1. INTRODUÇÃO
No contexto das medidas de intercâmbio jurisdicional, essa pesquisa escolhe concentrar-se no ato de cooperação jurídica internacional consistente na obtenção de provas produzidas no exterior e em sua relação com o princípio da ordem pública. Para abordagem do tema escolhido, o artigo divide-se em cinco partes: ordem pública; cooperação jurídica internacional; lei aplicável à obtenção de provas no exterior; o filtro da ordem pública; e o desafio da cooperação jurídica internacional. O objetivo, inicialmente, é fazer uma revisão bibliográfica de forma a situar o leitor no seguinte problema: até que ponto a ordem pública pode ser invocada para impedir a eficácia da prova obtida no exterior?
Sabe-se que somente a prova que é obtida no exterior de forma lícita será considerada pelo juízo competente. Entretanto, se a prova apresentar aspecto chocante à mentalidade e sensibilidade médias da sociedade (filtro da ordem pública), deverá ser rejeitada. Nesse quadro, é possível apontar, abstratamente, os limites à validade ou eficácia da prova obtida no exterior?
2. ORDEM PÚBLICA
O direito internacional privado considera a ordem pública como um dos seus mais importantes princípios da disciplina, capaz de impedir a aplicação de leis, o reconhecimento de atos e a execução sentenças estrangeiras. Diferencia-se, portanto, da noção de ordem pública do direito interno, entendido como um princípio limitador da vontade das partes, cuja liberdade não é admitida em certos aspectos da vida privada, embora o direito internacional privado seja, na realidade, direito público interno, cujos critérios são determinados soberanamente por cada Estado.1 Segundo o entendimento de André de Carvalho Ramos:
A ordem pública no Direito Internacional Privado consiste no conjunto de valores essenciais defendidos por um Estado que impede: (i) a aplicação de lei estrangeira eventualmente indicada pelos critérios de conexão; (ii) a prorrogação ou derrogação da jurisdição; e, finalmente, (iii) a cooperação jurídica internacional pretendida2.
Nesse contexto, Jacob Dolinger3 demonstra que a ordem pública é sobretudo indefinível, haja vista que se caracteriza pela sua fluidez e mutabilidade no tempo e no espaço. Nas suas palavras, “ordem pública é o reflexo da filosofia sócio-político-jurídica de toda legislação, que representa a moral básica de uma nação e que protege as necessidades econômicas do Estado”. Não obstante sua indefinição em abstrato, a análise no caso concreto a partir da ordem pública é responsável por avaliar se determinado fator é compatível ou incompatível com o sistema jurídico de um país.
Nessa linha, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942) enfatiza o princípio ao estabelecer, no artigo 17, que a ofensa à soberania nacional (plano político), à ordem pública (plano jurídico e econômico) e aos bons costumes (plano moral) impede a eficácia das “leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade”. Nota-se que não basta que a lei estrangeira, por exemplo, seja diferente da lei local. Para que não seja aplicável, é preciso que seja chocante, ofendendo aquilo que o país requerido considera como ordem pública. Além disso, aferir eventual ofensa à ordem pública não significa questionar a validade da lei, do ato ou da sentença, tendo em vista que não é possível que um entendimento nacional interfira na ordem jurídica estrangeira. Trata-se apenas de uma constatação quanto à impossibilidade de se ter eficácia no Brasil.
Ressalta-se, ainda, que a LINDB utiliza, além da ordem pública, outros dois critérios para limitar o direito estrangeiro: soberania nacional e bons costumes. De maneira geral, a doutrina concorda que esses critérios podem estar contidos na expressão “ordem pública”. Nessa linha, a Resolução nº 9 do Superior Tribunal de Justiça sobre a homologação de sentenças estrangeiras e concessão de exequatur desconsidera a expressão “bons costumes” ao versar, em seu artigo 6º, que “não será homologada sentença estrangeira ou concedido exequatur a carta rogatória que ofendam a soberania ou a ordem pública”. Entretanto, é possível distingui-los se considerarmos que a ofensa à soberania consiste na afronta ao jus imperii do Estado brasileiro (como a competência dos tribunais brasileiros em julgar brasileiros, por exemplo) e que o conceito de bons costumes engloba o conjunto de princípios éticos contemporâneos de uma nação4.
De acordo com Jacob Dolinger5, o princípio da ordem pública se apresenta em três níveis: (i) na garantia de determinadas regras jurídicas, impedindo que a sua observância seja derrogada pela vontade das partes; (ii) no eventual impedimento à aplicação direta da lei estrangeira indicada pelas regras de conexão pelo juiz nacional; e (iii) na ponderação para o reconhecimento de direitos adquiridos no exterior. No primeiro nível, tem-se a ordem pública para o direito interno e são consideradas, por exemplo, as leis de proteção aos menores, aos incapazes, à família e à economia nacional. O segundo nível, por sua vez, trata da ordem pública em matéria de direito internacional privado e, por isso, sua incidência é bem menos frequente do que no plano interno. Isto porque não é toda lei considerada cogente internamente que será insubstituível por lei estrangeira, visto que isso depende diretamente da gravidade da ofensa que tal lei estrangeira poderia gerar à ordem pública nacional. Por exemplo, uma lei estrangeira que concedesse maioridade a um indivíduo com idade inferior, de forma totalmente inaceitável para a ordem jurídica interna. Já o terceiro nível é ainda mais raro e tem como exemplo clássico a vedação à poligamia. No Brasil, não é permitida a validação de casamentos concomitantes, mesmo que tenham sido celebrados em jurisdição que permita o regime multimatrimonial, mas são reconhecidos os seus efeitos jurídicos, permitindo, por exemplo, a reinvindicação por alimentos promovida por uma das esposas cujo marido esteja no Brasil6.
De todo modo, Jacob Dolinger explica que cabe ao Judiciário decidir quando há ofensa à ordem pública:
Os órgãos do Judiciário são soberanos para apreciar se a norma jurídica estrangeira que se pretende aplicar em obediência à regra de conexão do DIP é, ou não, admissível no foro, se o ato realizado ou o contrato firmado no exterior pode, ou não, ter eficácia no ambiente local, se a sentença estrangeira que se deseja executar é, ou não, exequível7.
Além disso, dada a instabilidade do conceito de ordem pública, André de Carvalho Ramos chama a atenção para o fato de que é necessário “traçar uma linha de interpretação que evite o arbítrio e o decisionismo do julgador no momento da incidência da ordem pública, que levam à insegurança e à violação de direitos aos envolvidos nos fatos transnacionais”8. Da mesma maneira, Christian Herrera Petrus também defende que é necessário se manter um conceito estrito de ordem pública, pelo qual as hipóteses de violação sejam limitadas aos casos em que haja uma verdadeira transgressão a valores considerados fundamentais. Para tanto, o autor sugere que cada Estado elabore critérios precisos para a classificação de atos como atentatórios a sua respectiva ordem pública9.
A Convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado, de 1979, também traz a importância da interpretação restritiva da cláusula de ordem pública, devendo sua aplicação ser restringida apenas às situações em que há algum caráter manifestamente contrário aos princípios da ordem pública defendida pelo Estado. Sobre o tema, André de Carvalho Ramos adverte para o risco do uso abusivo da cláusula de ordem pública “redundar em xenofobia jurídica, em desfavor de um Direito Internacional Privado que aceita a pluralidade de valores que informa o mundo contemporâneo”10. Igualmente, Christian Herrera Petrus adverte que não se deve haver um rigor excessivo no controle da ordem pública, sob pena de resultar em bloqueio à própria cooperação jurídica internacional e na consequente perda da sua efetividade como instituição11.
Da mesma forma, Jacob Dolinger adverte que:
Se cada Estado considerar somente a sua ordem pública, o futuro trará graves distúrbios à ordem pública internacional. Um novo conceito de ordem pública, a ordem pública verdadeiramente internacional, exige que os Poderes Legislativo e Judiciário de cada Estado levem em consideração os interesses públicos de outras soberanias, bem como os de comunidades regionais. Isto se aplica ao vasto campo do direito internacional e das relações internacionais12.
3. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
O conceito de cooperação jurídica internacional é bem resumido por Nadia de Araujo como “o intercâmbio internacional para o cumprimento extraterritorial de medidas processuais provenientes do Judiciário de um Estado estrangeiro”13. Trata-se de matéria resultante do inter-relacionamento entre cidadãos de países diferentes, que faz surgir a necessidade de produção de atos processuais em um país para cumprimento em outro. Assim, tem-se a cooperação jurídica internacional como forma de assegurar o pleno funcionamento da Justiça, por meio de um dever de cooperação mútua. Como bem sublinha André de Carvalho Ramos, o diálogo entre Estados, de forma a garantir o acesso à justiça, consolida uma nova visão de soberania14.
De modo geral, o tema é regido de três modos - o dever geral de cooperação, tratados e promessa de reciprocidade. Na hipótese em que há tratados, estes oferecem segurança jurídica sobre o modo de realizar a cooperação e asseguram sua continuidade enquanto os diplomas forem válidos. No entanto, a cooperação jurídica internacional também pode ser realizada por meio de acordos ad hoc entre Estados que não possuem acordo entre si, com base no princípio da reciprocidade. Quando é feita a promessa de reciprocidade entre os países A e B, entende-se que o Estado A se vincula a agir de igual maneira caso a mesma demanda seja apresentada pelo Estado B, e vice-versa15.
A cooperação jurídica internacional é considerada ativa quando o requerente é um órgão nacional e passiva quando o requerente é um Estado estrangeiro. Os Estados e, eventualmente, as organizações internacionais com personalidade jurídica própria são considerados sujeitos imediatos da cooperação jurídica internacional. Por outro lado, são considerados sujeitos indiretos os indivíduos que serão afetados pela cooperação, sejam eles titulares de direitos beneficiados ou restringidos pela concessão ou denegação do pedido de cooperação16.
Quanto às modalidades de cooperação jurídica internacional previstas no ordenamento jurídico brasileiro, vale dissertar rapidamente a respeito da carta rogatória e do auxílio direto, diferenciando-os, tendo em vista que ambos podem ser utilizados para fins de obtenção de provas pelo Estado estrangeiro. A carta rogatória destina-se ao cumprimento de atos ordinatórios (citação, notificação e cientificação), instrutórios (coleta de provas) e executórios (medidas de caráter restritivo)17. Na carta rogatória passiva, já existe um processo em andamento no país estrangeiro e o juiz estrangeiro solicita que determinado ato seja praticado no Brasil. O pedido passa, então, pela via diplomática ou autoridade central (a depender da existência de tratado), que encaminhará ao STJ para que seja concedido o exequatur à carta rogatória (ou negada a sua aplicação, caso ofenda a ordem pública) e o pedido seja remetido ao Juízo brasileiro competente para a sua execução18.
O auxílio direto, por sua vez, permite que um juiz nacional conheça de solicitação estrangeira como se o procedimento fosse inteiramente doméstico. Para tanto, a autoridade central recebe a solicitação diretamente da parte interessada (Ministério Público ou autoridade policial, por exemplo), e não do Juízo estrangeiro, que compartilha elementos de convicção suficientes para que um procedimento inteiramente nacional seja iniciado. Uma vez recebida a demanda, a autoridade central transmitirá o caso para o Ministério Público Federal (se for de matéria penal) ou para a Advocacia-Geral da União (se for de matéria civil) propor a demanda. Assim, ressalta-se que, ao se valer do auxílio direto, a parte autora se submete inteiramente à decisão do juiz brasileiro, único juiz da causa, com cognição plena para julgar a matéria que lhe foi submetida19.
Em conformidade com o artigo 30 do Código de Processo Civil, o auxílio direto é cabível desde que o caso esteja respaldado em tratado do qual o Brasil faça parte, ou se enquadre nas hipóteses previstas na lei, quais sejam: “I - obtenção e prestação de informações sobre o ordenamento jurídico e sobre processos administrativos ou jurisdicionais findos ou em curso; II - colheita de provas, salvo se a medida for adotada em processo, em curso no estrangeiro, de competência exclusiva de autoridade judiciária brasileira; III - qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira”.
Ademais, completa Nadia de Araujo:
Nesse sentido, o CPC, ao estabelecer regras para o seu cabimento, esclarece que “cabe auxílio direto quando a medida não decorrer diretamente de decisão de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil”. Ou seja, se o pedido não proceder de decisão judicial (e sendo o aval judicial necessário para o cumprimento do pedido no Brasil), nada haverá para o STJ delibar, devendo o pedido ser formulado diretamente na Justiça Federal20.
4. LEI APLICÁVEL À OBTENÇÃO DE PROVAS NO EXTERIOR
Tradicionalmente, o direito internacional privado não resolve a questão de justiça material, mas se debruça sobre a escolha da lei aplicável ao caso com elemento estrangeiro significativo. No que concerne à obtenção de provas no exterior, a escolha da lei que regerá o processo aplicável à diligência é extremamente relevante, pois pode gerar a desconsideração da prova, por violação à ordem pública, no foro em que tramita o processo principal.
Quando o assunto é o exercício da jurisdição, tem-se, geralmente, a lex fori regit processum como regra para a determinação do procedimento e do direito material aplicável21. Entretanto, quando se trata de conflito de leis no espaço, somam-se outros dois critérios para a escolha da lei aplicável: lex causae e lex diligentiae.
Existem situações em que a lei procedimental a ser aplicada será definida a partir da lei aplicável ao mérito da questão. Por exemplo, um processo que seja iniciado no país A contra indivíduo domiciliado no país B em que as partes tenham determinado a aplicação da lei de um país C para a resolução do mérito da disputa. Nessa situação, é possível que alguns aspectos procedimentais da lei do país C tenham que ser levados em consideração. Tem-se, assim, a lex causae como determinante de variações no processo22. Essa hipótese, no entanto, é a mais rara de ser observada.
Por outro lado, a Convenção da Haia sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, de 1970, estabelece que a regência da prova processual pode se dar pela lei do Estado no qual o processo original se desenvolve (lex fori) ou pela lei do Estado estrangeiro onde a diligência será realizada (lex diligentiae).
Embora a regra geral no processo seja a aplicação da lex fori, no que concerne à obtenção de provas internacionalmente, a lex diligentiae será aplicada como regra e a lex fori como exceção.23 Dessa forma, se o Brasil necessita de uma prova que está na Alemanha, como regra, será aplicada a lei processual alemã para a obtenção da prova solicitada (lex diligentiae). Entretanto, é possível que o Brasil solicite que a Alemanha aplique excepcionalmente a lei processual brasileira. Nesse caso, se o pedido não violar a sua ordem pública, a Alemanha poderá autorizar a aplicação da lex fori.
De acordo com Jacob Dolinger, a preferência pela lex diligentiae se justifica por duas razões. A primeira diz respeito à deferência à jurisdição estrangeira onde a prova será colhida, tendo em vista que a jurisdição original é limitada pelo próprio território. A segunda visa garantir o reconhecimento e a execução da respectiva sentença também no país em que a prova foi obtida, evitando que este alegue alguma violação a um princípio doméstico que impeça a sua eficácia no seu território24.
O artigo 13 da LINDB dispõe que “a prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei brasileira desconheça”. Para André de Carvalho Ramos, a determinação da lex diligentiae como regra geral da LINDB e do Código Bustamante (Convenção de Direito Internacional Privado, de Havana, de 1928) objetiva dar segurança jurídica aos que necessitam provar fatos transnacionais.
Em que pese a opção brasileira pela lex diligentiae, o artigo 13 da LINDB deve ser lido em conjunto com o artigo 17 da mesma Lei, o qual versa sobre a exceção de ordem pública. Sendo assim, na hipótese de a aplicação da lei estrangeira produzir resultado considerado ofensivo à ordem pública no Brasil, a lei nacional (lex fori) terá prevalência. Em outras palavras, não basta que a LINDB faça referência à escolha da lei estrangeira para regular a produção de provas no exterior, tendo em vista que caberá ao julgador nacional determinar, em última instância, se o procedimento adotado violou a ordem pública do foro. Nesse caso, se julgar que houve ofensa à ordem pública brasileira, poderá descartar a diligência por inteiro. Por esse motivo que André de Carvalho Ramos considera que há um “eterno retorno” à lex fori, em decorrência da aplicação da cláusula de proteção da ordem pública25.
No tocante à prova desconhecida pela lei brasileira, André de Carvalho Ramos defende que esta somente será inadmitida se for considerada “moralmente ilegítima”, o que implica reconhecer a ofensa à ordem pública brasileira26.
Nas situações em que o Brasil figura no polo passivo da cooperação jurídica internacional, a jurisprudência indica o reiterado uso da lex diligentiae (no caso, a lei brasileira) no cumprimento de pedidos cooperacionais oriundos de Estado estrangeiro, sem maior consideração sobre as leis e práticas do Estado Requerente de origem do processo. Tem-se, nesses casos, o reforço à supremacia da lei nacional. Da mesma maneira, também na hipótese de pedido do Estado estrangeiro para que seja seguido um procedimento probatório diferenciado, conforme exceção à regra da lex diligentiae permitida na Convenção da Haia de 1971, poderá ser invocada a cláusula de ofensa à ordem pública para justificar a denegação de tal pedido27.
Nesse contexto, André de Carvalho Ramos chama a atenção para o “predomínio oculto” da lex fori no direito internacional privado, uma vez que há grande insegurança jurídica devido ao fato de que a parte interessada na produção probatória, mesmo cumprindo todos os requisitos exigidos pela lex diligentiae, pode ser surpreendida depois pela alegação de ofensa à ordem pública e ter a prova obtida completamente descartada pelo juízo competente28.
5. O FILTRO DA ORDEM PÚBLICA
Sabe-se que a Constituição Federal brasileira exige que todas as decisões prolatadas pelos órgãos do Poder Judiciário sejam fundamentadas (artigo 93, inciso IX, da Carta Magna). Na mesma linha, o Código de Processo Penal brasileiro vai além e determina, em seu artigo 155, que o juiz deverá formar “sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Isso significa que a eficácia na obtenção de determinado elemento probatório é fundamental ao processo, sob pena de ser desconsiderado quando da análise da autoridade judicial ou até mesmo ter decretada a nulidade da própria decisão de mérito que teve por fundamento principal o respectivo elemento probatório.
As partes em um processo possuem, portanto, direito à prova, que se diferencia de elemento informativo. Por um lado, tem-se que a prova é produzida em juízo durante o processo, de forma dialética, com incidência do contraditório na prova ou sobre a prova. Por outro, o elemento informativo é obtido durante a fase de investigação e, por esse motivo, dispensa o contraditório29.
Segundo Patrícia Silva Pereira, o direito à prova é “uma emanação dos direitos, liberdades e garantias do cidadão que assegura e efetiva o seu direito de ação e de defesa”. Assim, o direito à prova assegura ao acusado que “sua eventual condenação resultará da confirmação de uma conduta criminosa”30. De acordo com José Frederico Marques, prova é aquilo que constitui a demonstração dos fatos narrados pela acusação e pela defesa, de forma a possibilitar que o juiz seja capaz de formar sua opinião acerca desses fatos. Para as partes, a prova é um instrumento utilizado para influir na convicção do juiz. Para o juiz, a prova é o meio de que se servirá para averiguar a narrativa das partes e formar sua convicção31.
Além disso, José Frederico Marques sustenta que o juiz não é mero espectador durante a instrução do processo, visto que cabe a ele ordenar diligências instrutórias caso verifique que não foi devidamente averiguada a matéria da acusação ou da defesa32.
Essas distinções são necessárias tendo em vista que outros Estados podem não ter as mesmas exigências que o Brasil impõe para si no que concerne à obtenção de provas. Por exemplo, ao solicitar a cooperação para obter uma prova que se encontra fora do território brasileiro e sob a jurisdição do país A, é possível que este Estado, na função de requerido, não considere a atuação de autoridade judiciária como elemento imprescindível para obtenção de provas. Ou ainda, para o Estado A, a necessidade ou não da atuação de um juiz pode depender da natureza do ato requerido (se prova ou elemento informativo)33.
É possível, também, que as provas de um delito inteiramente praticado no território nacional estejam armazenadas em território estrangeiro. Nessa linha, Antenor Madruga e Luciano Feldens trazem o exemplo das provas eletrônicas armazenadas em servidor fisicamente localizado no exterior. Conforme destacado no item anterior, o fato de a lei material brasileira ser aplicável ao crime cometido no território nacional e a autoridade brasileira ser competente para julgar esse caso, não se confunde com as normas processuais incidentes sobre a coleta de provas localizadas no exterior (lex diligentiae), que dependem da cooperação jurídica internacional. Nas palavras dos autores:
o lugar da remessa ou recepção de mensagens, assim como a residência ou domicílio das pessoas que as veiculam pode, circunstancialmente, revelar-se determinante para afirmação da jurisdição da autoridade brasileira para processar e julgar eventual delito. Entretanto, tais circunstâncias em nada autorizam o juiz ou tribunal brasileiro a impor cumprimento de suas ordens ou diligências no exterior, à margem do procedimento de cooperação jurídica internacional34.
Ressalta-se que, para fins de obtenção de prova no exterior, a existência de dupla incriminação não necessariamente é elemento imprescindível para que a cooperação jurídica internacional ocorra. Nesse sentido, o XIII Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em 1984 no Cairo, capital do Egito, adotou a Resolução nº 10, que versa que a dupla incriminação deve ser abandonada quando a cooperação jurídica internacional não implicar medidas coercitivas. Nessa linha, a título exemplificativo, o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América determina que “a assistência será prestada ainda que o fato sujeito a investigação, inquérito ou ação penal não seja punível na legislação de ambos os Estados” (artigo I, inciso 3). No entanto, existem exceções, como é o caso do acordo bilateral entre o Brasil e a França, que exige a dupla incriminação em qualquer modalidade de solicitação de assistência, e do acordo bilateral entre o Brasil e a Itália, que exige a dupla incriminação quando a assistência solicitada envolver revista pessoal, apreensão e sequestro de bens35.
De acordo com Fábio Ramazzini Bechara, a análise da eficácia da prova obtida no exterior deve levar em consideração o respeito ao contraditório e à igualdade de armas. Por respeito ao contraditório, deve ser dada ciência à parte contrária sobre o ato a ser realizado e deve ser garantida a sua participação. Já em respeito à igualdade de armas, a possibilidade de recorrer à cooperação jurídica internacional deve ser assegurada a ambas as partes (acusação e defesa)36. Entretanto, sublinha-se que o próprio direito brasileiro reconhece que o contraditório e a ampla defesa devem ser sempre garantidos, mas o contraditório pode, excepcionalmente, ser diferido, tendo em vista que, a depender da situação, dar ciência ao réu da intenção da acusação de realizar eventual diligência pode frustrar o objetivo da referida medida investigativa. Nesse sentido, a Resolução nº 9 do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que:
Art. 8º A parte interessada será citada para, no prazo de 15 (quinze) dias, contestar o pedido de homologação de sentença estrangeira ou intimada para impugnar a carta rogatória. Parágrafo único. A medida solicitada por carta rogatória poderá ser realizada sem ouvir a parte interessada quando sua intimação prévia puder resultar na ineficácia da cooperação internacional.
Analogamente, é possível concluir que a mesma exceção aplicada por Estado estrangeiro responsável pela produção probatória solicitada pela via da cooperação jurídica internacional não pode resultar na ineficácia da prova no Brasil sob a justificativa de violação à ordem pública. Ou seja, o mero diferimento do contraditório, por si só, não significa ofensa à ordem pública se o conhecimento sobre a diligência puder causar prejuízo à própria investigação37.
Outro fator relevante diz respeito às provas atípicas, não rituais e anômalas. Segundo Fábio Ramazzini Bechara, quando não há previsão legal para o procedimento a ser seguido para a obtenção de determinada prova ou mesmo quanto o próprio meio de prova não está previsto em lei, considera-se a prova como atípica. Por outro lado, quando a prova é produzida através de meio de prova típico, mas sem observar o procedimento probatório previsto em lei, a prova é considerada não ritual. Já a prova anômala é uma prova típica que é utilizada para atingir finalidade característica de outra prova típica. Nesses casos, Fábio Ramazzini Bechara defende que a eficácia da prova produzida no exterior estará preservada - seja ela atípica, não ritual ou anômala - se o Estado requerido respeitar o marco de garantias (ampla defesa e contraditório) na produção da respectiva prova38. De todo modo, em nenhuma dessas hipóteses se configuraria ofensa à ordem pública.
Para melhor ilustrar a discussão, serão apresentadas algumas das polêmicas mais famosas que envolvem a produção probatória transnacional.
Em primeiro lugar, temos a interceptação telefônica. Para o direito interno brasileiro, a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, só poderá ocorrer se autorizada judicialmente (CF, artigo 5º, inciso XII) e, por óbvio, somente as interceptações legítimas poderão servir como prova da acusação em eventual investigação criminal ou instrução processual penal (Lei nº 9.296/1996, art. 1º). Isso porque a decisão que autoriza a interceptação telefônica é tida como uma exceção ao direito à intimidade e à vida privada, garantidos constitucionalmente (artigo 5º, inciso X)39.
Sob a perspectiva do direito internacional, vale ressaltar a opinião de Saulo Stefanone Alle40, que relembra a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso Escher e outros vs. Brasil, prolatada em 6 de julho de 2009. A Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como a nossa Constituição Federal, também resguarda o direito à vida privada em seu artigo 11.2. Entretanto, a referida sentença esclarece que “o direito à vida privada não é um direito absoluto e, portanto, pode ser restringido pelos Estados quando as ingerências não forem abusivas ou arbitrárias; por isso, devem estar previstas em lei, perseguir um fim legítimo e ser necessárias em uma sociedade democrática”41.
Paralelamente, o Supremo Tribunal Federal42, corretamente, tem entendido que a interceptação telefônica, para ter eficácia no Brasil, exige reserva jurisdicional, isto é, deve ser previamente autorizada por decisão judicial, seja ela obtida no território nacional ou em território estrangeiro. Portanto, pode-se concluir que a ausência de autorização judicial para a interceptação telefônica atenta contra a ordem pública brasileira. Sublinha-se apenas que na hipótese de que a interceptação telefônica seja levada a efeito em território estrangeiro, deverá o juízo estrangeiro (e não o juízo brasileiro), tendo recebido o pedido de cooperação jurídica internacional, autorizar a medida.
Em segundo lugar, temos a quebra de sigilo bancário. Nessa hipótese também está presente o direito à privacidade dos indivíduos. Na mesma linha de raciocínio apresentada sobre a interceptação telefônica, tem-se aqui que o direito à privacidade que protege o sigilo bancário também não é absoluto. Em verdade, o Supremo Tribunal Federal já estabeleceu que a quebra do sigilo bancário poderá ser feita sob certos limites e condições:
A primeira condição para a ruptura da “intimidade constitucional financeira” das pessoas é a autorização por autoridade constitucionalmente legitimada. Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal reconhece, em geral, o poder dos juízes e das Comissões Parlamentares de Inquérito. Em seguida, outra condição é a de que a quebra não pode ser determinada de modo arbitrário por tais autoridades constitucionalmente legitimadas. O STF quer limitar a chamada fishing expedition, ou seja, a devassa indiscriminada da intimidade financeira até que se encontre algum crime. Logo, impõe-se que sejam mencionados os motivos e a pertinência temática com a investigação para que seja decretada a quebra do sigilo bancário. E ainda, além dos motivos e pertinência temática, o STF determina que seja demonstrada a sua necessidade sem que seja possível substituí-la por outra prova qualquer43.
De acordo com Fábio Ramazzini Bechara, tratando-se de cooperação jurídica internacional, é fundamental que a quebra do sigilo bancário seja determinada por decisão judicial do Estado requerido para que o documento tenha validade no Brasil. Nessa linha, a desclassificação do documento, portanto, dependerá da análise do juízo estrangeiro quanto ao interesse do processo e à necessidade do sigilo.
Sobre o assunto, Antenor Madruga e Luciano Feldens chamam a atenção para as chamadas “intimações Nova Scotia” (Nova Scotia subpoenas) existentes no direito norte-americano. Não é de se espantar que a Suprema Corte dos Estados Unidos, em United States v. Bank of Nova Scotia, tenha admitido a possibilidade de exigir que o banco Nova Scotia, situado no estado da Flórida, obtivesse dados bancários localizados na filial do banco nas Bahamas de indivíduos que estejam no território norte-americano, independentemente de cooperação jurídica internacional que solicite aos tribunais das Bahamas a autorização para tanto44. Entretanto, trata-se de tentativa de coagir a outra parte a compartilhar dados eletrônicos hospedados no exterior. Fato é que, quer os Estados Unidos aceitem ou não, a sua Suprema Corte não tem jurisdição alguma sobre o território estrangeiro e, por isso, não é possível fugir da imprescindibilidade da cooperação jurídica internacional. Os autores ressaltam, ainda, que “a jurisdição do Estado requerente para investigar, processar e julgar crime é elemento pressuposto - e não substitutivo - da cooperação solicitada ao Estado onde deva ser cumprida a ordem judicial ou realizada a diligência”45.
Na figura de agente passivo da cooperação jurídica internacional, Denise Neves Abade destaca dois casos em que o Brasil indeferiu a solicitação de quebra do sigilo bancário feita por um Estado estrangeiro: a Carta Rogatória nº 11.147 e a Carta Rogatória nº 11.268. Em ambos os casos, o Supremo Tribunal Federal sublinhou que o sigilo bancário mantém forte relação com o direito à intimidade e que a sua quebra é uma medida excepcional que somente pode ser autorizada quando estiverem presentes indícios suficientes da prática de um delito. Consequentemente, foi negado o exequatur a ambos os pedidos em razão da não identificação de tais indícios46.
Inversamente, Saulo Stefanone Alle traz a hipótese de um Estado estrangeiro que não exige a reserva jurisdicional para a quebra do sigilo bancário transmitir espontaneamente ao Brasil informações e elementos probatórios sobre crime que esteja sujeito à jurisdição brasileira. Vejamos, se o Brasil tivesse requerido esses dados, teria sido necessário solicitar ao Estado estrangeiro a reserva jurisdicional (lex fori como exceção à lex diligentiae) para que o produto da cooperação jurídica internacional não ofendesse à ordem pública brasileira em razão da falta de decisão judicial. Entretanto, no caso da espontaneidade, não dá para exigir do Estado estrangeiro um procedimento diferente daquele definido pela sua jurisdição. Assim, o autor defende que a tendência da jurisprudência brasileira é de admitir essas provas em deferência à lex diligentiae:
Se a obtenção de determinadas informações bancárias não estiver sujeita a reserva jurisdicional no Estado requerido, então a produção terá sido legal e a sua utilização em processo no Brasil será legítima - desde que, é claro, submetida ao devido contraditório47.
Resta a dúvida se, em caso de hipotética inexistência de sigilo bancário no Estado estrangeiro, ainda assim o Estado brasileiro exigiria a reserva jurisdicional para a obtenção desses dados. Nesse caso, nos parece que não violaria a ordem pública brasileira a obtenção de dados que já estariam disponíveis para consulta pública independentemente de decisão judicial, desde que respeitado o contraditório.
Paralelamente, Denise Nunes Abade48 questiona a admissibilidade no Brasil de depoimento prestado em Estado estrangeiro por corréu como testemunha. Ora, no ordenamento jurídico brasileiro, a pessoa que depõe em processo como testemunha tem a obrigação legal de falar a verdade, sob pena de sofrer as consequências decorrentes do falso testemunho, previstas pelo artigo 342 do Código Penal brasileiro. Entretanto, ao corréu é resguardado o direito de ficar em silêncio e até mesmo mentir em nome do direito à ampla defesa, tendo em vista que o corréu não é obrigado a produzir provas contra si mesmo (princípio nemo tenetur se detegere).
Neste caso, o Ministro Ricardo Lewandowski entendeu que admitir o corréu como testemunha é claramente ofensivo ao ordenamento brasileiro. Portanto, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento do Habeas Corpus nº 87.759/DF49, concluiu que “acatar, em nome da cooperação internacional, a realização no Brasil de ato contrário a direitos fundamentais, é inadmissível”50.
Em quarto lugar, temos o caso da coleta de sangue sem a anuência do indivíduo. Conforme ressalta Denise Neves Abade, “o Supremo Tribunal Federal, ao contrário de outros tribunais estrangeiros, considera incompatível com a dignidade humana e o direito à integridade física, a retirada manu militari de gota de sangue ou fio de cabelo para que seja realizado o exame de ácido desoxirribonucleico - DNA”51. O caso que estava sendo analisado pelo Supremo Tribunal Federal referia-se à Carta Rogatória nº 8443, proveniente da Dinamarca, que solicitava que a coleta de sangue fosse feita a despeito da autorização do indivíduo, para que fosse realizado exame pericial (DNA)52.
Nesse caso, tem-se um Estado estrangeiro solicitando que o procedimento invasivo seja realizado no Brasil. Entretanto, é possível que o procedimento seja realizado de forma inversa. Na Alemanha, por exemplo, o já citado princípio nemo tenetur se detegere, que proíbe que o Estado obrigue o acusado a produzir provas contra si mesmo, não se aplica ao caso de intervenção corporal do acusado. Em verdade, o Código de Processo Penal alemão, em sua seção 81, permite a intervenção corporal do acusado, independentemente de seu consentimento, para a produção de provas (coleta de sangue ou de material genético, por exemplo), desde que devidamente autorizado pelo juízo competente. O único limite que o código alemão traz serve para impedir a realização de eventual procedimento que coloque em risco a saúde do acusado53.
A referida Carta Rogatória nº 8443 tratava de ação civil de investigação de paternidade promovida no Estado dinamarquês. Na oportunidade, o Ministro Celso de Mello indeferiu o exequatur relativamente à coleta de sangue pretendida pela Dinamarca porque considerou que considerou que constranger o réu a submeter-se a exame de DNA para fins de investigação de paternidade ofende a ordem pública brasileira, in verbis:
No caso ora em análise, observo, como precedentemente já enfatizado, que a diligência processual solicitada pela Justiça rogante reveste-se de índole executória, eis que objetiva, além da citação, a coleta de sangue para efeito de realização do exame de DNA do ora interessado. Vê-se, portanto, que a providência probatória em questão, exatamente por implicar a efetivação de ato de caráter executório - de todo inadmissível em sede de comissão rogatória - acha-se desautorizada pela jurisprudência do STF, como acima demonstrado. Demais disso, cumpre ter presente - considerada a natureza da diligência ora rogada - a existência de regra de ordem pública que justifica, no caso ora em exame, a presente recusa de concessão de exequatur relativamente à coleta de sangue. É que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC nº 71.373-RS, Rel. p/ o acórdão Min. MARCO AURÉLIO, deixou consagrado, a partir do reconhecimento daexistência de garantias constitucionais estabelecidas em favor do réu, que este, em ação civil de investigação de paternidade, não pode ser constrangido a submeter-se, coativamente, à coleta de material orgânico para efeito de realização do exame de ácido desoxirribonucleico - DNA. Desse modo, sendo insuscetível de cumprimento, em nosso País, mediante simples procedimento rogatório, a diligência referente à coleta de sangue, indefiro, quanto a ela, a concessão do pretendido exequatur, deferindo-a, no entanto, no que concerne à efetivação do ato citatório. Defiro, pois, apenas em parte, a concessão de exequatur54.
Em sede de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, o Superior Tribunal de Justiça também já se debruçou sobre a questão da coação de indivíduo a submeter-se a coleta de sangue, em detrimento do princípio nemo tenetur se detegere, considerando-a inconstitucional:
Recurso ordinário - mandado de segurança - processo administrativo disciplinar - embriaguez habitual no serviço - coação do servidor de produzir prova contra si mesmo, mediante a coleta de sangue, na companhia de policiais militares - princípio do “Nemo tenetur se detegere” - Vício formal do processo administrativo - cerceamento de defesa - direito do servidor à licença para tratamento de saúde e, inclusive, à aposentadoria por invalidez - recurso provido. 1. É inconstitucional qualquer decisão contrária ao princípio nemo tenetur se detegere, o que decorre da inteligência do art. 5º, LXIII, da Constituição da República e art. 8º, § 2º, g, do Pacto de São José da Costa Rica. Precedentes. 2. Ocorre vício formal no processo administrativo disciplinar, por cerceamento de defesa, quando o servidor é obrigado a fazer prova contra si mesmo, implicando a possibilidade de invalidação da penalidade aplicada pelo Poder Judiciário, por meio de mandado de segurança. 3. A embriaguez habitual no serviço, ao contrário da embriaguez eventual, trata-se de patologia, associada a distúrbios psicológicos e mentais de que sofre o servidor. 4. O servidor acometido de dependência crônica de alcoolismo deve ser licenciado, mesmo compulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for o caso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido, por ser titular de direito subjetivo à saúde e vítima do insucesso das políticas públicas sociais do Estado. 5. Recurso provido55.
Ora, a jurisprudência brasileira é pacífica quanto à impossibilidade de obrigar um indivíduo a submeter-se a coleta de sangue ao menos em âmbito civil e administrativo por considerar o ato como uma ofensa à ordem pública brasileira.
No exemplo da prova obtida na Alemanha com a intervenção corporal involuntária do acusado, o que está em questão não é a existência de autorização judicial, pois esta é pressuposto para a sua licitude no Estado alemão. A reflexão que tem que ser feita aqui é quanto ao grau de reprovabilidade dessa conduta perante a sociedade brasileira. Dessa forma, sem maiores detalhes sobre o crime supostamente cometido pelo acusado, é possível que essa prova venha a ser rejeitada pelo ordenamento jurídico brasileiro por ofensa à ordem pública. Entretanto, é possível também que, na hipótese dessa prova pericial ser a única capaz de comprovar a inocência do acusado, a prova obtida tenha eficácia no Brasil, a despeito da violação ao princípio nemo tenetur se detegere.
6. O DESAFIO DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
Considerando que o recurso à ordem pública somente deve ser feito quando for absolutamente necessário, vimos que a mera divergência processual entre as jurisdições não é fator suficiente para alegar ofensa à ordem pública. Conforme observamos, a ordem pública é marcada pela sua indefinibilidade decorrente da sua fluidez e mutabilidade no tempo e no espaço, ou seja, o que a sociedade brasileira considera hoje como chocante, daqui a algumas décadas pode não ser mais. De todo modo, Maria Rosa Guimarães Loula destaca que “a ordem pública tem principalmente conteúdo material e excepcional, não devendo ser vulgarizada ou alegada sempre que se pretenda que exista qualquer obstáculo à produção de efeitos no Brasil de um ato estrangeiro”56.
Denise Neves Abade, por sua vez, chama a atenção para o chauvinismo e a xenofobia jurídica existente no ordenamento jurídico brasileiro que faz com que o juiz nacional tenda a repelir a eficácia da lei estrangeira, substituindo-a pela lei nacional, sob a justificativa de ofensa à ordem pública. Trata-se de verdadeiro abuso na utilização da cláusula de ordem pública, seja porque o juiz nacional acha mais simples aplicar a lei nacional, conhecida, seja porque não confia no direito estrangeiro como garantidor de direitos fundamentais, como se o ordenamento jurídico brasileiro fosse o único capaz de promover garantias ao acusado57. Portanto, temos que o recurso à ordem pública como mera desculpa para evitar o desconhecido é ilegal.
Ademais, a autora aponta que a previsibilidade e o controle das decisões ficam prejudicados em razão de não haver balizamentos mínimos para a incidência dos direitos fundamentais na cooperação jurídica internacional por meio da cláusula de ordem pública. Segundo a autora:
a falta de parâmetros precisos para determinar o que é “ordem pública” na seara penal gera inegável insegurança jurídica, em especial porque, no âmbito penal e processual penal, as impugnações da defesa querem fazer valer a tese de que todo o nosso ordenamento processual penal é de “ordem pública”. Esse argumento maximalista vulgariza o conceito de ordem pública e lhe retira sua característica básica, que é servir para proteger tão somente os valores máximos do nosso ordenamento. Banalizar o conceito de ordem pública para abarcar todo o modelo de persecução penal brasileiro significa modificar seu próprio conceito e ofende sua finalidade de defesa contra agressões a valores supremos do ordenamento brasileiro. De fato, não se imagina que modelos diferentes de persecução penal de Estados com tradição de respeito a direitos fundamentais possam violar a ordem pública brasileira58.
Por outro lado, Fábio Ramazzini Bechara defende que a eficácia no Brasil da prova produzida no exterior e a maior eficiência da cooperação jurídica internacional dependem do reconhecimento de um padrão normativo universal em matéria de direitos humanos e garantias processuais, que supera a diversidade entre os sistemas jurídicos. Nas suas palavras:
o padrão normativo universal dos direitos humanos qualifica-se como o fundamento para assegurar mais eficiência à cooperação jurídica internacional, porquanto: acarreta uma nova configuração da soberania e da ordem pública nacional; afirma o princípio da confiança mútua como expressão do valor solidariedade a nortear a relação entre os Estados cooperantes; e justifica a adoção de medidas que tendem a tornar a assistência jurídica internacional mais dinâmica e ágil59.
De todo modo, Saulo Stefanone Alle sustenta que a jurisprudência brasileira aponta uma tendência consolidada de admitir a existência de um dever geral de cooperar fundamentado pelo direito internacional e, sobretudo, pelo direito internacional dos direitos humanos60. Sublinha que a cooperação não depende da existência de tratado específico para que aconteça, visto que os tratados de cooperação nada mais são do que um meio facilitador para tornar o procedimento a ser seguido mais simples e acessível61. Complementa que a cooperação jurídica internacional não limita a soberania estatal, mas, pelo contrário, reforça-a, visto que possibilita que decisões e atos nacionais sejam respeitados para além das fronteiras físicas de seu território62. Por isso, o Estado precisa que a cooperação jurídica internacional ocorra de forma eficaz para que possa garantir o acesso à justiça por parte de seus nacionais63.
Na mesma linha, Luís de Lemos Triunfante ressalta que a cooperação jurídica internacional, baseada na confiança recíproca entre os Estados, é fundamental para a satisfação da tutela jurisdicional. Segundo o autor, não apenas a criminalidade não se restringe aos limites territoriais nacionais, como também as partes de um processo não podem ser prejudicadas em razão de um elemento estrangeiro estar inacessível64.
CONCLUSÃO
Em resumo, vimos que a ordem pública, um dos princípios mais importantes do direito internacional privado, é sobretudo indefinível, haja vista que se caracteriza pela sua fluidez e mutabilidade no tempo e no espaço. Entretanto, a sua análise no caso concreto é responsável por avaliar se determinado fator é compatível com os interesses fundamentais do sistema jurídico do foro. Vimos também que a diferença da lei estrangeira para a lei local não faz com que a sua eficácia seja impedida pela cláusula de ordem pública, é preciso que seja chocante à mentalidade e sensibilidade médias daquela sociedade.
Em seguida, traçamos o conceito de cooperação jurídica internacional e dissertamos sobre os institutos aplicáveis à obtenção de provas por um Estado estrangeiro, a carta rogatória e o auxílio direto. No tocante à lei aplicável à obtenção de provas internacionalmente, explicamos porque a lex diligentiae é aplicada como regra e a lex fori como exceção.
Posteriormente, destacamos alguns exemplos nos quais outros Estados possuem exigências diferentes daquelas que o Brasil impõe para si no que concerne à obtenção de provas. Nessa parte, buscamos compreender em que medida cada situação estaria suscetível ao filtro da ordem pública brasileira.
Finalmente, temos que o recurso à ordem pública somente deve ser feito quando for absolutamente necessário, isto é, quando a prova em si ou o procedimento adotado para obtê-la for chocante à mentalidade e sensibilidade médias da sociedade brasileira. Além disso, concordamos com Denise Nunes Abade e com André de Carvalho Ramos no sentido de que existe uma verdadeira xenofobia jurídica que faz com que juízes nacionais impeçam a eficácia de ato estrangeiro, sob a justificativa de ofensa à ordem pública, apenas por ser diferente. Trata-se de verdadeiro abuso na utilização da cláusula de ordem pública, o que torna a decisão ilegal. Concluímos, pois, que o sistema jurídico brasileiro ainda carece de regulamentação que assegure a obediência aos princípios aplicáveis de direitos humanos ao tempo em que forneça previsibilidade e segurança jurídica quando o assunto é cooperação jurídica internacional em matéria de obtenção de provas.