1. INTRODUÇÃO
A proteção de vítimas de perseguição injusta é fenômeno antigo, presente desde os primeiros registros históricos de sociedades ditas civilizadas, havendo variações, contudo, quanto aos critérios utilizados para a caracterização da perseguição sofrida como injusta. De acordo com Balogh1, “o direito a asilo é tão antigo quanto a civilização e, consequentemente, pode-se dizer que o problema dos refugiados tem que existir há tanto tempo quanto”.
De fato, em qualquer grupo social, por mais rudimentar que seja a sua organização institucional, coexistem indivíduos com opiniões distintas, por vezes irreconciliáveis, não sendo incomum a perseguição dos integrantes do grupo que se revela minoritário. Assim, desde tempos imemoriais, há registros de saída forçada de indivíduos de seu grupo social para evitar perseguição que entendem como injusta, buscando proteção por outro soberano2.
A positivação da proteção internacional dos indivíduos vítimas de perseguição ao longo do século XX trouxe, em um primeiro momento, maior segurança jurídica, em especial às vítimas de deslocamentos forçados durante os conflitos no continente Europeu.
Se a regulamentação contemporânea levada a cabo pela Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 representou importante marco na evolução da proteção internacional ao indivíduo, fato é que esta não mais abarca os deslocamentos humanos forçados mais frequentes na atualidade.
De fato, o final do século XX e início do século XXI têm como marca distintiva a ocorrência de intensos deslocamentos internos e fluxos de refugiados sul-sul, aliados a um momento de especial resistência ao recebimento de migrantes provenientes de regiões pobres pelos estados europeus.
Enquanto a fortaleza Europa se fecha, com a implementação de sistema rígido de controle de fronteiras externas que, muitas vezes, resulta violações claras ao direito internacional dos refugiados, em especial ao princípio do non-refoulement, Estados já sobrecarregados por crises internas recebem dezenas de milhares de vítimas de perseguição e outros, até então pouco procurados, como o Brasil, ganham relevância no fluxo de refugiados.
No ano de 2010, 566 indivíduos solicitaram refúgio no Brasil. Em 2014, considerando as solicitações feitas até o mês de outubro, foram 8,3023. O aumento repentino no número de solicitações de refúgio, provocado pela crescente relevância econômica do país, pela facilidade de ingresso no território nacional e, sobretudo, pelo maior controle adotado pelos Estados que, até então, recebiam a maior parte do fluxo de refugiados, trouxe à baila discussões acerca do instituto no Brasil.
O país não só teve que lidar com aumento considerável de solicitantes de refúgio vítimas da perseguição clássica, mas também se deparou com um surpreendente fluxo de haitianos, que, em um primeiro momento, solicitaram refúgio devido à crise que vive o Haiti desde o terremoto de 2010. Assim, as discussões sobre a figura teórica do “refugiado ambiental” ganharam imensa relevância prática.
Com o aumento do número de refugiados, surgem novos problemas correlatos. De fato, a longa discussão doutrinaria sobre a condição jurídica do estrangeiro ganha novo escopo, na medida em que o perfil de imigrante aceito deixa de ser o altamente qualificado para suprir necessidades do mercado de trabalho e passa a incluir indivíduos que não necessariamente têm condições de garantir o próprio sustento e que, por consequência, passam a depender da já precária rede de assistência social do país. Somente em dezembro de 2014, por exemplo, o município de São Paulo, que concentra grande número de imigrantes de baixa renda, passou a inscrever estrangeiros no CadÚnico, viabilizando o acesso destes aos programas sociais mantidos pelo governo federal4.
Como se vê, políticas públicas de atenção aos refugiados ainda se encontram em construção, sem definição clara do papel dos inúmeros entes públicos com atribuição para a condução de programas que potencialmente seriam úteis para atenção aos solicitantes de refúgio. Neste contexto, analisaremos no presente artigo o instituto do refúgio, com ênfase no tratamento que lhe é dado no Brasil, bem como identificaremos os principais desafios que este apresenta nos dias atuais.
2. A ORIGEM DO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS
O direito dos refugiados tem origem no século XX. De acordo com Reale, somente ao término da guerra de 1914-1918 que a gravidade do problema dos refugiados tornou-se evidente, demandando efetiva regulamentação da questão da proteção das vítimas de perseguição injusta5.
Apesar de relativamente recente, o instituto do refúgio possui raízes em outro instituto jurídico, este sim conhecido desde a antiguidade: o asilo. De fato, autores como Celso Mello afirmam que “são denominadas de refugiados as pessoas que gozam de asilo territorial”6, enquanto a legislação de alguns Estados não diferencia de forma rígida o asilo territorial do refúgio7. Desta forma, o direito internacional dos refugiados tem sua origem remota no instituto do asilo, de onde resulta que, para a boa compreensão do primeiro, imprescindível a análise, ainda que breve, do segundo.
Reale afirma ser a noção de asilo “antiga como a humanidade. Ela é contemporânea ao crime e ao infortúnio, à penitência e à piedade”8. Nas sociedades primitivas, nas quais o uso da força bruta era cotidiano, o asilo desempenhava papel especialmente benéfico, na medida em que permitia a interrupção de um círculo de violência, retirando a vítima de perseguição do local em que sua integridade física estava ameaçada9. Neste contexto, o local de asilo é o local inviolável, no qual a vítima de perseguição está protegida contra a violência10.
A natureza da perseguição que dá ensejo à proteção, contudo, variou ao longo da história, até a consolidação atual, do asilo como destinado à proteção das vítimas de perseguição política.
O estudo do instituo do asilo normalmente implica a análise de casos individuais, exemplos extremos que ilustram a perseguição promovida por um Estado contra um indivíduo em particular, normalmente sob o argumento de estar o poder público adotando medidas essenciais à preservação da ordem pública.
O início do século XX, contudo, foi marcado por uma sequência de eventos que tornou insuficiente o instituto do asilo. De fato, antes mesmo da Primeira Guerra Mundial, “grandes contingentes de refugiados dos Impérios Russo e Otomano dirigiam-se à Europa central e à do oeste, assim como para a Ásia”11.
Historicamente, a origem dos direitos dos refugiados coincide com a origem dos sistemas gerais de proteção dos direitos humanos, ambos sendo produtos dos acontecimentos que marcaram a primeira metade do século XX12.
Até então, não havia política imigratória na Europa específica para o recebimento de grandes - e por vezes imprevisíveis - fluxos populacionais, sendo os estrangeiros que ingressavam no território dos estados por vezes tratados como imigrantes comuns, em outras ocasiões como merecedores de asilo.
De fato, o fluxo migratório frequentemente era visto com bons olhos pelos governos, visto que os novos habitantes daquele estado contribuiriam com o crescimento econômico deste, seja através da tributação, seja através do oferecimento de seus conhecimentos específicos13.
A Primeira Guerra Mundial representou um marco no fechamento das fronteiras dos Estados europeus, por outro, episódios específicos que a antecederam já representaram importante desafio à proteção internacional dos indivíduos.
De fato, houve a já mencionada migração de contingentes provenientes do Império Russo e do Império Otomano em direção à Europa ocidental, além de a Guerra dos Balcãs (1912-1914) ter dado início a ampla “transferência involuntária de grupos de minorias étnicas daquela região”14.
Durante a Primeira Guerra Mundial, os deslocamentos em massa ocorridos tinham como característica principal a sua temporariedade: as pessoas fugiam das hostilidades, em regra dentro do território do próprio Estado. Duas grandes exceções a este movimento: a migração em massa de belgas e sérvios15 e, após 1917, de russos, mas estes fugindo da Revolução que teve início naquele ano.
Neste contesto, iniciou-se o desenvolvimento do instituto do refúgio no direito internacional, até que este alcançasse o estado atual, se apresentando como evolução natural do asilo, na medida em que amplia o grau de proteção conferido por este, ao ponto de ser considerado atualmente por muitos como “o mecanismo de proteção internacional dos direitos humanos mais poderoso do mundo”16.
3. A NORMATIVA INTERNACIONAL PROTETORA DOS REFUGIADOS
Uma vez consolidada a estrutura institucional de proteção dos refugiados, mesmo que através de um órgão com mandato temporário, como é o caso do ACNUR, as atenções internacionais se voltam à regulamentação do direito internacional dos refugiados, capitaneada sobretudo pelo próprio ACNUR, e que leva em consideração - ou ao menos deveria levar - o direito internacional dos refugiados como sistema conectado com o direito internacional dos direitos humanos e com o direito humanitário.
Dos esforços do ACNUR resultou a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, principal instrumento de proteção internacional dos refugiados. A parte desta, diversos outros instrumentos, sobretudo regionais, como a Convenção da Organização de Unidade Africana que rege os Aspectos Específicos dos Problemas dos Refugiados em África, foram adotados. Há, ainda, diversos documentos internacionais, sem a natureza de tratado internacional, como as Declarações de Cartagena, de São José e a do México.
Para fins do presente estudo, além da Convenção de Genebra, será analisada a Declaração de Cartagena sobre Refugiados, que, apesar de não constituir tratado internacional, teve importante repercussão no ordenamento jurídico brasileiro.
3.1. A Convenção de 1951
O desenvolvimento do direito internacional dos refugiados após a Segunda Guerra Mundial teve como ápice a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 195117, que institui, um sistema baseado na caracterização da qualidade de refugiado com base no preenchimento de determinados requisitos. De acordo com a Convenção, uma pessoa é considerada refugiada a partir do momento em que atende aos critérios nela previstos, cabendo ao Estado acolhedor tão somente declarar a qualidade de refugiado do requerente18.
Em decorrência da convenção, os Estados garantem aos refugiados, sem qualquer discriminação, um tratamento igual ao conferido aos seus nacionais em matéria de liberdade religiosa, de acesso à justiça, à educação, à assistência social, à legislação laboral e previdenciária, dentre outros19.
A definição de refugiados adotada pela Convenção foi resultado de divergência entre os países que participaram da Conferência na qual negociada. Nesta estavam presentes, sobretudo, países ocidentais de orientação liberal, com algumas relevantes exceções, como a presença da Iugoslávia, única representante do bloco comunista. Os EUA defendiam a adoção de definição restritiva e precisa, evitando a criação de obrigações jurídicas não previstas pelos estados. Já os países da Europa ocidental defendiam a adoção de definição ampla, sem que houvesse, contudo, consenso quanto ao teor desta20.
Como regra geral, a Convenção de 1951 define refugiado como os indivíduos que já gozavam de tal estatuto com base em diplomas anteriores, ou que
em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele21.
Como se depreende de tal definição, a Convenção originalmente objetivava tão somente regular os fluxos de refugiados já existentes, com aplicação pretérita, portanto. Após sua celebração, contudo, novos importantes fluxos de refugiados surgiram, especialmente na África e na Ásia, onde o número de refugiados aumentava constantemente. Em decorrência de tal fenômeno, nos anos 1960 o ACNUR deu início a procedimentos para a reforma da Convenção de 1951, que resultaram na celebração do Protocolo de Nova Iorque, de 31 de janeiro de 1967, adicional à Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, concluída em Genebra em 28 de julho de 1951, que removeu a mencionada limitação temporal. O Protocolo foi celebrado como instrumento independente, permitindo sua ratificação por Estados que não eram parte da Convenção de 195122.
Há, ainda, outra restrição no texto da Convenção de 1951: os Estados, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, deveriam declarar se a aplicação era restrita aos acontecimentos ocorridos na Europa, ou incluía eventos ocorridos alhures23. A restrição geográfica é aplicada, atualmente, apenas por Congo, Madagascar, Mônaco e Turquia24.
Mesmo com a eliminação das restrições temporal e geográfica, há críticas relevantes ao conceito adotado pela Convenção de 1951, que exclui, por exemplo, diversas pessoas deslocadas, como curdos e palestinos25, além de não contemplar indivíduos que se veem foçados a migrar por força de motivos outros, que não os listados no texto convencional, como em razão de catástrofes ambientais.
3.2. As declarações americanas sobre refugiados
A insuficiência do conceito de refugiados adotado pela Convenção de 1951 resultou no surgimento de diversos instrumentos regionais visando a ampliação deste. Neste contexto, a Convenção da União Africana que regula Aspectos Específicos dos Problemas dos Refugiados na África, assinada em 1969 em Addis Ababa, prevê que o termo refugiado também é aplicável àqueles que, devido a agressões externas, ocupação, dominação estrangeira ou sérios eventos perturbadores da ordem pública são forçados a deixar seu local de residência habitual para buscar refúgio em outro país.
Em 1984, o ACNUR, tendo em vista o fato de o continente americano enfrentar relevante fluxo de migrantes fugidos dos conflitos que assolavam a América Central, promoveu o encontro de 10 Estados latino-americanos26, na cidade colombiana de Cartagena das Índias, para discutir a questão dos refugiados no continente27. Desta reunião resultou a Declaração de Cartagena sobre Refugiados de 1984, que inaugurou, no âmbito regional americano, o uso de definição mais ampla de refugiado, ao prever a figura da “violação maciça de direitos humanos” como elemento caracterizador do instituto28.
Desta forma, a Declaração de Cartagena recomenda aos Estados que considerem refugiados não só os indivíduos que fugiram de ameaças nos termos da Convenção de 1951, mas também aqueles que tiveram sua vida ou integridade física ameaçadas por violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação maciça de direitos humanos ou quaisquer outras circunstâncias que perturbem gravemente a ordem pública29.
A Declaração de Cartagena tem importância adicional por reforçar a íntima ligação do direito internacional dos refugiados com as demais vertentes da proteção internacional do indivíduo, na medida em que elenca violações generalizadas de direitos humanos como motivo para o reconhecimento do estatuto de refugiado30.
Em 1994, foi editada a Declaração de São José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, influenciada pela deterioração das condições socioeconômicas em diversos estados, reconhecendo a especial necessidade de proteção das vítimas deste fenômeno, sejam estas refugiadas ou deslocadas internas31.
Em 2004, na comemoração dos 20 anos da Declaração de Cartagena, o ACNUR promoveu a Conferência do México, que resultou na edição do Plano de Ação: Cartagena 20 anos depois, também conhecido como Plano de Ação do México. Por mais que tal documento constitua mera declaração de intenções, não vinculando os Estados, é importante exteriorização da tendência dos estados americanos em tratar o direito internacional dos refugiados como intimamente ligado ao direito internacional dos direitos humanos32.
Tais documentos representam tendência específica de ampliação subjetiva do direito internacional dos refugiados no continente americano, sem, contudo, repercutir de forma efetiva na prática dos Estados - vale citar, por exemplo, a resistência do Brasil em reconhecer os milhares de haitianos que ingressaram em seu território após o cismo de 2010 como refugiados.
4. O ESTATUTO DO REFUGIADO
O regime atual do direito internacional dos refugiados ainda é o baseado no ACNUR, na Convenção de 1951 e no Protocolo de Nova Iorque, razão pela qual a análise da matéria deve ser baseada, necessariamente, na estrutura da Convenção.
A primeira característica do refúgio é o fato de os indivíduos merecedores de proteção necessariamente estarem fora de seu próprio Estado. O objetivo da Convenção de 1951 não foi solucionar todos os problemas relativos à migração forçada, mas tão somente aqueles casos em que os migrantes se encontrem fora da jurisdição do Estado do qual são nacionais33. Desta forma, a problemática dos deslocados internos34 - aqueles indivíduos que foram forçados a deixar o local de residência por ameaça à vida ou a integridade física, mas ainda se encontram no interior do Estado de nacionalidade - foi deixada de lado, sendo objeto de regulamentação específica, em regra em plano regional35.
Importante ressaltar que o refúgio, apesar de ter certa sobreposição com o instituto do asilo territorial, não se confunde jamais com o asilo diplomático. Para gozar da proteção conferida pela Convenção de 1951, é imprescindível que o indivíduo já se encontre no território do Estado ao qual pede proteção. Assim, não é possível a concessão de refúgio para aqueles que se encontrem no interior de missão diplomática, ou em zonas especiais36 em aeroportos, portos ou estações ferroviárias, nas quais o estado territorial cede a estado parceiro o exercício de determinas funções, que serão exercidas extraterritorialmente por este37.
O principal requisito para o reconhecimento do estatuto de refugiado, previsto no art. 1º da Convenção de 1951, é a existência de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Esta perseguição potencial deve ser exercida no Estado de nacionalidade, isto é, o refugiado não deve mais contar com a proteção efetiva do Estado do qual é nacional.
De acordo com Casella, o conceito adotado pela Convenção de 1951 “abrange todos aqueles que estão ameaçados de sanções por lutarem para proteger seus direitos humanos”38. Tal afirmação, contudo, não é precisa. O texto convencional se preocupou tão somente com aqueles que potencialmente sofrem perseguição em razão de violação a direitos civis e políticos, “ignorando os direitos econômicos, sociais e culturais, mais violados em países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo, o que fortalece ainda mais a posição eurocêntrica desse diploma”39.
A Convenção de 1951 limita o seu campo de aplicação, ao eleger os motivos de perseguição considerados como aptos a ensejar a proteção internacional de dado indivíduo, deixando inúmeros outros de fora: não seriam merecedores de proteção, por exemplo as vítimas de perseguição por motivo de orientação sexual ou até mesmo em razão do gênero - mulheres que fujam de estados nos quais a retirada de clitóris é prática comum para manter a própria integridade física não receberiam a proteção merecida.
Na prática, a maior parte dos refugiados, como os que escapam de guerras, não se enquadram nas categorias previstas na Convenção de 1951, o que levou à adoção de diversos atos normativos específicos ampliando os motivos de perseguição que permitem a caracterização do refúgio. A normativa europeia, por exemplo, ao tratar do solicitante de refúgio, não faz qualquer referência aos motivos da perseguição sofrida40.
Muitos doutrinadores, dentre os quais se inclui Carlier, apontam o temor de perseguição como ponto central da definição de refugiado adotado pela Convenção de 1951. De fato, as discussões, na maior parte dos casos, se restringem à caracterização do temor de perseguição como sendo fundado ou não.
O conceito de temor fundado inclui um elemento objetivo e um elemento subjetivo, ambos devendo ser levados em consideração41. O elemento subjetivo estará presente em praticamente em todas as solicitações de refúgio, salvo nos casos em que feitas de má-fé, visto que consiste em verificar se a pessoa que busca o reconhecimento de sua condição de refúgio se percebe como vítima de perseguição e, de fato, teme pela própria integridade física caso retorne ao seu Estado de origem42.
O elemento objetivo, por sua vez, pressupõe análise das informações disponíveis sobre o Estado de origem, isto é, deve ser verificada se o quadro político e socioeconômico deste é permite concluir pela existência de uma potencial perseguição e pela incapacidade do Estado de origem de proteger seus nacionais43.
O maior problema da Convenção é o fato de esta não definir o que configuraria um temor fundado de perseguição, fazendo que até mesmo o elemento objetivo seja analisado subjetivamente, isto é, são os Estados que soberanamente decidem os fatores que serão considerados objetivamente como caracterizadores de temor fundado de perseguição. Há margem discricionária até mesmo para o Estado decidir unilateralmente quais atos constituem perseguição efetiva44.
Se, por um lado, é certo que a Convenção de 1951 deixou aos Estados a identificação dos atos que caracterizam a perseguição atual ou potencial, por outro, fato é que a doutrina indica alguns que necessariamente devem ser considerados como suficientes para a configuração desta. Assim, violência física ou psíquica, incluso a sexual, procedimentos legislativos, administrativos, policiais ou judiciais discriminatórios, seja pela forma ou pelo conteúdo, ações judiciais ou sanções penais despropositadas ou discriminatórias, a negativa de acesso à justiça e a adoção de medidas penais para forçar o engajamento em conflito devem ser consideradas suficientes para a caracterização do refúgio45.
Em suma, para que um indivíduo possa ser caracterizado como refugiado nos termos da Convenção de 1951, este deve se encontrar fora do país de origem; não poder, ou não querer, se valer da proteção deste Estado ou a ele retornar, em razão de fundado temor de perseguição em razão de pertencimento a raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opinião política46.
Uma observação deve ser feita neste ponto: apesar de este ser o alvo preferencial, não há qualquer dispositivo na Convenção de 1951 que condicione o reconhecimento do refúgio à perseguição governamental. Assim, é possível a configuração da condição de refugiado de indivíduos que foram vítimas de perseguição efetuada por agentes privados47.
Adicionalmente, alguns diplomas, como a Convenção da Unidade Africana e a Declaração de Cartagena, preveem a ampliação dos motivos de concessão de refúgio, incluindo grave e generalizada violação de direitos humanos, situações de violência externa e problemas em regiões específicas de um Estado. Tais critérios são geograficamente limitados, eis que previstos apenas em diplomas regionais, alguns dos quais sequer vinculantes, como é o caso da Declaração de Cartagena.
Quanto à grave e generalizada violação de direitos humanos, trata-se de critério flexível, que busca corrigir as limitações constantes na Convenção de 1951 e aproximar, ainda mais, o direito internacional dos refugiados e o direito internacional dos direitos humanos. Apesar disto, trata-se de critério de difícil aplicação prática, pois depende da qualificação política do Estado que recebe a solicitação de refúgio da situação no Estado de origem48.
A situação de violência externa é prevista pela Convenção da Unidade Africana e tem íntima relação com o recente passado colonial do continente, e diz respeito àqueles que são forçados a deixar o local de residência habitual e buscar refúgio em Estado estrangeiro em razão de “agressão externa, ocupação, e dominação estrangeira ou eventos que perturbem seriamente a ordem pública, tanto na totalidade do Estado de nacionalidade como em uma dada região”49.
A Convenção de 1951 não previu apenas as condições para que um indivíduo possa ser considerado refugiado, mas também algumas hipóteses nas quais, mesmo configuro o fundado temor de perseguição em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, não poderá gozar da proteção conferida pelo direito internacional dos refugiados.
A primeira causa de exclusão é tratada no artigo 1 da Convenção de 1951, segundo o qual não é esta aplicável àqueles que se beneficiem de proteção ou assistência conferida por organismo ou instituição da ONU que não o ACNUR. Este dispositivo foi incluído na Convenção visando impedir o acesso dos refugiados palestinos que gozam de proteção conferida pela UNRWA ao sistema de Genebra.
A exclusão dos palestinos se deu sobretudo em razão de pressão exercida pelos países árabes, segundo os quais a questão dos palestinos deveria ser objeto de atenção especial da ONU, visto que decorre da criação de Israel pela própria organização internacional.
Os refugiados palestinos (...) diferiam de todos os outros refugiados. Em todos os outros casos, as pessoas tinham se tornado refugiados como resultado de ações contrárias aos princípios das Nações Unidas e a obrigação desta em relação a elas era apenas moral. A existência de refugiados palestinos, por outro lado, foi resultado direto de decisão tomada pelas Nações Unidas com plena ciência de suas consequências. Os refugiados palestinos eram, portanto, responsabilidade direta das Nações Unidas, não podendo ser postos na categoria geral de refugiados sem violar tal responsabilidade50.
Os países árabes temiam, ainda, que a dispersão dos refugiados palestinos, que certamente ocorreria caso incluídos no regime da Convenção de 1951, resultaria na criação de uma diáspora, diminuindo a vontade política de efetivar a repatriação destes. Esta movimentação internacional era motivo de preocupação também dos europeus, que temiam receber grande fluxo de refugiados palestinos51.
A segunda cláusula de exclusão da Convenção de 1951 está prevista no artigo 1 F e diz respeito à existência de “razões sérias para pensar que” as pessoas tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime grave de direito comum fora do país de refúgio ou sejam culpadas de atos contrários aos fins e princípios da ONU. O problema, quanto a esta hipótese, se restringe à caracterização de um crime de direito comum como sendo grave, já que matéria deixada para a regulação pelos estados.
Por fim, a Convenção prevê, ainda, a perda da qualidade de refugiado, caso o indivíduo retorne para o país de que é nacional; tenha readquirido voluntariamente nacionalidade perdida; tenha adquirido nova nacionalidade, gozando de proteção por este Estado; tenha voltado a gozar da proteção do país de que é nacional; ou por terem cessado os motivos que levaram ao reconhecimento da condição de refugiado52.
4.1. O estatuto dos refugiados no brasil
O Brasil assinou a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados em 1952, a tendo ratificado 8 anos mais tarde, em 1960, inicialmente com a restrição geográfica, de onde resultava que somente vítimas de perseguição ocorrida antes de 1951 na Europa poderia gozar de proteção conferida pelo Brasil. Neste contexto, somente em situações excepcionais - e, em regra, mediante grande esforço hermenêutico - recebiam indivíduos originários de outras regiões proteção pelo Brasil, o que aconteceu, por exemplo, com a concessão, em 1979, de visto temporário a 150 vietnamitas vítimas de perseguição53.
A restrição geográfica foi revogada pelo Decreto nº 98.602/89 e, oito anos mais tarde, foi aprovada a lei 9.474/97, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados, reproduzindo, em grande parte, o modelo da Convenção de 1951. Até a entrada em vigor de tal lei, o principal agente de proteção dos refugiados no país era o próprio ACNUR, presente desde 1977 através de sua representação local. Com a entrada vigor do novo diploma normativo, deixa o ACNUR a sua representação no país e a proteção dos refugiados é institucionalizada, principalmente mediante a atuação do Conselho Nacional para Refugiados (CONARE).
O primeiro aspecto relevante da lei brasileira é a adoção do conceito estendido de refugiados, na medida em que o art. 1º, inciso III, permite o reconhecimento como refugiado daqueles que foram obrigados a deixar seu país de nacionalidade em razão de grave e generalizada violação de direitos humanos. Tal definição ampliada resulta em maior valoração da “situação política e institucional do país e sua relação com a situação individual do solicitante, procurando avaliar até que ponto a vida e a liberdade do solicitante encontram-se ameaçadas”54.
Outro aspecto merecedor de nota é a ampliação promovida pela legislação brasileira, na medida em que prevê que não se beneficiarão da condição de refugiado aqueles que tiverem participado de tráfico de drogas55. O Brasil não fez qualquer reserva à Convenção de 1951 sobre o tema, razão pela qual a previsão pode ser vista como uma limitação indevida ao regime convencional ou mero esclarecimento do que o Brasil entende como um crime grave de direito comum56.
Em relação a esta limitação introduzida pela legislação brasileira, há problemas em especial em relação às chamadas mulas do tráfico, pessoas em situação de extrema vulnerabilidade que aceitam transportar drogas pelos mais diversos motivos. Muitas dessas mulas são vítimas de perseguição em seu Estado de origem, se enquadrando no conceito convencional de refugiado, mas não receberão a proteção do Estado brasileiro, ante o envolvimento com o tráfico internacional de entorpecentes. Ao menos nas situações nas quais a atuação como mula foi feita para viabilizar a fuga, não é legítima a restrição imposta pela lei 9.474/97.
O procedimento para a concessão de refúgio, no Brasil, segue o rito de processo administrativo no âmbito do CONARE, sendo a lei 9.474/97, neste ponto, regulamentada pela Resolução Normativa CONARE 18/201457. O processo administrativo tem seu início no preenchimento e protocolo de um termo de solicitação de refúgio junto à Polícia Federal, outro ponto problemático na regulamentação, pois força indivíduos em situação de especial vulnerabilidade a comparecer à autoridade policial, o que, em especial para aqueles que ingressaram irregularmente no território nacional, causa relevante temor58.
Efetuado o protocolo junto à polícia federal, o comprovante deste permite a residência provisória, bem como o gozo de direitos civis e sociais pelo solicitante de refúgio, incluso, por exemplo, a emissão de carteira de trabalho e o exercício de atividade laborativa.
Após a realização do protocolo e da coleta de dados biométricos, é realizada entrevista pessoal com o solicitante de refúgio, na qual serão colhidos detalhes sobre a perseguição sofrida, conduzida, em regra, pela Cáritas Brasileira, mas, em alguns locais, pela Defensoria Pública da União. Esta questão representa um ponto de vulnerabilidade adicional, na medida em que a Cáritas constitui organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sendo vinculada, portanto, à Igreja Católica. Sendo a religião uma das causas de perseguição que ensejam o reconhecimento da condição de refugiado, resta especialmente inconveniente que o preenchimento dos requisitos previstos na Convenção de 1951 seja analisado com base em entrevista realizada por instituição - mesmo que por via reflexa - eclesiástica.
Finda a instrução, o processo administrativo é remetido ao CONARE para decisão, da qual cabe recurso ao Ministro da Justiça. A decisão favorável ao solicitante de refúgio tem, não só por força da lei 9.474/97, mas principalmente em razão da Convenção de 1951, natureza declaratória da condição de refugiado, não havendo qualquer espaço para análise discricionária, isto é, trata-se de ato administrativo vinculado - uma vez preenchido os requisitos, deve ser a condição de refugiado obrigatoriamente reconhecida.
5. O DIREITO DOS REFUGIADOS NO SÉCULO XXI
Abril de 2014: após três anos de intenso fluxo de haitianos, o governo do Acre decide fechar o abrigo da cidade de Brasileia, na fronteira com a Bolívia. Por tal abrigo, passaram mais de 20 mil haitianos, tendo chegado a abrigar 2500 pessoas em um espaço projetado para acolher 300. Os imigrantes haitianos fogem do caos instaurado em seu país natal após décadas de instabilidade política e o grande cismo de 2010 que devastou a parca estrutura então existente.
Junho de 2015: mais de 20 homens, quase todos negros vindos da África, passam dias confinados em pequena sala no Aeroporto Internacional de São Paulo/Guarulhos - Governador André Franco Montoro, apenas com a roupa do corpo. A maior parte é de potenciais solicitantes de refúgio, mas que são impedidos de deixar a área de segurança internacional do aeroporto e até mesmo de formalizar o pedido de refúgio. A Polícia Federal opta, em prol de suposta segurança internacional, opta por não aplicar a Convenção de 1951 e a lei 9.474/97, como se a ela competisse decidir tal questão59.
A proteção das vítimas de perseguição, antes intimamente ligada aos grandes conflitos ocorridos na Europa na primeira metade do século XX e à instabilidade política que os seguiu durante os anos da Guerra Fria, ganha novos contornos: a questão dos refugiados se globaliza, ante a expansão dos deslocamentos humanos em massa para o nível mundial, a intensificação dos esforços de assistência humanitária e a ampla cobertura de casos paradigmáticos pela mídia60. Neste contexto, Estados, até então com pouca tradição no recebimento de refugiados, como o Brasil, passam a receber fluxo cada vez mais relevante.
Neste contexto, o direito internacional dos refugiados passa a lidar com problemas novos, que fogem do padrão até então comum de mera análise da subsunção dos casos concretos aos requisitos previstos na Convenção de 1951.
A primeira questão relevante que se põe é a concessão de refúgio a indivíduos que não sofrem perseguição propriamente dita, mas fogem de um quadro de violação generalizada de direitos humanos causada por fatores alheios à vontade do Estado de origem. É o caso do grande fluxo de haitianos recebido pelo Brasil.
Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto de grande magnitude atingiu a República do Haiti, estado que enfrentava, já à época, grave crise humanitária, decorrente de sua conturbada história marcada por seguidos golpes de Estado61. A capital Porto-Príncipe, que concentra a maior parte da população haitiana, foi devastada, agravando a crise local. Já em março de 2011, tem início um fluxo migratório constante de haitianos para o Brasil..
Os haitianos não se enquadravam nas hipóteses previstas na Convenção de 1951, mas poderiam ser objeto de proteção com base na Lei 9.474/97, que, como se viu anteriormente, adota conceituação ampla de refugiados. Não obstante tal fato, o Brasil optou por não reconhecer a condição de refugiado, optando pelo estabelecimento de sistemática de vistos humanitários, conforme a Resolução Normativa 97/2012 do Conselho Nacional de Imigração - CNIg.
Ao não reconhecer a condição de refugiados, o Brasil manteve a situação de emergência humanitária na região norte e descumpriu com os termos da Lei 9.474/97. Neste ponto, entra em questão o segundo grande problema enfrentado pelo instituto do refúgio hodiernamente no Brasil: a impossibilidade de revisão das decisões do CONARE pelo Judiciário.
A Constituição da República Federativa do Brasil prevê um sistema complexo de judicialização de direitos e de políticas públicas, dentre as quais se incluem, por certo, a política migratória e a política de atenção aos refugiados. No sistema brasileiro, todas os atos administrativos, em tese, estão sujeitos à revisão pelo Judiciário.
O Judiciário brasileiro, contudo, adota reiteradamente62 o entendimento segundo o qual a concessão de refúgio constitui ato tipicamente ligado às relações internacionais, de competência privativa do Executivo, portanto. Ao atribuir um caráter amplamente discricionário a instituto que não o é, visto que tanto a Convenção de 1951 quanto a Lei 9.474/97 preveem hipóteses nas quais os indivíduos fazem jus ao reconhecimento da condição de refugiado, o Judiciário confere poderes exorbitantes ao Executivo e relegam a segundo plano a natureza protetiva de direitos humanos do refúgio. Por sinal, significante o fato de o precedente mais relevante de revisão pelo Judiciário da concessão de refúgio ter sido para anular refúgio concedido em sede recursal pelo Ministro da Justiça no caso Cesare Battisti63.
A falta de controle pelo Judiciário, por sua vez, não só possibilita a adoção de entendimentos questionáveis pelo CONARE, com a não concessão de refúgio aos haitianos, mas também incentiva o Executivo a tratar a questão dos refugiados sob o enfoque da segurança nacional, e não sob o enfoque da proteção dos direitos humanos, o que vem sendo feito, por exemplo, pela Polícia Federal, que retém indevidamente incontáveis potenciais solicitantes de refúgio na área de segurança internacional do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, sem sequer possibilitar a formalização da solicitação de refúgio, novamente em patente violação à Convenção de 1951 e à Lei 9.474/97.
CONCLUSÃO
O direito internacional dos refugiados, cuja origem remota é o instituto do asilo territorial, desenvolveu-se na primeira metade do século XX, até receber o tratamento atual, dado pela Convenção de Genebra de 1951 e pelo Protocolo de Nova Iorque de 1967.
A regulamentação clássica tinha como destinatários principais os Estados europeus, sendo pouco efetiva para regiões diversas, o que resultou na adoção, em âmbito regional, de documentos que ampliaram o conceito de refugiados, como é o caso da Declaração de Cartagena, que mesmo sem força vinculante, repercutiu na legislação brasileira sobre o tema.
No Brasil, a questão é tratada pela Lei 9.474/97, que adotou definição ampla de refugiados, incluindo, dentre estes, os indivíduos que fugiam de violações generalizadas de direitos humanos em seu Estado de nacionalidade. Apesar disto, ao se deparar com fluxo relevante de solicitantes de refúgio oriundos de país no qual há quadro de violação generalizada de direitos humanos - no caso, o Haiti -, o Brasil optou por ignorar a redação do diploma legal e negar a proteção.
No quadro atual, o desenvolvimento do refúgio no Brasil tem como maior barreira a abordagem que lhe é dada pelo Executivo sob o prisma da segurança nacional, e pelo Judiciário sob o enfoque das relações internacionais, sendo imprescindível o seu reenquadramento como instituto protetivo de direitos humanos que, de fato, é.