1. INTRODUÇÃO
O presente artigo visa debater de forma analítica como a possível entrada em vigor das Regras de Rotterdam (a qual ainda aguarda o número suficiente de ratificações) poderia afetar o comércio internacional marítimo dos países membros do MERCOSUL, que apesar de não assinarem a convenção até a presente data, poderiam sofrer com a aplicação das regras diante do conflito internacional de direito.
A necessidade da criação de convenções internacionais para regular o transporte de mercadoria marítima iniciou-se com expansão do uso de containers para o transporte de mercadoria, o que trouxe significativas mudanças na forma como o comércio internacional de mercadorias era realizado, possibilitando que a carga permanecesse em um único local durante todo o transporte e, consequentemente, facilitando o transporte de mercadorias por mais de um segmento.
Com a utilização dos containers, os contratos passaram a regular o transporte “porta-a-porta” da mercadoria, possibilitado a assinatura de um só contrato que englobasse mais de um tipo de transporte, o denominado transporte multimodal de mercadoria.
Entretanto, apesar da crescente globalização dos transporte de mercadoria pelo mar, a legislação internacional não acompanhou a evolução dos contratos e até a presente data não existe em vigor nenhuma convenção internacional para regular o transporte multimodal a nível global.
Além disto, observou-se que as convenções internacionais de transporte marítimo de mercadoria encontravam-se defasadas, motivo pelo qual em 2008 a Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional adotou a nova Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Transporte de Mercadoria Todo ou em Parte pelo Mar, ou Regra Rotterdam (RR), a qual não se encontra em vigor, pois aguarda o número de ratificações necessárias.
Assim, no primeiro capítulo serão analisadas as principais modificações trazidas pela RR principalmente no que tange a ampliação do escopo de aplicação a todos os tipos de contrato de transporte de mercadoria e a majoração do limite de responsabilidade do transportador por danos causados à carga e por atraso na entrega da mercadoria.
No segundo capítulo será demonstrado como as alterações trazidas pelas RR diferem em alguns aspectos da responsabilidade civil do transportador previstas nas legislações nacionais dos países membros do MERCOSUL, seja na impossibilidade de incluir cláusula limitativa de responsabilidade do transportador, seja no valor definido como limite de responsabilidade.
A possibilidade de aplicação de dois ou mais sistemas jurídicos distintos para regulamentar a obrigação e a incerteza jurídica quanto à norma prevista para o caso concreto será analisada no terceiro capítulo, focando na solução da controvérsia através das regras e princípios do Direito Internacional Privado e nos elementos de conexão estabelecidos na legislação de cada Estado.
Constatando-se a possibilidade de aplicar as RR aos países membros do MERCOSUL, mesmo que não signatários da Convenção das Nações Unidas, conclui-se com os impactos positivos e negativos que as alterações propostas para o regime de responsabilidade civil do transportador podem trazer ao comércio marítimo internacional de mercadorias realizado pelos países sul-americanos.
2. AS REGRAS DE ROTTERDAM (RR)
A expansão do uso de containers para o transporte de mercadoria nas últimas três décadas trouxe significativas mudanças na forma como a exportação/importação de mercadorias era realizada, criando uma padronização do comércio internacional e solucionando muitas das dificuldades técnicas existentes até então, como a constante necessidade de que a mercadoria fosse transferida, carregada/descarregada e realocada diversas vezes1.
De fato, a utilização dos containers, além de baratear o transporte de mercadoria pela via marítima, é considerada uma importante ferramenta para a globalização atual do comércio internacional. Antes da padronização do transporte de mercadoria através dos containers, era necessário realizar contratos segmentados para cada diferente etapa do transporte e, desta forma, cada etapa da viagem era regida por uma legislação própria2.
O uso dos containers possibilitou que a mercadoria permanecesse em um único local durante todo o percurso da viagem, ainda que utilizando diferentes formas de transporte, gerando uma nova modalidade de contrato denominado “porta-a-porta”, no qual um único contrato de transporte engloba mais de um tipo de segmento3.
Apesar da crescente utilização desta nova modalidade de transporte4 o Direito Comercial Internacional falhou ao acompanhar a evolução dos contratos inexistindo, até o momento, uma legislação universal em vigor capaz de regulamentar a situação fática atual5.
A falta de um acordo global regulamentando o transportador multimodal gerou a criação de legislações regionais, sub-regionais e nacionais por parte de alguns Estados para estabelecer a responsabilidade do transportador multimodal de mercadoria, como é o caso do “Acordo de Alcance Parcial para a Facilitação do Transporte Multimodal de Mercadorias”6 firmado entre Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai e o “Acordo sobre Transporte Multimodal Internacional” firmado em 1996 pelos membros da ALADI.
Entretanto, a ausência de uma convenção supranacional regulamentando questões como a responsabilidade do transportador, período para ajuizamento de ação e o limite de responsabilidade, trazem insegurança e incerteza quanto ao regime aplicável, elevando os custos com demandas judicias e apólices de seguros7.
A necessidade da criação de uma convenção internacional para regular o tema gerou um ciclo de debate na Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (UNCITRAL) visando à criação de uma nova convenção de transporte marítimo, que também englobasse a responsabilidade do transportador por danos causados à mercadoria durante outra etapa do transporte8.
Assim, em 11 de dezembro de 2008 foi adotada a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Transporte de Mercadoria Todo ou em Parte pelo Mar, ou Regra Rotterdam (RR), o qual tem como objetivo de substituir das Regras de Haia (Hague Rules), as Regras de Haia-Visby (Hague-Visby Rules) e a Regra de Hamburgo (Hamburg Rules), trazendo poucas alterações no regime de responsabilidade previsto nas legislações anteriores, porém ampliando seu escopo de aplicação a todos os tipos de contrato de transporte de mercadoria desde que incluam ao menos uma etapa de transporte marítimo9.
Apesar de ainda não contar com o número de ratificações necessárias para entrar em vigor10, a RR já vem gerando debates sobre o seu impacto no comércio internacional de mercadorias marítimo.
Primeiramente é importante destacar que a RR somente é aplicado aos contratos de transporte marítimo de mercadoria, ou seja, àqueles em que o transportador assume a obrigação de entregar a mercadoria no destino utilizando-se ao menos uma das etapas pela via marítima11, ainda que se trate de contrato multimodal, ou seja, ainda que a obrigação “porta a porta” inclua outras modalidades de transporte como o ferroviário ou rodoviário.
O artigo 6º da RR é categórico ao excluir do seu escopo de aplicação os contratos de afretamento ( charter-party) e todos os outros contratos marítimos para utilização do navio todo ou em parte, desde que o contrato em questão não seja de transporte de mercadoria.
Os contratos de transporte de mercadoria não se confundem com os contratos de afretamento do navio por enquanto estes estabelecem uma obrigação de vontade para o transporte de determinada mercadoria que fora confiada ao transportador, aqueles se caracterizam por ser um contrato de exploração do navio, no qual o fretador cede ao afretador o uso e gozo da embarcação mediante pagamento de contraprestação pecuniária, seja para uma viagem específica, por certo período de tempo ou a casco nu12.
A RR prevê um escopo de aplicação mais abrangente do que as demais convenções de transporte marítimo e seu artigo 5º determina a sua aplicação aos contratos de transporte quando o remetente e o destinatário encontram-se em Estados distintos e o porto de carga e o porto de descarga do mesmo transporte marítimo encontram-se em diferentes países se, de acordo com o contrato de transporte, qualquer um dos seguintes locais estiver localizados no Estado contratante, sendo eles: (a) o local de destino; (b) o porto de carregamento; (c) o local de entrega ou; (d) o porto de descarregamento.
Ademais, pode-se dizer que a principal alteração quanto ao escopo de aplicação do acordo refere-se à regulamentação de todo o contrato de transporte, sempre que houver uma etapa marítima, mesmo com a utilização de outros meios de transporte como o rodoviário, ferroviário e navegação por rios13.
E apesar da convenção possibilitar a aplicação quando há contrato de transporte multimodal, não se pode classificar a convenção como multimodal, já que a RR não é aplicável quando não houver uma etapa marítima no transporte realizado14.
Outras importantes alterações trazidas pela RR dizem respeito ao regime de responsabilidade do transportador por danos causados à carga, tornando mais claras algumas questões quando comparadas aos regimes previstos na HVR e na Regra de Hamburgo, principalmente no que tange ao ônus da prova e a base de responsabilidade do transportador15.
OregimederesponsabilidadeprevistonaRRéoderesponsabilidade objetiva do transportador, ou seja, não há necessidade de demonstrar a culpa (do) no caso concreto para que haja o dever de indenizar, já que esta é presumida e a responsabilidade somente é afastada quando demonstrada as hipóteses de excludentes de responsabilidade16.
Corroborando com o regime de responsabilidade objetiva do transportador, o artigo 17 da RR estabelece que o transportador é responsável por perdas ou danos causados à mercadoria, assim como atraso na entrega, desde que o demandante comprove que a perda, dano ou atraso ocorreu durante o período de responsabilidade do carregador. Já o capítulo 4º estabelece que a responsabilidade do transportador se inicia no momento em que os bens são entregues para serem transportados e terminam no momento em que são entregues no destino final17, permitindo as partes de acordarem livremente qualquer disposição em contrário18.
Logo, para que exista o dever de indenizar basta a parte interessada demonstrar qualquer discrepância entre a mercadoria que fora entregue ao transportador na origem e a mercadoria que fora recebida no destino final, inexistindo a obrigação de demonstrar a culpa do transportador nos danos causados19.
Comprovado o dano ou perda de mercadoria, deve o transportador indenizar a parte interessada nos moldes do artigo 22 da RR, o qual prevê a compensação calculada de acordo com o valor do bem estimado no local de entrega.
Ademais, a RR dispões ainda sobre o limite de responsabilidade do transportador, propondo o aumento do limite imposto nas convenções marítimas anteriores para o valor de 3 SDR/kg ou 875 SDR por pacote, o que for mais valioso, permitindo ainda que as partes convencione limite superior ao estabelecido na convenção, sendo nula qualquer estipulação para limite inferior20.
Estabelecido o sistema de responsabilidade civil do transportador marítimo na nova RR, passamos agora a analisar o atual sistema empregado pelos países membros do MERCOSUL, estabelecendo comparativamente as principais diferenças entre os regimes.
3. O REGIME DE RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR MARÍTIMO ADOTADO PELOS PAÍSES MEMBROS DO MERCOSUL E AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS QUANTO AO REGIME PROPOSTO PELAS REGRAS DE ROTTERDAM
Para compreender como as alterações apresentadas no capítulo anterior podem influenciar o comércio marítimo internacional de mercadorias dos países membros do MERCOSUL, faz-se necessário, inicialmente, estabelecer o atual sistema de regime de responsabilidade em cada um dos Estados.
E para compreender a responsabilidade do transportador marítimo, é importante estabelecer o conceito de contrato de transporte, o qual pode ser definido pelo artigo 730 do Código Civil Brasileiro21 como sendo aquele no qual “(...) alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”.
Referente ao transporte de coisas, a legislação brasileira prossegue afirmado que, além de assumir a obrigação de transportar o bem de um local ao outro, o transportador assume como dever acessório a obrigação de entregar o bem no seu destino em bom estado e no prazo ajustado22.
As doutrinas Uruguaia23, Argentina24 e Paraguaia25 também se utilizam de conceitos similares para definir os contratos de transporte, definindo-os como os contratos onde uma pessoa (transportador) assume a obrigação de transportar a mercadoria de outrem (vendedor) a um local determinado, assumindo como obrigação intermediária o dever de receber, carregar, embarcar, cuidar, desembarcar e descarregar a carga no destino.
É possível observar, nos conceitos acima estabelecidos, que a obrigação do transportador não se resume em tão somente entregar a mercadoria no destino indicado, abrangendo também a obrigação acessória ou intermediária de entregar o bem no mesmo estado em que lhe fora confiado26 no prazo acertado pelas partes sendo, portanto, uma obrigação de resultado.
O contrato de resultado ou contrato de fim pode ser conceituado como aquele no qual a obrigação se vincula ao resultado positivo propriamente dito, sem o qual não se considera cumprida a obrigação, ou seja, a obrigação do transportador é resolvida no momento em que os bens são entregues nas mesmas condições que lhe foram confiados, no prazo estabelecido entre as partes27.
A regra geral estabelece que o risco é transferido juntamente com a posse do bem, independente de quem as entrega ou a quem o bem é destinado28, de modo que a legislação Brasileira29, Argentina30, Uruguaia31 e Paraguaia32 acompanhando a regra geral, são unânimes ao afirmar que é responsabilidade do transportador se inicia no momento em que a mercadoria é depositada em sua custódia, findando no momento em que a carga é entregue no destino final, à pessoa indicada, no prazo estabelecido.
A responsabilidade civil, neste caso, seguindo as principais legislações internacionais sobre o assunto, assim como a RR, é contratual ou objetiva inexistindo, portanto, a necessidade de demonstrar a culpa do transportador no caso concreto para que se configure o dever de indenizar33.
Para que ocorra o dever de indenizar na responsabilidade contratual, é imperiosa a existência de um contrato válido entre o devedor e o credor, e a demonstração da inexecução do contrato, no todo ou em parte, configurados pelo inadimplemento ou mora34.
Importante explicar que atualmente o contrato de transporte marítimo de mercadoria é documentado através do conhecimento de embarque (bill of lading) -o principal documento do transporte marítimo de mercadoria- servindo, também, como prova de recebimento pelo transportador, do estado em que a carga se encontra, de propriedade do bem e a quem a mercadoria deve ser entregue no destino35.
Além de documentar informações importantes sobre a mercadoria transportada, o verso do conhecimento de embarque é marcado por uma série de cláusulas estabelecendo a responsabilidade do transportador marítimo como, por exemplo, o regime de responsabilidade, limite de indenização, prazo para ajuizamento de ação judicial, foro competente e a legislação aplicável36.
Logo, é de suma importância à observância às cláusulas contidas no conhecimento de embarque, assim como o adequado preenchimento das informações necessárias para identificar a carga, a fim de evitar a inexecução contratual e o consequente dever de indenizar.
Não obstante, em algumas situações o valor da mercadoria consignado pelas partes no conhecimento de embarque é aquele que vai estabelecer o limite de responsabilidade do transportador em caso de perda ou avaria na mercadoria, já que a responsabilidade do transportador é limitada ao valor constante no conhecimento de embarque37.
A ausência de informação quanto ao valor do bem gera a incerteza quanto ao limite de responsabilidade do transportador e, consequentemente, a possibilidade de estabelecer limitação para a indenização considerando o peso da carga e a quantidade de pacotes, observando-se a legislação aplicável em cada país.
Dentre os países do MERCOSUL, somente a Argentina ratificou as Regras de Haia, de modo que as cláusulas ali contidas, principalmente quanto à limitação da responsabilidade transportador, serão aplicadas aos contratos firmados por cidadãos argentinos38.
Neste sentido, o artigo 4 (5) das Regras de Haia39 também estabelece a limitação da responsabilidade de acordo com o peso ou número de pacotes, definindo 100 libras por pacote ou unidade, ou o equivalente em outra moeda, exceto quando o valor dos bens for informado no conhecimento de embarque.
Ademais, o supracitado artigo prossegue afirmando que as partes podem estabelecer livremente o valor do limite de responsabilidade do transportador, desde que o valor acordado entre as partes não seja inferior ao valor estabelecido na convenção40, de modo que as partes podem ajustar livremente o limite de responsabilidade com base na disposição contida na RR.
Já o Paraguai incorporou as Regras de Hamburgo à sua legislação interna41, estabelecendo, no artigo 6º da Lei 2614/2005, o limite de responsabilidade para o transportador na importância de 835 unidade de conta por container ou pacote, ou ainda 2,5 unidade de conta por quilo do peso bruto da mercadoria perdida ou danificada.
Observa-se, portanto, que o Paraguai e a Argentina já se utilizam do instituto de limitação de responsabilidade similar ao previsto na RR, alterando-se somente o valor correspondente à limitação, já que a legislação destes países sul-americanos prevê um valor inferior ao estabelecido na RR.
Em contrapartida, a legislação uruguaia42 e brasileira43 não estabelece nenhum limite de responsabilidade e não aceitam cláusulas de limitação de responsabilidade, estabelecendo a indenização de acordo com a extensão do dano sofrido.
Há, portanto, uma divergência quanto à legislação interna e as principais convenções internacionais de transporte marítimo de mercadoria, inclusive às regras de limitação contidas na RR, já que a legislação nacional destes países determina a reparação integral do dano sofrido44, sendo considerada nula qualquer cláusula limitativa do direito do trasportador45.
Desta forma, a entrada em vigor da RR afetaria diretamente o limite de responsabilidade do transportador em todos os países membros do MERCOSUL, seja para aumentar o limite de responsabilidade estabelecido, seja para impor o limite de responsabilidade onde não há previsão legal.
4. A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DAS REGRAS DE ROTTERDAM AOS CONTRATOS FIRMADOS PELOS MEMBROS DO MERCOSUL QUE NÃO ADERIRAM AO ACORDO
Conforme explanado no capítulo anterior, dos países membros do MERCOSUL apenas a Argentina é signatária de convenção internacional de comércio marítimo, sendo que nenhum dos Estados membros do bloco econômico manifestou seu interesse em aderir às RR46.
Ademais, apenas a Argentina e o Paraguai permitem o limite de responsabilidade do transportador, enquanto o Brasil e o Uruguai vedam qualquer consideração neste sentido, considerando nula qualquer disposição que limite ou exonerem o transportador do pagamento de indenização47.
Então questionamos acerca da possibilidade de aplicação da RR e, consequentemente, a possibilidade de estabelecer o limite de responsabilidade do transportador em contratos celebrados por países que não aderiram à convenção.
Primeiramente é importante registrar o debate existente em diversas doutrinas acerca da relação estabelecida entre o direito interno de cada país e o direito internacional, existindo duas teorias para identificar a possibilidade ou não de aplicar tratados internacionais a Estados não signatários: a teoria dualista ou monista48.
A teoria dualista entende que os ordenamentos internos e externos pertencem a ordenamentos jurídicos distintos e a legislação internacional somente pode ser aplicada em território nacional quando incorporado por lei49.
Em contrapartida, a teoria monista, estabelece que existe apenas um único sistema jurídico, inexistindo separação entre o direito estrangeiro e o direito interno, havendo divergência quanto a prevalência do direito interno -defendido por Hegel- ou a prevalência do direito internacional em detrimento ao direito interno - defendida por Kelsen50.
A jurisprudência internacional reconhece a aplicabilidade da legislação internacional sobre o direito nacional, sendo declarado pela Corte Permanente de Justiça Internacional em 193051 e posteriormente confirmado no artigo 27 da Convenção de Viena, que assim estabelece: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
Entretanto, o conflito de legislação somente é decidido quando apreciado pelos juristas, utilizando-se das regras gerais de competência estabelecidas pelos Estados e pelas convenções internacionais, conforme explica o ilustre doutrinador Dolinger52:
Diante de uma situação jurídica conexa com duas ou mais legislações, que contêm normas diversas, conflitantes, estabelece-se a dúvida sobre qual das legislações deva ser aplicada. Não cabe solucionar o conflito das normas materiais internas; a missão do internacionalista se restringe a indicar qual sistema jurídico deve ser aplicado dentre as várias legislações conectadas com a hipótese jurídica.
E cabendo ao internacionalista indicar qual o sistema jurídico aplicável, existe a possibilidade de aplicação da RR quando o contrato de transporte marítimo estiver enquadrado em uma das hipóteses do escopo de aplicação listado no artigo 5º da convenção.
Afinal, os contratos de transporte de mercadorias marítimos tratados neste trabalho e abrangidos pela RR são contratos internacionais de transporte53, ou seja, são acordos de vontade os quais, via de regra, estão sujeitos a dois ou mais ordenamentos jurídicos distintos.
Logo, quando o contrato não estabelecer expressamente a legislação aplicável, faz-se necessário observar os elementos de conexão ou elemento de estraneidade com base nas fontes do Direito Internacional Privado para estabelecer a lei aplicável ao caso prático e o juízo competente para dirimir a demanda, o que pode variar de acordo com a legislação de cada Estado54.
Entretanto, estabelecer a legislação aplicável utilizando-se os elementos de conexão é subjetivo, o que pode gerar incerteza diante da possibilidade de aplicação de dois ou mais sistemas jurídicos distintos55.
Neste sentido, observa-se que o artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro estabelece a aplicação da lei de onde a obrigação foi constituída e, se tratando de negócio jurídico entre ausentes, a legislação para qualificar e reger a obrigação será a do Estado onde o proponente possui residência56.
Já a legislação uruguaia prevê que as questões relativas às relações comerciais internacionais, que não resultem de convenções internacionais, de lei especial ou da legislação nacional de direito internacional privado, são resolvidas através das outras fontes de direito comercial internacional, mediante a aplicação dos procedimentos de integração57.
O novo Código Civil argentino de 201658 estabelece que o contrato é, em regra, regido pela lei do país onde a obrigação deve ser cumprida.
Por fim, a legislação paraguaia59 institui um critério altamente subjetivo para definir a lei aplicável, estabelecendo que, na ausência de eleição expressa do direito aplicável, o contrato será regido pela lei com o qual o contrato tenha vínculo mais estreito, devendo o tribunal considerar todos os elementos objetivos e subjetivos do contrato.
Logo, plenamente possível à aplicação da RR em contratos celebrados por: (i) brasileiros quando a proposta for encaminhada por um país signatário da convenção; (ii) uruguaios, já que a legislação estabelece expressamente a aplicabilidade de convenções internacionais para resolver questões relativas às relações comerciais; (iii) argentinos quando a obrigação for cumprida num país signatário da RR e; (iv) por paraguaios se consideramos o vínculo marítimo da relação quando o contrato for celebrado por país signatário da RR.
Ademais, como já demonstrado, as RR60 serão aplicadas aos contratos sempre que qualquer um dos seguintes locais estiver localizados no Estado contratante, sendo eles: (a) o local de destino;
(b) o porto de carregamento; (c) o local de entrega ou; (d) o porto de descarregamento.
Sendo assim, ainda que o contrato fosse celebrado em território brasileiro, estabelecendo o transporte de mercadoria para a Espanha, por exemplo, haveria o conflito quanto à legislação aplicável, possibilitando a aplicação tanto da legislação brasileira, quanto da RR.
Isto porque a LICC estabelece a aplicação da lei de onde o contrato foi celebrado61, enquanto a RR estabelece a aplicação da convenção quando o porto de destino estiver situado em um país signatário62, possibilitando situações onde mais de uma lei é aplicável.
A questão, então, deve ser resolvida através das outras fontes do Direito Internacional Privado, possibilitando que o internacionalista decida, por exemplo, através da regra do Regulamento 593 de 17 de junho de 2008 (Roma I), onde se observa a aplicação da lei onde o transportador tenha sua residência habitual, desde que o local de recebimento ou entrega se situem no mesmo país. Caso contrário, é aplicada a lei do local da entrega da mercadoria63.
Ademais, que o artigo 2º do regulamento estabelece que “a lei designada pelo presente regulamento é aplicável mesmo que não seja a lei de um Estado-Membro”.
Logo, conforme observamos acima, inúmeras são as possibilidades de aplicação da RR para regulamentar os contratos de transporte firmados pelos países membros do MERCOSUL, considerando o escopo de aplicação da convenção, os elementos de conexão estipulados nas legislações nacionais e a subjetividade com a qual os tribunais devem decidir.
CONCLUSÃO
As RR foram propostas para atualizar as convenções internacionais de direito marítimo, considerando o avanço nas relações contratuais das últimas décadas em detrimento a falta de uma convenção global capaz de regulamentar as novas relações jurídicas criadas entre os entes do comércio internacional.
Dentre as principais alterações trazidas, observam-se a sua aplicação para contratos multimodais, quando um dos segmentos da viagem for realizado pelo mar, além da majoração do limite de responsabilidade do transportador.
Apesar das alterações propostas, observa-se que muitos dos elementos de responsabilidade civil previstos na convenção são similares ao regime de responsabilidade previsto nas legislações nacionais dos países do MERCOSUL como, por exemplo, a obrigação de resultado do contrato de transporte de mercadoria e o período de responsabilidade do transportador64.
Em contrapartida, verificou-se que o limite de responsabilidade adotado na convenção é rechaçado por alguns dos países membros do MERCOSUL - como é o caso do Uruguai e do Brasil65.
E apesar dos países membros do MERCOSUL não manifestarem seu interesse em aderir as RR, ainda assim seria possível a sua aplicação aos contratos de transporte marítimo considerando as regras do Direito Internacional Privado e os elementos de conexão previstos em cada legislação nacional, tornando incerto o sistema jurídico aplicável66.
Entretanto, não se pode afirmar com precisão se as alterações trariam benefícios ou malefícios ao comércio internacional marítimo do MERCOSUL, já que estudos favoráveis afirmam que o limite de responsabilidade tem o condão de reduzir o valor do frete e do seguro marítimo, possibilitando ao carregador estipular previamente o seu risco evitando, assim, a falência de empresas transportadoras que não conseguiriam pagar volutuosos valores de indenização67.
Em contrapartida, estudos desfavoráveis apontam que o limite de responsabilidade estabelecido nas convenções internacionais ainda é considerado defasado em comparação ao real preço da mercadoria68 e que a restituição do dano sofrido deve ser integral, incluindo-se tanto danos patrimoniais quanto extrapatrimoniais, já que a vítima não pode ser penalizada pelo seu prejuízo sofrido69.
A adesão à nova Regra é inclusive tratado com cautela por outros países fora do bloco econômico notoriamente conhecidos como transportadores marítimos, já que as mudanças trazidas não são atrativas a este seguimento, e onde se verifica existir um lobby para a criação de uma alternativa que atenda aos seus interesses70.
Neste ínterim, deve-se considerar que a aplicação do limite de responsabilidade pode trazer consequências negativas e positivas ao comércio internacional de mercadoria marítimo realizado pelos membros do MERCOSUL, sendo necessária a realização de estudos mais elaborados a fim de identificar as vantagens e desvantagens da aplicação prática da convenção.
Ademais, a liberdade de contratação deve ser preservada - desde que haja uma bilateralidade de consentimento, posição de igualdade, ausência de dolo ou tentativa de afastar a função do contrato-possibilitando aos contratantes estabelecerem livremente cláusulas limitativas de responsabilidade, visando a redução dos custos com o transporte internacional de mercadoria marítimo71.
Por fim, considerando a possibilidade de aplicação da RR mesmo a contratos firmados por países não signatários, pode ser mais interessante aos países membros do MERCOSUL aderirem ao limite de responsabilidade previsto, como forma de evitar conflitos de leis e a propositura de demandas para solucionar a incerteza quanto à legislação aplicável, trazendo maior segurança jurídica aos contratos de transporte.