe de soluções diplomáticas baseadas em afirmações grosseiras do poder. Não é de admirar que alguns veem a evolução, como a criação do TPI, como um momento “constitucional” para o sistema internacional46.
Embora não endosse essa posição - quanto à Tribunal Penal Internacional ser uma expressão da constitucionalização - sugerindo ser radical demais, talvez, reconhece a mudança importante que o direito internacional tem sofrido, a partir das Organizações Internacionais. Reconhece, de modo central, uma alteração relevante no paradigma positivista sobre as fontes do direito internacional e, sobretudo, sobre o conceito de soberania47.
Complementando essa perspectiva quanto ao alastramento do direito internacional, a partir da perspectiva de constitucionalização48 da ordem jurídica internacional, convém citar Dallari:
Para o século XXI, por sua vez, vislumbra-se novo movimento transformador, cujos indícios já se faziam presentes de forma consistente no quarto final do século anterior e que tende a incrementar ainda mais a evolução do direito internacional público em direção à solidificação de uma ordem jurídica de regência da vida planetária. Trata-se da perspectiva de transnacionalização do direito público, por meio do qual os instrumentos do direito internacional público prestam-se não apenas a dar forma a conteúdos normativos acordados pontualmente pelos Estados, mas, indo além, tendem a ser utilizados para a viabilização de estruturas institucionais capazes de gerar, com crescente grau de autonomia e no ambiente político que se convencionou qualificar como globalização, comandos dotados de natureza jurídica49.
Em síntese, a perspectiva da cooperação como um imperativo da ordem internacional, notadamente em função de questões relacionadas à criminalidade que ignora os limites fronteiriços, encontra amparo no direito produzido pelas organizações internacionais. Acrescente-se, nesse contexto, outras além da ONU, como a própria Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE)50, que produziu a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Decreto no 3.678, de 30 de novembro de 2000), na qual há insistentes menções à necessária cooperação internacional e, ainda, esforços, não apenas em nível nacional, “mas também na cooperação, monitoramento e acompanhamento multilaterais”51. Inclua-se, ademais, os Tribunais Internacionais, como se tem sustentado aqui, notadamente os de direitos humanos.
É inegável, nesse sentido, que o direito internacional caminha para a construção de um conjunto de deveres positivos (não meramente de abstenção) para a proteção de valores comuns, como desenvolvimento, segurança jurídica e democracia - todos ameaçados pela criminalidade transnacional.
5. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O REFORÇO DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA, NA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS QUE ENUNCIAM O DEVER GERAL DE COOPERAR
Casella pontua que a cooperação judiciária internacional (denominação que prefere adotar) “evoluiu a partir do mero sentido de deferência ou cortesia, em relação ao outro estado - como implícito no conceito de comitas gentium”52. Atualmente, reconhece, esse conceito ganha estruturação e ordenação técnicas, mas merece ser compreendido por outro prisma:
Além de normas gerais e abstratas, a experiência ensina a necessidade de adotar enfoque teleológico, no sentido de voltado para a consecução de resultados: como podem melhor e mais rapidamente ser atingidos os fins a que se destinam os mecanismos de cooperação judiciária internacional? A resposta a esta indagação deve ser o critério determinante53.
A questão é que a cooperação jurídica internacional esteve atrelada a premissas que, embora insistam em permanecer, merecem atualização que acompanhe o direito internacional. A cortesia internacional e o princípio da reciprocidade são perspectivas cooperativas incompatíveis com o dever dos Estados de respeito e promoção dos direitos humanos - notadamente o acesso à justiça. Em outras palavras, o costume, a cortesia internacional e a reciprocidade não são simples complementos históricos de uma estrita legalidade internacional em matéria cooperativa; na verdade, foram complementadas - ou talvez redefinidas - por uma ordem internacional enunciada no preâmbulo da Carta de São Francisco que se ancora na cooperação entre as nações para a construção da paz e a proteção aos direitos humanos54.
Entretanto, para além desse fundamento, o Estado tem o compromisso de promover o acesso à justiça, dependente da efetiva cooperação jurídica internacional, em razão do direito internacional dos direitos humanos. Trata-se, portanto, de um dever e não de uma faculdade a ser livremente barganhada por interesses políticos, uma legítima limitação à discricionariedade estatal.
Nessa ordem, os direitos humanos, sejam os de abstenção ou os de prestação, equiparam-se, uma vez que, como lembra Paulo Branco, o Estado é responsável por promovê-los:
Percebeu-se que aos Poderes Públicos se destinava a tarefa de preservar a sociedade civil dos perigos de deterioração que ela própria fermentava. Deu-se conta de que o Estado deveria atuar no seio da sociedade civil para nela predispor as condições de efetiva liberdade para todos. [...] Ganhou alento a percepção de que os direitos fundamentais possuem uma feição objetiva, que não somente obriga o Estado a respeitar os direitos fundamentais, mas que também força a fazê-los respeitados pelos próprios indivíduos, nas suas relações entre si55.
O Estado, por sua vez, evidencia-se como o responsável por agir para que os direitos fundamentais, inclusive os classicamente entendidos como de abstenção, sejam respeitados horizontalmente - o que induz à conclusão de que o Estado tem o dever de agir para promover todas as esferas de direitos humanos. Da mesma forma, o Estado tem o dever de agir para reprimir as violações ao direito à vida, à propriedade, dentre outros - e cooperar é um caminho necessário para o pleno cumprimento desse dever.
Ao analisar as ideias de Celso Lafer, Casella sugere, inspirado em Platão, o caminhar no sentido de uma possível e conveniente nova ordem, com ênfase na cooperação:
A conclusão se põe no sentido de insistir que a disjunção entre ordem e poder no sistema internacional abre, talvez, como oportunidade histórica única, brecha para a criação de nova ordem internacional, baseada na cooperação e no consenso, e onde se colocam como pressupostos: (i) modos para encorajar ganhos e vantagens conjuntas; (ii) meios para tornar a interdependência melhor e mais aceitável, ao invés de procurar simplesmente aprofundá-la; e (iii) caminhos que possibilitem a combinação de mecanismos de mercado com esquemas de organização, que administrem adequadamente as desvantagens atuais daqueles países cujo lócus standi no plano econômico é insatisfatório56.
A compreensão dessa perspectiva é clara também com a ideia de mandados de criminalização consolidados no direito internacional dos direitos humanos57. Esses mandados representam o objetivo de prevenção e reparação de danos à vítima, em verdadeira sintonia com o princípio de acesso à justiça.
Além disso, importa refletir sobre outra perspectiva: o direito internacional privado clássico, como expresso na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por exemplo, não faz nenhuma menção a tratado ou convenção para atos de cooperação, embora admita a aplicação e o reconhecimento de direito e de atos estrangeiros. Mais do que isso, determina que o juiz brasileiro julgue com base em direito estrangeiro, sem condição alguma a tratado.
Portanto, como se pode notar, o papel dos tratados de cooperação, em matéria penal notadamente, como condicionantes da cooperação jurídica internacional merece ser cuidadosamente revisado e esclarecido, assim como a relação entre sistemas distintos58. Essa análise envolve tanto o estabelecimento de premissas do direito internacional quanto - e especialmente - a assimilação do direito internacional dos direitos humanos59.
CONCLUSÃO
Não só no que toca à expressa menção aos tratados internacionais, mas também a atual ordem onusiana e a primazia dos direitos humanos deslocam o eixo do voluntarismo extremado a pautar o direito internacional. De fato, as teses que recusam o reconhecimento de um dever geral de cooperar estão sempre atreladas à ultrapassada concepção puramente voluntarista (criativa) do direito internacional, identificada muito mais com a ordem novecentista do que com o sistema atual.
Evidencia-se, nessa linha, que o dever de cooperação jurídica internacional é um princípio previsto em convenções internacionais e que, além disso, decorre de princípios gerais de direito internacional - inclusive da igualdade soberana entre os Estados, no sentido ora desenvolvido -, além de princípios de direitos humanos. Essa tese, vale destacar, é indiferente à tese voluntarista, e só não se harmoniza com um tal voluntarismo extremado e estrito - este último, sequer compatível com o direito internacional dos direitos humanos e já sob tendência de superação.
De fato, a visão renovada de soberania, como uma ferramenta para a realização dos valores fundamentais da humanidade - direitos humanos -, ou mesmo as posições que advogam a função de produtoras de direito, das organizações internacionais, que tomam expressiva força, corroboram as premissas de que toda a estrutura jurídica atualmente existente é suficiente para o reconhecimento de um dever geral de cooperar. Nesse contexto, valores tradicionais de cortesia e reciprocidade perdem espaço para o dever estatal de agir conforme o direito internacional voluntariamente construído, fundado em valores de direitos humanos (com destaque para o acesso à justiça) e, ainda, amparado por diversos tratados que fazem alusão ao dever de cooperar e, mais detalhadamente, a providências cooperativas. Portanto, é incompatível a exigência de tratado específico como condição estrita para atos de cooperação.
Assim, fica marcada a centralidade do direito internacional e, sobretudo, do direito internacional dos direitos humanos, como fundamentos para reconhecimento do dever geral de cooperar, base para a compreensão da cooperação jurídica internacional.