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Revista Internacional de Investigación en Ciencias Sociales

On-line version ISSN 2226-4000

Rev. Int. Investig. Cienc. Soc. vol.11 no.2 Asunción Dec. 2015

https://doi.org/10.18004/riics.2015.diciembre.259-272 

 

ANÁLISIS

 

Uma reflexão sobre a participação da mulher na sociedade e a aplicação da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) no contexto da violência

A reflection regarding the woman participation in the society and the Law enforcement nº 11.340/2006 (Maria da Penha Law) in the violence context

 

Raquel Veggi Moreira1, Carlos Henrique Medeiros de Souza2 e Luciano Dias de Souza3

 

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Advogada e Gestora Administrativa. Brasil. E-mail: raquelveggiadv@gmail.com

2 Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem (UENF). Brasil. E-mail: chmsouza@gmail.com

3 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Professor da rede pública/MG. Brasil. E-mail: poesiaeci@gmail.com

Recibido: 04/10/2014; Aceptado: 27/05/2015.

 


Resumo: O trabalho em questão apresenta uma reflexão sobre a história da mulher numa sociedade com fortes marcas do patriarcado. Assim, nossas discussões serão estruturadas em torno da violência contra a mulher, no contexto da aplicação da Lei Maria da Penha. A mulher moderna conquistou espaço importante e de destaque dentro da sociedade, entretanto ainda existem casos onde a violência deixa sua marca revelando o preconceito, existente ao longo dos anos. Em diferentes períodos da história, em diferentes organizações sociais, percebemos que as mulheres não são devidamente reconhecidas, o que aflora o obsoleto preconceito existente. Mesmo depois do advento da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), a violência é ainda um ato praticado pelos homens, na atualidade.

Palavras-chave: Mulher, Lei nº 11.340/06, violência.

 

Abstract: The work in question, presents a reflection on the history of women in a society with strong signs of patriarchy. Thus, our discussions will be structured around violence against women, in the context of the implementation of the Maria da Penha Law. The modern woman won important and noticeable space in society, however there are still cases where violence leaves its mark revealing prejudice, present over the years. In different periods of history, in different social organizations, we realize that women are not properly recognized, which reveals the obsolete existing prejudice. Even after the enactment of Law nº 11.340 / 06 (Maria da Penha Law), violence is still an act practiced by men today.

Keywords: Woman, Law nº 11.340/06, violence.


 

INTRODUCCIÓN

Durante muitos séculos, nossa sociedade e a nossa cultura construíram um discurso ideológico que definiu o comportamento e a identidade das mulheres. Mulheres e homens, ao longo da história da humanidade, desempenharam papéis sociais bem distintos. Essas funções e padrões comportamentais variam conforme diversos fatores, como: classe social, posição na divisão do trabalho, grau de instrução, credo religioso e, também, segundo o sexo. Assim, a relação social entre homens e mulheres pode variar historicamente, de cultura para cultura, conforme convenções elaboradas socialmente.

Desde que a criança nascia, na família tradicional, via-se o pai mandando e a mãe obedecendo. E, como as impressões que recebemos no primeiro ano de vida são indeléveis, pois permanecem não só no inconsciente mais profundo como ficam impressas até no próprio corpo, a criança tende a ‘naturalizá-las’. Assim, desde que nasce ela acha natural que uns mandem e outros obedeçam. E fica para sempre no fundo do inconsciente de homens e mulheres a aceitação de uma sociedade autoritária, coercitiva, desigual e, portanto, injusta (Muraro, 1992, p.193-194).

A diferença entre gêneros e a exaltação masculina, resultou no poder centralizado no papel do homem. Prevaleceu, ao longo dos séculos, uma ideologia de que o homem determinava os modelos de ser e atuar para o sexo feminino, resultando por moldar a identidade feminina como algo não estabelecido por si mesma, mas sendo imposta pelo gênero “superior”, o masculino. Assim, por muito tempo, a sociedade vivenciou esses princípios sociais dos quais as mulheres se submetiam, coercitivamente.

Hermann (2008, p. 61) entende que, no espaço doméstico, as relações patriarcais fomentavam a opressão das mulheres, operando internamente nessa dimensão, mas alcançando todas as demais, com variantes e especificidades intrínsecas a cada sociedade. E, ainda, reforça que:

A Ciência também discriminou a mulher, pelo menos até bem pouco tempo. No século XIX, Gustave Le Bom, um dos fundadores da psicologia social, afirmou que uma mulher inteligente é algo tão raro quanto um gorila de duas cabeças. Charles Darwin, embora reconhecendo algumas qualidades femininas, como a intuição, as definia como virtudes características das raças inferiores. Todavia, é na moral da mulher que a cultura machista concentra mais intensamente a carga de discriminação, gerando desigualdade (Hermann, 2008, p. 27).

Bourdieu (2002) vê na dominação masculina e no modo como é sobreposta e vivenciada, o exemplo por excelência de uma submissão paradoxal. Resultante daquilo que denomina de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível as suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento.

Mas, com o tempo e as mudanças na esfera social, o crescente estilo de vida imposta pelo capitalismo industrial, os níveis demográficos, sociais e econômicos seriam modificados de distintos modos, interferindo decisivamente no paradigma de vida das sociedades. As mulheres contraíram posições de trabalho nas indústrias e nas empresas, assim como uma nova estrutura pública nascia, à medida que novas estruturas das relações na sociedade, assim como relações entre homens e mulheres, passavam a se moldar por modelos europeus, especialmente franceses e ingleses.

Uma grande mudança que afetou a classe operária, e também a maioria de outros setores das sociedades desenvolvidas, foi o papel impressionantemente maior nela desempenhado pelas mulheres casadas. A mudança foi de fato sensacional. Em 1940, as mulheres casadas que viviam com os maridos e trabalhavam por salário somavam menos de 14% do total da população feminina dos EUA. Em 1980, eram mais da metade: a porcentagem quase duplicou entre 1950 e 1970 (Hobsbawn, 2001, p. 304).

Percebendo sua condição posta pela opressão masculina, as mulheres tomam consciência de suas possibilidades e iniciam uma luta para conquista de espaço social e construção da redefinição de sua identidade. A postura feminina seria alterada inicialmente, devido à mudança de papéis e funções sociais das mulheres. Para muitos, o trabalho da mulher fora do universo doméstico, provocaria a destruição da estrutura familiar, uma vez que a mulher estando todos os dias trabalhando fora deixava a casa sem os cuidados necessários, bem como, os filhos não receberiam a educação necessária, todavia as mulheres estavam reivindicando mudanças e não iriam retornar aos antigos papéis sociais. Dentro dessas mudanças, é que surge um movimento manifestado na prática e em diferentes discursos que resultaria na libertação de paradigmas, sobre os quais as mulheres estariam aprisionadas, intitulado como feminismo.

O feminismo organizado ocorre no ano de 1848, em Nova York, Estados Unidos da América. As feministas americanas participavam de uma extensa luta em defesa dos direitos das mulheres à educação, ao trabalho e à participação política, culminando em 1920 na conquista do direito de votar. Ademais, movimentos sociais de massa explicitamente femininos surgiram apenas a partir da década de 60, originários dos movimentos sociais, tanto por seus participantes relativos aos direitos humanos, como por suas revolucionárias tendências a favor da contracultura. Esse arcabouço de organização, não apenas ideológica, como também prática, foi responsável pelas mais significativas mudanças já ocorridas, em benefício da nova formatação da mulher na sociedade, refletindo-se na atuação em diversos setores, entre eles o da economia e da política.

A violência contra a mulher passou a ser, expressamente, denunciada para a sociedade, no início dos anos 80, período que coincidiu com o advento da era democrática na sociedade brasileira. Nesse contexto, Izumino (2004, p. 77) afirma que “este período apresentou como uma de suas características o aumento da participação feminina no setor produtivo, além de intensa participação feminina nos movimentos sociais lutando por melhores condições de vida”.

Nos primórdios do século XIX, as mulheres brasileiras, em sua grande maioria, viviam presas em antigos preconceitos e dentro de uma rígida indigência cultural. Com o aumento de escolaridade entre elas, uma importante mudança de atitude se instalou na sociedade e mais mulheres passaram a participar ativamente nas empresas, na educação e na família, desenvolvendo e revelando suas próprias potencialidades (IBGE, 2010). Nesse sentido, um novo cenário alteraria e, consequentemente, resultaria em novas atitudes frente ao trabalho, à figura masculina, ao sexo, ao casamento e ao divórcio.

As mulheres, a fim de irem além de seus antigos papéis, se deparam com os novos, entram num contexto onde impera a competitividade, sendo assim, obter sucesso implicaria em ousar, desenvolver sua competência, assumir posição de liderança, adquirir poder. Entretanto, essa nova configuração social ainda mantém dados reveladores sobre a ideologia machista da sociedade, onde o preconceito, a diferença e a violência imperam. O poder do patriarcado é velado em forma de dados, revelando-se um número expressivo de diferença de valores entre os salários e posições que ocupam no trabalho e, ainda, o número de agressões e mortes envolvendo mulheres.

Segundo Del Priore (2013), as mulheres do século XXI são feitas de rupturas e permanências. As rupturas impelem-nas para frente e as ajudam a expandir todas as possibilidades, a se fortalecerem e a conquistarem seus devidos espaços. As permanências, por outro lado, apontam fragilidades. Criadas em um mundo patriarcal e machista, não vislumbram se verem senão do foco masculino. Vivem pelo olhar do homem, do “outro”. Desejam o real e o sonho, de mãos dadas. São várias mulheres em uma. Procurar o próprio rosto entre tantos outros é o desafio. Mas, o desafio máximo ainda é mostrar que elas podem ter um só rosto.

A sociedade moderna carrega ainda formas provincianas de preconceito sustentadas pelas diferenças entre homens e mulheres, brancos e negros, além de também tratar com diferenças lésbicas e gays. Estes preconceitos se expressam sob variadas formas de violência, no âmbito social.

Embora as mulheres tenham alcançado direitos, respeito e “reconhecimento”, mesmo tendo um grau de escolaridade mais elevado, ainda ganham menos no mercado de trabalho, gerando uma desigualdade salarial. As que se incumbem, exclusivamente, de atividades domésticas são vistas como se não desenvolvessem nenhuma atividade laboral.

Poucas mulheres ocupam espaços de decisão na sociedade, e o papel de mãe e de dona de casa, são vistos como uma obrigação, como o espaço único reservado para as mulheres.

Aprisionadas nos antigos valores morais societários, sofrem ainda com frequência violência dentro e fora de casa.

A mulher no contexto da violência

A violência doméstica e familiar contra a mulher é um grave e sério problema, no Brasil. Certas mulheres consideram que estão expostas à violência e que, muitas das vezes, são responsabilizadas pelas agressões que sofrem. De forma exemplificativa, quando uma mulher é violentada, sempre aparecem questionamentos como: “Que roupa você vestia? Que horas eram?”. Perguntas que parecem buscar uma justificativa na tentativa de se transferir a culpa para a vítima.

De certa forma, esses questionamentos só aparecem quando as mulheres denunciam. Tendo em vista que o medo, a vergonha, a sensação de submissão, a dependência econômica, a falta de apoio aliado a uma crença de que é natural se submeterem e aceitarem tal situação constrangedora faz com que elas sofram em silêncio. Muitas apresentam sentimento de culpa, porque a sociedade vê a violência e transforma a mulher vítima em culpada. Em contrapartida, o homem que agride uma mulher sempre se esconde em justificativas banais e motivos torpes. Desta forma, se conclui que o homem agride porque é uma forma de impor uma suposta autoridade sobre a mulher, configurando-se na sua atitude machista e com desvio de caráter.

Atualmente, a violência de gênero constitui um grave problema social cosmopolita. Na Espanha, o mais alarmante deste cenário é o aumento, ano a ano, das denúncias de mulheres que sofrem maus tratos por parte de seus parceiros ou ex-parceiros, atitude que ainda não foi observada na maioria das mulheres brasileiras vítimas de agressão. “O relatório anual do Observatório Estatal da violência contra a mulher aponta que o número de denúncias deste tipo entre 2007 e 2010 foi de 538.063.” Estes números assustadores refletem a obrigação de auxílio à mulher vítima de violência bem como o tratamento do homem agressor (Pérez, Giménez-Salinas, y de Juan, 2012).

É, ainda, impressionante o número de mulheres que são vítimas de violência de seus maridos, sofrendo desde a humilhação, assédio moral até a agressão física. A violência por parceiro íntimo contra a mulher constitui afronta aos direitos humanos e é um dos problemas de maior gravidade em nossa sociedade.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) conceitua violência por parceiro íntimo (IPV) como "o comportamento em um relacionamento íntimo que causa dano físico, sexual ou psicológico, incluindo agressão física, coerção sexual, abuso psicológico e comportamentos controladores" (Organização Mundial da Saúde, 2011). Este tipo de violência tornou-se um problema social, na medida em que aflige de uma maneira geral toda a coletividade. Com isso, é grande a preocupação em prevenção e erradicação deste tipo de violência, tornando questão central das políticas sociais e de saúde (Lila, Oliver, Galiana, & Gracia, 2013).

No Brasil, segundo pesquisa de 19/09/2013  do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), estima-se que, entre 2009 e 2011, houve o  registrou 16,9 mil “feminicídios”, ou seja, “mortes de mulheres por conflito de gênero”, notadamente em casos de violência  física por parte dos parceiros íntimos (IPEA, 2009). Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Conforme os dados do documento, o Espírito Santo é o estado brasileiro com a taxa mais alta de “feminicídios”, 11,24 a cada 100 mil, seguido por Bahia (9,08) e Alagoas (8,84). A região com as “piores” taxas é o Nordeste, que apresentou 6,9 casos a cada 100 mil mulheres, no período considerado.

Além dos números e taxas de “feminicídios” nos estados e regiões do Brasil, a pesquisa realizou uma avaliação do impacto da Lei Maria da Penha. Verificou-se que não houve influência capaz de reduzir o número de mortes, pois as taxas permaneceram no mesmo nível, antes e depois da vigência da nova lei.

Com uma interessante proposta, necessário se faz mencionar a Lei Orgânica 1/2004 vigente na Espanha, que entrou em vigor em 29 de junho de 2005. A referida lei adotou medidas de proteção integrada contra a violencia de gênero, possibilitando numerosas decisões que permitem a suspensão ou substituição das penas por programas de reabilitação e tratamento psicológico (Arce y Fariña, 2010). Logicamente, “a intervenção deve ser adaptada ao ambiente penal, em que o programa e as condições são institucionais e judicialmente estabelecidas” (Carbajosa, Boira, & Tomás-Aragonés, 2012, p. 122).

Com relação aos programas de terapia, é fundamental o papel do terapeuta, uma vez que é ele quem define as regras estabelecidas no procedimento, tendo como estratégia a aliança entre rigidez e flexibilidade, possibilitando uma individualização do tratamento do agressor. Além disso, deve-se combinar técnicas que fortaleçam a adesão à proposta de tratamento (Carbajosa et al., 2012).

Entretanto, segundo Daly & Pelowski (2000, citado por Carbajosa, Boira, y Tomás-Aragonés, 2012, p. 122), infelizmente, “a ruptura da aliança terapêutica e o abandono do programa são ocorrências comuns”.

Além disso, “desenvolveram-se nos últimos anos, em matéria de violência de gênero, diferentes enfoques teórico-prático para lidar com a etiologia e tipo de intervenção sobre este problema” (Pérez et al., 2012, p. 6). Um exemplo é o “Programa Contexto”, realizado pela Universidade de Valência, na Espanha (Lila et al., 2013).

O Programa tem como “principal objetivo reduzir os fatores de risco e majorar os fatores de proteção para o comportamento violento contra as mulheres, em relacionamentos íntimos”. Tem, ainda, como alvo principal o risco de reincidência, possibilitando medidas de proteção individual para as vítimas (Lila et al.,  2013, p. 74).

O que se deve ainda enaltecer é que as mulheres que provam da violência sofrem uma série de problemas de saúde, e a sua capacidade de participar da vida púbica diminui. A violência contra as mulheres molestam as famílias e comunidades de todas as gerações e robustecem outros tipos de violência predominantes na sociedade. A forma mais corriqueira de violência conhecida pelas mulheres, em todo o mundo, é a violência física cometida por um parceiro íntimo, em que as elas são “abusadas” de certa forma.

De acordo com o Balanço de 2013 da Central de Atendimento à Mulher – Disque 180, serviço prestado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), assinala que os responsáveis pelas agressões relatadas são, em 81% dos casos, pessoas que têm ou tiveram vínculo afetivo com as vítimas. Foi verificado um declínio no total de ligações em 2013, por falta de uma forte campanha e esgotamento do sistema frente à demanda. Do total de 106.860 encaminhamentos para a rede de atendimento, 62% foram conduzidos ao sistema de segurança e justiça.

A morosidade da justiça e o tipo de tratamento ofertado às vítimas antes da incidência da lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha) foram fatores que contribuíram, demasiadamente, para a falta de atenção para violência privada e a sua consequente descriminalização. A sociedade ainda mantém o pensamento machista, predominando o “controle” do homem sobre a mulher e é, em consequência desta dominação, que as mulheres necessitam de leis e de órgãos especiais que as amparem, já que, constrangidas pelo medo e pela vergonha, não se expõem facilmente perante o Estado e a Justiça.

Apesar dos atos violentos estarem disseminados no cotidiano da sociedade, não se deve admitir que esses problemas permaneçam sendo considerados fenômenos “normais”. O fato de esses acontecimentos estarem carregados de alta carga de afetividade e de seu acontecimento estar presente no “senso comum” da sociedade como algo ligado a tradição das relações entre homens e mulheres, a atuação da justiça às vezes esbarra na conformidade das próprias mulheres que sofrem a violência.

Numa sociedade cercada por contradições, é importante observar que a mulher vem participando ativamente, ocupando até mesmo cargos políticos de destaque, conquistando espaço e colaborando na edificação de um mundo melhor. Mas, falta a população entender que homens e mulheres se complementam na busca de uma sociedade mais justa. De tal modo, a mulher vem comprovando o fato de poder ser feminina, mulher, mãe, assim como o de participar ativamente da sociedade, da economia e política.

A Lei Maria da Penha (Lei Nº 11.340/06) no contexto da violência feminina

O Brasil vivenciou, até a década de 1990, a ideia de que não se deveria fazer qualquer tipo de diferenciação com respeito à violência.  Havia o juízo consolidado de que o arbítrio exercido contra criança, idoso ou contra a mulher, por exemplo, deveria ser tratado da mesma forma como qualquer outro tipo de violência.

No entanto, com o correr dos anos e com a necessidade de se proteger grupos determinados que eram mais afligidos por abusos e descaso, iniciou-se no sistema legalista brasileiro a chamada especialização da violência.

Inicialmente, esse caminho foi percorrido com a edição da lei nº 8.069/90 que protegia crianças e adolescentes da prática de violência e maus tratos.

Em consequência, houve a edição de inúmeras leis tais como a lei nº 8.078/90 que protegia o consumidor contra os abusos comerciais; a lei nº 9.099/95 que particularizou por sua vez a violência de menor potencial ofensivo e a lei nº 9.503/97 que individualizou a violência no trânsito, retirando da seara comum o tratamento a esse tipo de infração.

É necessário salientar que essas especializações denotam a insuficiência do tratamento genérico, sendo necessário o adequado e específico tratamento a determinados tipos de infrações. Diante disso, necessário se faz observar que a lei nº 11.340/06, chamada “Lei Maria da Penha”, é também uma forma deste tipo especialização. Não se trata, ademais, de uma lei essencialmente penal, mas sim multidisciplinar, que converge em seus artigos disposições de natureza civil, processual civil, trabalhista e previdenciária.

A referida lei encontra-se em vigor, desde o dia 22 de setembro de 2006. Em homenagem a uma mulher vítima simbólica da violência doméstica, fez da dor alento para o ativismo, vindo com a missão de proporcionar ferramentas adequadas para encarar um problema que agoniza uma grande parte das mulheres no Brasil e no mundo, que é a violência de gênero.

Maria da Penha Maia foi um marco para a história: mulher guerreira, 60 anos, mãe de três filhas. Em 1983, seu ex-marido, professor universitário, tentou matá-la por duas vezes. Numa vez a tiros e na outra, houve tentativa de eletrocutamento. Hermann (2008, p. 18) diz que “as marcas e sequelas das agressões não atingiram apenas seu espírito. Marcaram-na irreversivelmente na integridade de suas funções vitais: Penha ficou tetraplégica”.

Daí em diante, Penha passou a lutar por uma proteção mais ativa às vítimas de violência doméstica e familiar, representando outras tantas Marias. Sua batalha culminou por resultar na condenação de seu “executor” a oito anos de prisão.

Segundo Dias (2010), até o advento da Lei Maria da Penha, a violência doméstica nunca mereceu a devida atenção, nem da sociedade, nem do legislador e muito menos do judiciário. A ideia sacralizada e a inviolabilidade do domicílio sempre serviram de pretexto para barrar qualquer tentativa de conter o que acontecia entre quatro paredes. Como eram situações que ocorriam no interior do lar, ninguém interferia. Para agravar ainda mais a situação, um grande número de mulheres em cujo pensamento há arraigada a ideia de que elas devem ser submissas ao marido.

Basicamente, a referida lei que protege a mulher vítima de abuso tem como escopo quatro garantias, quais sejam: prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; a criação de Juizados Especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher; estabelecimento de medidas de assistência e o estabelecimento de medidas de proteção.

Não obstante a lei ter revolucionado o tratamento da violência imposta à mulher, o ponto crucial de discussão o seu respeito é exatamente sua suposta inconstitucionalidade. Muito se fala que se prestigia apenas uma parcela da sociedade, deixando o homem vítima de violência à mercê de qualquer tratamento ou acalento por parte do Poder Público.

Discussões calorosas não se findam quando o assunto é a adequação da lei no ordenamento jurídico nacional. Nesta discussão é que emergem as chamadas ações afirmativas.

Sabe-se que a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988) determinou, em passagens de seu texto, a igualdade formal (perante a lei) de homens e mulheres. De acordo com a lei, há de se dar tratamento igualitário a ambos os gêneros, sem qualquer tipo de privilégio. Todavia, o que se vê no plano dos fatos é que o homem é ainda muito prestigiado em detrimento da mulher. É o homem que ocupa, na maioria dos casos, cargos mais importantes no meio social, sendo em consequência, remunerado em patamar superior.

É neste aspecto de se igualar homens e mulheres que se mostra essencial as ações afirmativas, medidas especiais e determinadas com o escopo de trazer para o plano dos fatos a igualdade materializada pela lei, mas que por inúmeros fatores não é concretizada. Garante-se assim a igualdade de oportunidades e tratamento, compensando de algum modo a disparidade que ainda insiste em se fazer presente.

Na página “Notícias STF” do Supremo Tribunal Federal, em 26 de abril de 2012, Joaquim Barbosa define as ações afirmativas quão políticas públicas voltadas à materialização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização das implicações perversas da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. A igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade.

A lei nº 11.430/06 é a corporificação da máxima de tratar os iguais de modo igual, e os desiguais de modo desigual. Ela reconhece, de maneira categórica que, no mundo onde as condições desiguais do cotidiano estabelecem diferenças entre homens e mulheres, há de se ter tratamento díspares entre eles para que se equivalham as vantagens. Neste contexto fático e histórico, é premente a necessidade de ações afirmativas ou discriminações positivas traduzidas em políticas públicas que objetivem concretizar materialmente essa igualdade.

A herança de costumes, onde a mulher ocupava lugar secundário e coadjuvante não pode se manter presente e não há nenhum argumento que a justifique. Em consequência, a lei nº 11.340/06 se mantém firme neste propósito, de ser uma ação afirmativa, com o fim de igualar homens e mulheres.

A lei é ainda deveras importante na medida em que não resguarda apenas a violência física, mas todas as formas da mesma. Não se olvida que a violência física seja uma forma drástica de violação dos direitos femininos, no entanto as violências psicológica, patrimonial e sexual se mostram como uma face nefasta desta mesma prática.

E são todos os tipos de violência abarcados pela lei que fazem dela um marco histórico e uma vitória efusiva de mulheres que, durante anos, foram vítimas de todo o tipo de violação de seus direitos. É notório que a mulher sempre sofreu calada, sem ter como acalento qualquer tipo de proteção por parte Poder Público quando vitimada por maus tratos, abusos e violência.

Sem embargo de todo o avanço traduzido no texto da lei, ainda se mostra notório que a mesma não é absolutamente eficaz. Mulheres vítimas de violência por vezes não querem denunciar o agressor, temendo por sua própria vida ou por vergonha de se expor como lesada. Como bem diz Hermann (2008):

Apesar da tônica repressivo-penal privilegiada, a lei não estimulou o aporte de mulheres agredidas ao sistema de segurança pública: Segundo pesquisa de campo, somente 40% das mulheres que admitem ter sofrido algum tipo de violência doméstica registram ocorrência nas delegacias de polícia, mesmo depois da vigência da Lei Maria da Penha (Hermann, 2008, p. 78).

O preconceito ainda enraizado na sociedade e a falta de condições sociais se tornam grandes empecilhos para que a efetivação da lei seja completa, densa e precisa. A lei com suas palavras fossilizadas não traz benefícios a ninguém. Infelizmente, é isto que tem ocorrido no cotidiano familiar da mulher agredida.

O que se demonstra precioso e essencial, neste contexto, é o agrupamento de ideias, ações e objetivos, com o fito de trazer para a realidade a conjuntura textual ainda não efetivada. Esta é o grande desafio que a lei nº 11.340/06 passa todos os dias, todas as vezes que uma mulher é agredida.

A edição de leis visando combater esse tipo de violência foi um passo de suma importância dado pelo Poder Público. Todavia, é imperativo que se confira a carecida efetividade a esses preceitos vigorantes, de forma que os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal sejam verdadeiramente cobertos e venerados com relação às mulheres.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que a Lei Maria da Penha simboliza um expressivo triunfo para a sociedade, assim como um evidente progresso na ordem jurídica, tendo em vista que altera o retorno que o Estado dá a violência doméstica e familiar, dispondo-se como um grande êxito para todas as mulheres. É uma lei importante, ampla, que é contra qualquer tipo de violência contra a mulher, além de romper com protótipos tradicionais do Direito.

A lei nº 11.340 consiste, ainda, em um instrumento de grande importância no enfrentamento à violência doméstica e familiar, representando progressos com relação ao tratamento dispensado às mulheres, sendo que o mais expressivo foi à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM). O povo brasileiro a reconhece como uma ferramenta de grande utilidade no sentido de se defrontar a violência, entretanto depende-se de investimentos e recursos para que os direitos materializados pela lei sejam trazidos para o plano fático.

A dificuldade em se precisar informações e quantificar a violência doméstica contra a mulher desponta o aspecto diferenciado deste fenômeno que não se expressa em números, uma vez que o medo, a vergonha e a proteção da família inibem a sua exteriorização e, portanto, o seu conhecimento. Não obstante, evidencia-se pelo rompimento dos valores e papéis impostos aos homens e mulheres pela sociedade, o que demonstra o seu caráter diferenciado, quando analisado perante as outras violências institucionais.

Os movimentos feministas saem às ruas para denunciar a violência e, também, propõem políticas para os governos. Sem esta luta, a situação estaria ainda pior. Para as mulheres saírem da situação de violência, necessitam de apoio para construir autonomia e resgatar seu amor próprio.

É preciso mais políticas públicas e divulgação das leis que defendem as mulheres, esclarecimentos de seus direitos e, acima tudo, mudança de ideologia por parte de uma parcela população que, ainda, perpetua o preconceito.

Exigir campanhas e cursos para os profissionais de segurança que estão diretamente ligados às ações e crimes contra as mulheres. Ter nas escolas e universidades uma educação que combata o obsoleto preconceito contra a mulher, o racismo e a homofobia na tentativa de se construir um mundo onde a diferença e a diversidade sejam respeitadas.

 

REFERÊNCIAS

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