Introdução
O presente artigo apresenta dados arqueológicos e arqueométricos desenvolvidos no âmbito do Projeto Quebra Anzol nas duas últimas décadas. Esse projeto, coordenado por Márcia Angelina Alves e colaboradores do Museu de Arqueologia e Etnologia (USP), Museu Nacional (UFRJ) e Museu do Índio (UFU), desde 1980, no Vale do Paranaíba, Triângulo Mineiro (Extremo Oeste de Minas Gerais), região mesopotâmica formada pelos rios Paranaíba e Grande1, no bioma do Cerrado, com a realização de pesquisas empíricas de campo, prospecções e centrado em escavações de sítios a céu aberto.
Em quatro décadas de pesquisas detectaram-se e escavaram-se sítios de diferentes sistemas socioculturais, constituídos por: populações caçadoras-coletoras do Holoceno Médio (7300 anos AP) ao início da Era Cristã (1940 anos AP); assentamentos ceramistas do povo Kayapó meridional, pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, do período pré-Colonial (a partir de 1830 anos AP a 400 anos AP) e do período Colonial (de 353 anos AP a 150 anos AP) (Tabela Nº1).
Os principais objetivos do Projeto Quebra Anzol referem-se ao estudo da dinâmica sociocultural da cultura material (lítica e cerâmica) e à elaboração da história de longa duração (Braudel, 1978) das populações pregressas que ocuparam o Vale do Paranaíba (Alves, 1982, 1988, 2009; De Barros, 2018; Denardo, 2018; Fagundes, 2004; Figueiredo, 2008; Magalhães, 2015, 2019; Medeiros, 2007; Moreira, 2019).
Neste artigo o problema abordado corresponde à identificação da tecnologia no preparo da pasta cerâmica, a partir dos elementos naturais e culturais não-plásticos, presentes nas pastas cerâmicas de cinco sítios arqueológicos, Rezende, Zona 1, Inhazinha, Zonas 1 e 2, Prado, Menezes e Antinha, relacionados às escolhas das ceramistas2, e se ocorreram rupturas técnicas na confecção da pasta já que, com os processos de Contato e Colonização a partir do século XVIII na região do Vale do Paranaíba, cerâmicas dos sítios Inhazinha, Zona 2, e Antinha, apresentaram inovações nas técnicas de decoração, como incisões (Magalhães, 2015, 2019) (Figura Nº10), carimbos (Moreira, 2019) (Figura Nº11), apliques (Magalhães, 2015, 2019) e pinturas monocromáticas na cor vermelha (Moreira, 2019), e novas morfologias nos vasilhames cerâmicos, como a introdução de bases planas (Magalhães, 2015, 2019; Moreira, 2019) (Figuras Nº10 e Nº11), vasilhames com bases planas e pescoço constrito (Figura Nº11), e a confecção de cachimbos (Moreira, 2019).
O método empregado para a análise das pastas cerâmicas é o de microscopia petrográfica de luz transmitida através da técnica de confecção de seções delgadas de cerâmica arqueológica, denominadas de “lâminas microscópicas de cerâmica” (Alves, 1982, 1988; Alves & Girardi, 1989) ou “lâminas ceramográficas” (Alves, 2009; Magalhães, 2015; Moreira, 2019).
A técnica de microscopia de luz transmitida permite a identificação e descrição dos elementos não-plásticos, orgânicos e não orgânicos, presentes na cerâmica arqueológica por meio da descrição e da análise da composição granulométrica e mineralógica da pasta argilosa, assim como a descrição por percentual dos minerais presentes na massa cerâmica (relação textural) (Alves, 1988, 2009).
Os objetivos centrais que orientaram e orientam o emprego desta técnica no âmbito do Projeto Quebra Anzol são:
a detecção dos elementos não-plásticos contidos nas pastas cerâmicas (Rice, 1987; Shepard, 1976);
a identificação da presença ou ausência de tempero (chamota3, ossos, conchas trituradas, folhas de plantas, cariapé, cauixi) nas pastas cerâmicas;
a compreensão das escolhas feitas pela(s) ceramista(s) de acrescentar areia (fina, média ou grossa) à argila para a confecção dos vasilhames.
A utilização das lâminas ceramográficas permite responder às seguintes questões:
A composição mineralógica e granulométrica pode indicar tradições e fases ceramistas (Alves, 1982, 1988, 2009)?
Os minerais presentes na pasta cerâmica são elementos indicativos de índices de temperatura de queima e de resistência mecânica (Alves, 1988, 1997; Leite, 1986)?
A composição mineralógica e granulométrica permite detectar os minerais corantes existentes na cerâmica (Alves, 1988; Moreira, 2019)?
Os dados interpretados das lâminas microscópicas associadas às análises sedimentológicas coletadas nas fontes argilosas próximas aos sítios podem indicar as áreas de captação do barro (Alves, 2009; Alves; Goulart, Andrade, 2013; Magalhães, 2015, 2019)?
Outra questão relevante é sobre a queima da cerâmica preta: as ceramistas conseguem controlar os índices de temperatura de queima associados ao aumento ou redução da quantidade de oxigênio presente no processo de queima da cerâmica (Delforge, 2017)?
As questões acima elencadas podem ser abordadas pelos seguintes métodos e técnicas das ciências exatas:
Peneiramento por via úmida de amostras sedimentológicas de argila associados aos dados interpretados das lâminas ceramográficas propiciam informações sobre as possíveis áreas de captação de argila em fontes próximas aos assentamentos (Alves, 2009; Alves, Goulart, Andrade, 2013; Magalhães, 2015, 2019);
a difratometria de raios X permite identificar a temperatura de queima do vasilhame (Alves, 1988; Magalhães, 2015, 2019);
tanto a fluorescência de raios X por dispersão de energia (Magalhães, 2015, 2019; Moreira, 2019), técnica não invasiva, e a microscopia de varredura eletrônica e microanálise (Alves, 1988; Magalhães, 2015), técnica invasiva, são procedimentos metodológicos e técnicos empregados na identificação de restos de pigmento nas superfícies interna e externa da peça cerâmica.
Os principais autores que fundamentam os estudos arqueométricos de cerâmica são Anna Shepard, (1976), Evaristo Goulart (2004), Carlos Leite (1986), María Beatriz Cremonte (1983-1985, 2001; Cremonte e Pereyra Domingorena, 2013), Prudence Rice (1987) e Owen Rye (1981).
O Projeto Quebra Anzol escavou oito sítios, sendo que dois, o Rezende e o Inhazinha, são constituídos por duas zonas arqueológicas distintas cada, configurados como: Rezende, Zona 1, e Rezende, Zona 2; Inhazinha, Zona 1, e Inhazinha, Zona 2. A relação das datações absolutas radiocarbônicas (Carbono-14/14C), Termoluminescência (TL), e Luminescência Opticamente Estimulada (LOE/OSL) dos sítios pesquisados, assim como a localização geográfica deles, encontram-se na Tabela Nº1.
Esses dois sítios arqueológicos são multicomponenciais, ou seja, apresentam estratos arqueológicos relacionados a períodos e culturas distintas, com camadas arqueológicas inferiores correspondentes às ocupações de caçadores-coletores do Brasil Central (Schmitz, Rosa e Bittencourt, 2004) e camadas superiores relacionadas às ocupações de populações agricultoras-ceramistas dos Kayapó meridionais4.
O sítio ATM-6915, localizado em Tupaciguara, é um sítio multicomponencial que apresenta três estratos arqueológicos vinculados a ocupações de populações caçadoras-coletoras, entre três mil e dois mil anos atrás.
O sítio Casa de Força, localizado na área de inundação da PCH Piedade, em Monte Alegre de Minas, é um sítio de caçador-coletor pesquisado no âmbito de contrato por Edward Koole e Fernando Costa (2006) no ano de 2005. As indústrias líticas deste sítio estão sob análise do Professor Alex Sandro Alves De Barros (2021), em seu doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do MAE-USP.
Os outros sítios escavados, unicomponenciais, são: Prado, Menezes, Rodrigues Furtado, Silva Serrote, Santa Luzia; outros dois, também unicomponenciais, foram apenas prospectados: Antinha e Pires de Almeida.
O método empregado nas escavações do Projeto Quebra Anzol foi o de Superfícies Amplas com a técnica de Decapagens por Níveis Naturais, elaborado por A. Leroi-Gourhan (1950; Leroi-Gourhan e Brézillon, 1972) e adaptado para o solo tropical do Brasil por Luciana Pallestrini (1975, 1983) em suas pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto Paranapanema, no vale homônimo, Estado de São Paulo.
Município | Sítio | UTM (Sirgas 2000) ou Coordenadas Geográficas | Datações (anos AP) | Laboratórios | Referências Bibliográficos |
---|---|---|---|---|---|
Tupaciguara | ATM-691 | 22K0707399 E/ 7950629 | 2.290 ± 70 AP 14C; 3.240 ± 130 AP 14C | CENA/USP | De Barros, 2018 |
Monte Alegre de Minas | Casa de Força | 22K0704786 E/ 7935349 S | 1940 ± 30 anos AP 14C | BETA/EUA | De Barros, 2018 |
Centralina | Rezende Zona 1 | 22K0687915 E/ 7948863 S | Estrato lito-cerâmico 460 ± 50 AP TL; 480 ± 50 AP TL; 721 ± 100 AP TL; Estrato lítico 2 4.250 ± 50 AP 14C; Estrato lítico 1 4.950 ± 70 AP 14C | FATEC/SP; GIF/França | Alves, 1990/1992, 1992a, 1992b, 2000, 2002, 2009, 2013; Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002, 2013; Alves e Fagundes, 2006; Fagundes, 2004; Fagundes, Alves e Goulart, 2007 |
Rezende Zona 2 | 22K0687630 E/ 7948902 S | Estrato lito-cerâmico 630 ± 95 AP TL; 830 ± 80 AP TL; 1.108 ± 166 AP; TL 1.190 ± 60 AP 14C; Estrato lítico 5 3.680 ± 100 AP 14C; Estrato lítico 4 5.540 ± 90 AP 14C; 5.620 ± 70 AP 14C; Estrato lítico 3 6.060 ± 50 AP 14C; 6.110 ± 70 AP 14C; Estrato lítico 2 6.810 ± 100 AP 14C; 6.950 ± 80 AP 14C; Estrato lítico 1 7.110 ± 100 AP 14C; 7.110 ± 100 AP 14C; 7.300 ± 80 AP 14C; 7.320 ± 110 AP 14C | FATEC/SP; CENA/USP | Alves, 1992a, 1992b, 2000, 2002, 2009, 2013; Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002; Alves, Goulart e Andrade, 2013; Alves e Fagundes, 2006; Fagundes, 2004; Fagundes, Alves e Goulart, 2007 | |
Perdizes | Inhazinha Zona 1 | 23K 0270344 E/ 7879241 S | 1.095 ± 186 AP TL | FATEC/SP | Alves, 1992a, 1992b; Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002; Medeiros, 2007; |
Inhazinha Zona 2 | 23K 0262813 E/ 78667728 | 150 ± 30 (cal. 80±30 B.P.) AP 14C; 189 ± 12 AP TL; 190 ± 30 AP 14C; 212 ± 19 AP (cal. 149 B.P.) 14C; 245 ± 28 AP TL; 263 ± 25 AP TL; 278 ± 30 AP TL; 363 ± 31 AP TL; 903 ± 78 AP LOE; 5.203 ± 396 AP LOE | CENA-USP; BETA/EUA; LACIFID-IF-USP; LEGaL-IGC-USP/SP LDDAM-UNIFESP/Santos | Magalhães, 2015, 2019 | |
Prado | 23K0264495 E/ 7868094 S | 400 ± 50 AP TL; 493 ± 74 AP TL | FATEC/SP | Alves, 1982, 1983/1984, 1988, 1990/1992, 1991, 1992a, 1992b, 1994,1997a, 1997b, 1999, 2000, 2009, 2013; Alves e Girardi, 1989; Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002; Alves, Goulart e Andrade, 2013; Goulart; Alves, Zandonadi, Munito, e Paiva, 2005 | |
Menezes | 23K 0263657 E/ 7853964 S | 572 ± 80 AP TL | IF-USP/SP | Alves, 1992a, 1992b, 2009, 2013; Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002; Alves, Goulart e Andrade, 2013; Figueiredo, 2008 | |
Rodrigues Furtado | 23K0262731 E/ 7866748 S | 500 ± 50 TL; 910 ± 30 AP 14C | FATEC/SP; BETA/EUA | Alves, 1992a, 1992b; Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002; Medeiros, 2007; Magalhães, 2015; | |
Antinha | 23K 0287468 E/ 7863400 S | 870 ± 130 AP TL | FATEC/SP | Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002; Moreira, 2019; | |
Guimarânia | Silva Serrote | 23K0315380 E/ 7920186 S | 620 ± 50 AP 14C; 670 ± 50 AP 14C; 790 ± 120 AP TL | GIF/França; FATEC/SP | Alves, 1988, 1990/1992, 1991, 1992a, 1992b, 1994, 1997a; Alves, Tatume, Vasconcellos, Costa e Momose, 2002; Figueiredo, 2008 |
Pedrinópolis | Santa Luzia | 23K0234099 O/ 7880998 S | 1830 ± 183 AP TL; 1838 ± 184 AP TL | IF/USP | Denardo, 2018 |
Indianópolis | Pires de Almeida | 19°08’47” S/ 47°31’39” W | 1.074 ± 161 AP TL; 1.130 ± 120 AP TL | FATEC/SP | Moreira, 2019 |
Fonte: Elaboração dos autores
A análise da documentação arqueológica, até o momento (novembro de 2023), resultou na elaboração de uma tese de Livre-Docência (Alves, 2009), duas teses de doutorado (Alves, 1988; Magalhães, 2019), e oito dissertações de mestrado (Alves, 1982; De Barros, 2018; Denardo, 2018; Fagundes, 2004; Figueiredo, 2008; Magalhães, 2015; Medeiros, 2007; Moreira, 2019); no presente (novembro de 2023), uma tese de doutorado (De Barros, 2021) e uma dissertação mestrado (Alarsa, 2023) estão sendo desenvolvidas, todas junto à Universidade de São Paulo.
A região em que o Projeto Quebra Anzol é desenvolvido foi ocupada pelo povo Kayapó meridional, pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, desde o século II da era Cristã, território que compreendia Norte e Noroeste de São Paulo, Leste do Mato Grosso do Sul, Sudeste de Mato Grosso, Centro-Sul de Goiás, região do Extremo Oeste de Minas Gerais (Denardo, 2018). Era um povo agricultor-ceramista que complementava a subsistência com as atividades de caça, coleta e pesca.
A documentação cerâmica dos sítios arqueológicos foi estudada pelos métodos arqueométricos acima mencionados, com ênfase, na execução de seções delgadas (Alves, 1982, 1988, 2009, 2013; Denardo, 2018; Fagundes, 2004; Figueiredo, 2008; Magalhães, 2015, 2019; Medeiros, 2007; Moreira, 2019), associados às análises arqueométricas: peneiramento por via úmida e outras (Denardo, 2018; Magalhães, 2015, 2019); assim como foram e estão sendo desenvolvidos análises por cadeias operatórias (Leroi-Gourhan, 1943, 1945, 1964, 1965; Mauss, 1947, 1950) e sistemas técnicos (Lemonnier, 1976, 1983, 1986, 1992, 2004).
Materiais e Métodos
Do total de 69 lâminas analisadas (Tabela Nº2), este artigo centra-se na análise mineralógica e granulométrica de sete lâminas, provenientes dos sítios Prado, Menezes, Rezende, Zona 1, Antinha, e Inhazinha, Zonas 1 e 2 (Tabela Nº3).
Sítio | Zona | Quantidade | Referência |
---|---|---|---|
Prado | - | 16 | Alves, 1982, 1988, 2009; Alves, Girardi, 1989 |
Menezes | - | 9 | Alves, 2009; Figueiredo, 2008 |
Rezende | 1 | 12 | Alves, 2009; Fagundes, 2004 |
Antinha | - | 2 | Moreira, 2019; |
Inhazinha | 1 | 16 | Magalhães, 2015; Medeiros, 2007 |
Inhazinha | 2 | 14 | Magalhães, 2015, 2019 |
Total | 69 |
Fonte: Elaboração dos autores
As lâminas ceramográficas do projeto Quebra Anzol foram confeccionadas em quatro laboratórios diferentes, em sua maioria no Laboratório de Laminação do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGC-USP), as outros foram elaboradas no Laboratório de Paleomagnetismo, do Departamento de Geofísica do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP), no Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT-SP), e no Centro Regional de Estudos Arqueológicos da Faculdade de Humanidades e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Jujuy (CREArq-FHyCS-UNJu).
O método de confecção das lâminas já foi minuciosamente exposto por Goulart (2004) em um artigo. Abaixo apresentamos as etapas de confecção de forma sumária. A confecção de seções delgadas/lâminas ceramográficas é um processo parcialmente destrutivo do material cerâmico.
Inicialmente, deve-se selecionar dentre os fragmentos cerâmicos as peças que servirão para a confecção das lâminas ceramográficas. Após a seleção, a peça escolhida sofre um corte longitudinal, em local sugerido pelo arqueólogo, com o auxílio de uma máquina de corte abrasiva de precisão, que em sequência, é lixada/polida para obter a espessura ideal e, por último, impregnada com resina para seu posterior desbaste. Em sequência, o fragmento é deixado em período de secagem por mais de 24 horas para o endurecimento da resina. Depois do endurecimento da resina, a amostra é seccionada em direção perpendicular à espessura e colada em uma lâmina de vidro com resíduo incolor (Goulart, 2004, pp.252-254; Magalhães, 2015, pp.313-315) (Figura Nº1).
Após a confecção da lâmina ceramográfica ela é encaminhada ao geólogo para a análise mineralógica e granulométrica por meio do método de Microscopia Petrográfica de Luz Transmitida6 (MPLT).
Esse procedimento é realizado a partir de um microscópio óptico petrográfico, as imagens das lâminas são capturadas por meio do software Leica Application Suite (Goulart, 2004; Magalhães, 2015, 2019).
As análises por MPLT detectam a textura e estrutura (descrevem sinteticamente a composição da pasta, seleção, arredondamento dos grãos) dos elementos não-plásticos, assim como a granulação (tamanho, seleção), a composição modal (fragmentos de minerais e rochas presentes na pasta, elementos não-plásticos), descrição dos minerais e relações texturais (percentagem de grãos não-plásticos junto a uma base silto-argilosa) (Goulart, 2004).
A escala granulométrica de Wentworth (1922), adaptada por Suguio (1973) (Figura Nº2) foi utilizada pelos geólogos Evaristo Pereira Goulart (IPT-SP) e Fábio Ramos Dias de Andrade (IGC-USP), e por Márcia Angelina Alves (1982, 1988, 2009; Alves & Girardi, 1989; Alves et al. 2013) para análise da lâminas microscópicas das cerâmicas do Projeto Quebra Anzol.
Wagner Magalhães (2015, 2019) utilizou a escala gráfica de Orton e Hughes (2013) para levantar os índices de porcentagem de inclusão de grãos (5%, 10%, 20%, 30%...), os índices de classificação para tamanho de inclusões (0,5-1,0mm; 1,0-2,0mm…), e também a escala de seleção de grãos (muito ruim, ruim, regular, bom, muito bom) e, por fim, a escala de arredondamento e esfericidade (muito anguloso, anguloso, sub-anguloso, sub-arredondado, arredondado, bem arredondado).
Resultados
Este artigo apresenta sete lâminas ceramográficas descritas, sendo seis do período pré-Colonial e uma do período Colonial. As cinco primeiras correspondem a lâminas dos sítios Prado, Menezes, Rezende, Zona 1, e Antinha; as duas lâminas restantes são provenientes do sítio Inhazinha, Zonas 1 e 2, uma do período pré-Colonial e outra do período Colonial (Tabela Nº2).
Período | Sítio | Lâmina | Figura Nº | Referência |
Período Pré-Colonial | Prado | P-M6-1D | 3 | Alves, 2009 |
Menezes | M-T3 | 4 | Alves, 2009 | |
Menezes | M4 | 5 | Figueiredo, 2008 | |
Rezende, Zona 1 | R-Z1-T3-M2 | 6 | Alves, 2009 | |
Antinha | A-Sup-P | 7 | Moreira, 2019 | |
Inhazinha, Zona 1 | IN02489A17 | 8 | Magalhães, 2015 | |
Período Colonial | Inhazinha, Zona 2 | IN13478A4 | 9 | Magalhães, 2015 |
Fonte: Elaboração dos autores.
As seções delgadas das lâminas foram apresentadas e descritas primeiramente nos trabalhos de Alves (1982, 1988, 2009), e, sequencialmente, por seus orientandos em dissertações de mestrado e teses de doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (Fagundes, 2004; Medeiros, 2007; Figueiredo, 2008; Magalhães, 2015, 2019; Denardo, 2018 e Moreira, 2019).
As cerâmicas arqueológicas escolhidas para confecção de lâminas ceramográficas e análise tecnológica apresentadas neste artigo procedem dos sítios: Prado (Figura Nº3), Menezes (Figura Nº4 e Figura Nº5), Rezende, Zona 1 (Figura Nº6), Antinha (Figura Nº7), Inhazinha, Zona 1 (Figura Nº8) e Inhazinha, Zona 2 (Figura Nº9). Abaixo apresentamos a descrição e análise das lâminas ceramográficas.
Sítio Prado, lâmina P-M6-1D
Pasta argilosa escura no centro e clara nas bordas com predomínio de grãos angulosos e com seleção entre ruim e regular (raros grãos maiores de 3mm) com ordem de inclusão entre 20% e 30% entre 0.5 a 3.0mm; presença de quartzito, quartzo, pouca mica, e possivelmente feldspato. Ausência de tempero. (Alves, 2009, pp.223, 270).
Sítio Menezes, lâmina M-T3
Pasta argilosa escura com inclusão importante de fração silte (30%), com predomínio de grãos subarredondados a subangulosos na fração mais grosseira e angulosos a subangulosos na fração de argila com ordem de inclusão entre 5% e 10% entre 0.5mm a 1.0mm; presença de quartzo, feldspato, mica, e pouco quartzito. Ausência de tempero. (Alves, 2009, pp.224, 282).
Sítio Menezes, lâmina M4
Pasta fina de argila de coloração escura, com grãos muito angulosos e mal selecionados (entre 6mm e 0,01mm) com ordem de inclusão entre 10% e 20% entre 0.5mm a 3.0mm; presença de quartzo, de muscovita e biotita, feldspato e alguns minerais opacos, como o hidróxido de ferro. Ausência de tempero. A presença de grãos de quartzo nos fragmentos cerâmicos do sítio Menezes é massiva. Essa lâmina, correspondente à Mancha 4, os grãos são maiores e a matriz argilosa é menos densa. Ausência de tempero. (Figueiredo, 2008, pp.120, 122).
Sítio Rezende, Zona 1, lâmina R-Z1-T3-M2
Pasta argilosa clara e homogênea, com grãos entre arredondado e subarredondado com seleção entre muito ruim para ruim com ordem de inclusão entre 5% a 10% de 05. a 3.0mm; presença de quartzo (um fragmento grande e menores distribuídos pela matriz junto a material quartzoso>3mm, subarredondado), com fragmentos opacos e ferruginosos arredondados (predominam entre as frações >#40 e <#325), contendo inclusão de quartzo, fragmentos de goethita e raros plagioclásios. fragmentos opacos ferruginosos arredondados, contendo inclusões de quartzo (arenito com cimento laterítico, ferruginosos), fragmentos de goethita e plagioclásio (raro).Ausência de tempero. (Alves, 2009, pp.226, 276)
Sítio Antinha, Lâmina A-Sup-P
Pasta argilosa de matriz clara e textura homogênea, com faixa escura bandada na porção central, grãos angulosos e subangulosos com seleção ruim a regular, raros fragmentos entre 1mm a 2mm com ordem de inclusão entre 10% e 20% na ordem de 0.5mm a 1.0mm presença de grãos de quartzo, turmalina e muscovita, presença de quartzo, turmalina e muscovita. Ausência de tempero (Moreira, 2019, pp.251, 256-257).
Sítio Inhazinha, Zona 1, lâmina IN02489A17
Pasta argilosa de grãos finos, clara com porção central enegrecida, de composição heterogênea, seleção dos grãos ruim a regular com grãos angulosos, com ordem de inclusão em 30% entre 0.5mm a 2.0mm, predomínio de quartzo e quartzito, com a presença também de biotita e muscovita, com possíveis inclusões de pequenos clastos de rochas metamórficas (milonito). Presença de gretas; ausência de tempero (Magalhães, 2015, p.356).
Sítio Inhazinha, Zona 2, lâmina IN13478A4
Pasta argilosa de grãos finos, clara e com distribuição homogênea, seleção ruim com arredondamento sub-anguloso com ordem de inclusão entre 10% e 20%, com grãos entre 0.5 a 2.0mm; predomínio de quartzo, com a presença também de muscovita e biotita, rara ocorrência de biotita e muscovita, possíveis inclusões de rochas metamórficas. Presença de gretas, ausência de tempero (Magalhães, 2015, p.334).
Discussão
As sete lâminas apresentadas indicam que todas as pastas argilosas foram confeccionadas pelas ceramistas Kayapó meridionais com uma única técnica de preparo do barro, a acordelada, sem inclusão de tempero, com adição de areia, média e grossa; há o predomínio de quartzo nas amostras enquanto mineral predominante, em relação aos outros minerais (goethita, muscovita, biotita, turmalina, plagioclásio…) e rochas (quartzito e rochas metamórficas) identificados nas pastas.
A regularidade da composição da pasta cerâmica, representada pelo predomínio do quartzo como mineral, a não adição de tempero, a escolha de adicionar areia média e grossa compõem o padrão do conceito de identidade tecnológica7 (Cremonte, 2001) da cerâmica Kayapó meridional, de acordo com o registro arqueológico recuperado por meio das escavações sistemáticas, pesquisado e analisado pelos integrantes e colaboradores do Projeto Quebra Anzol.
A continuidade da regularidade refere-se, também, aos índices de temperatura de queima realizadas pelas ceramistas Kayapó: no período pré-Colonial, a queima era realizada em fogueira rasa a céu aberto com uma temperatura acima de 550°C e abaixo de 600°C para todos os sítios (Alves, 1988; Magalhães, 2015, 2019; Moreira, 2019); o sítio Silva Serrote, apresentou, também, temperaturas de queima abaixo de 550°C em alguns poucos fragmentos (Alves, 1988). As temperaturas foram avaliadas por meio do método de difratometria de raios-X, e os índices de temperatura de queima foram classificados a partir do estudo experimental feito por Carlos Leite (1986), no âmbito de um mestrado no Instituto de Física da USP.
As queimas realizadas nas cerâmicas dos sítios pesquisados foram, predominantemente, redutoras (Alves, 1982, 1988; Denardo, 2018; Fagundes, 2004; Figueiredo, 2008; Magalhães, 2015; Medeiros, 2007; Moreira, 2019) com exceção do sítio Inhazinha, Zona 2, em que predominou de queima oxidante (Magalhães, 2015, 2019).
Os atributos levantados quanto ao tratamento das superfícies cerâmicas constataram que só foi empregada a técnica de alisamento nas paredes internas e externas e a não ocorrência de brunidura, engobo branco e vermelho, banho preto, e nem de pintura vermelha8. Estes dados interpretados foram corroborados pelo método da microscopia eletrônica de varredura e microanálise, as superfícies avermelhadas encontradas em alguns vasilhames são decorrentes da alta concentração de óxido de ferro/hematita presente nos solos da região. (Alves, 1982, 1988; Denardo, 2018; Fagundes, 2004; Figueiredo, 2008; Magalhães, 2015; Medeiros, 2007; Moreira, 2019).
As mudanças ocorridas na cerâmica coletada pelo Projeto Quebra Anzol referem-se aos períodos pré-Colonial e Colonial e encontram-se em dois sítios: Antinha e o Inhazinha, Zona 2.
O sítio Antinha (870 anos AP) apresentou inovações no tratamento das superfícies, com aplicação de pintura monocromática vermelha diretamente no vasilhame, sem a presença de engobo, com a adoção de apliques e de bases planas (Moreira, 2019). Essas mudanças ocorridas no sítio Antinha referem-se ao período pré-Colonial resultantes de contatos dos Kayapó, habitantes tradicionais da região do Triângulo Mineiro, com populações Tupi9, decorrentes de trocas intertribais (CEMIG, 1995; Moreira, 2019).
No sítio Inhazinha, Zona 2 (363 anos AP a 150 anos AP), a queima da cerâmica passa a ser processada em fornos escavados no chão com chaminé em forma de orifícios de barro; a confecção das bases dos vasilhames se altera para somente bases planas; e com inovações nos tratamentos de superfície: a aplicação de incisões10, apliques e de pintura vermelha sobre as superfícies dos vasilhames sem a presença de engobo (Magalhães, 2015) (Figura 10).
Outra mudança do Período pré-Colonial para o Período Colonial é a adoção e uso de carimbos na decoração da cerâmica. O vasilhame apresentado na Figura 11 apresenta duas fileiras de carimbos, uma um pouco acima da base plana, com cinco marcas de carimbo, e outra pouco abaixo da borda, com nove marcas de carimbo. Essa peça, doada para o Museu Municipal de Arqueologia de Perdizes, apresenta técnica acordelada de confecção e foi datada por Termoluminescência (FATEC/SP) em 180±20 anos AP (final do século XVIII/início do século XIX), coincidente com o período final de ocupação pelos Kayapó meridionais no Triângulo Mineiro (Giraldin, 1997; Magalhães, 2019; Moreira, 2019).
Considerações Finais
Apesar das inovações ocorridas nos tratamentos de superfícies, a tecnologia de preparo da pasta persistiu. Esse fato representa uma continuidade técnica, na tradição ceramista das Kayapó meridionais, apesar dos processos de contato ocorridos, primeiro com as populações Tupi, no período pré-Colonial e Colonial; as técnicas persistem, também, durante o processo de contatos e conflitos com as populações europeias e colonizadoras quando, a partir de fins do século XVII, ocorre a expansão para o interior do Brasil em busca das minas de ouro dos Goyases e as minas de diamante de Cuiabá (Lourenço, 2005, 2010; Magalhães, 2019; Mori, 2010; Moreira, 2009).
Esse processo de expansão colonial ultrapassou os limites do Tratado de Tordesilhas (1494); os limites fronteiriços do poderio das Coroas lusitana e espanhola foram redefinidos pelo Tratado de Madrid (1750) e reafirmados pelo Tratado de Santo Idelfonso (1777) (CEMIG, 1995; Lourenço, 2005, 2010; Mori , 2010).
Uma das mudanças culturais/inovações, relaciona-se à queima da cerâmica. No Período pré-Colonial, a queima era realizada em fogueiras rasas; no Período Colonial a queima passou a ser realizada em fornos escavados (Figura 12), com chaminés e crivos (orifícios), compostos por uma mistura de barro com cupinzeiro. Essa alteração do modo de realizar a queima implicou na mudança de ambiente da queima, anteriormente à céu aberto em que ocorria o processo de uma queima redutora, para ambientes de fornos, em que há o predomínio de queima oxidante (Magalhães, 2015).
A mudança na maneira de queimar os vasilhames cerâmicos (de fogueira rasa a forno escavado) não implicou na alteração dos índices da temperatura de queima no sítio Inhazinha, Zona 2; foram mantidos os índices de queima em torno de 550°C (Magalhães, 2015, 2019).
Outras mudanças/inovações presentes são a adoção de incisões e apliques em forma alça, no sítio Inhazinha, Zona 2 (Figura 10), e ocorrência de apliques também no sítio Antinha; a aplicação de pintura monocromática na cor vermelha, sem engobo, em fragmentos cerâmicos nos sítios Inhazinha, Zona 2, e no sítio Antinha (Magalhães, 2015; Moreira, 2019).
A continuidade cultural é indicada pelos seguintes traços: não emprego de tempero nas pastas cerâmicas, a colocação de areia, predominantemente média e grossa, na pasta argilosa das cerâmicas (Figuras Nº3, Nº4, Nº5, Nº6, Nº7, Nº8 e Nº9). As ceramistas do sítio Menezes escolheram adicionar areia grossa e cascalho à pasta de sua produção cerâmica (Alves, 2009; Figueiredo, 2008) (Figura 13) e como um critério de identidade tecnológica (Cremonte, 2001; Lemonnier, 2004).
As mudanças registradas na cerâmica do Período Colonial ocorreram na morfologia/forma dos vasilhames, nos tratamentos das superfícies, interna e externa, com incisões, pintura monocromática na cor vermelha, aplicação de carimbos, e na técnica de queimar a cerâmica em fornos escavados (Magalhães, 2015).
Entretanto, há uma continuidade técnica milenar na preparação das pastas cerâmicas, que é indicativa de uma identidade tecnológica (Cremonte, 2001; Lemonnier, 2004).
Este artigo - centrado na confecção de seções delgadas de cerâmicas arqueológicas, analisadas pelo método de microscopia petrográfica de luz transmitida - evidenciou a técnica de manufatura da pasta cerâmica e sua continuidade em um ambiente de mudanças socioculturais, o que permitiu identificar a identidade tecnológica da cerâmica Kayapó meridional.