1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem um duplo objetivo. O primeiro deles é o enfrentamento do tema relacionado à extensão e limites da jurisdição adjudicativa, tendo como foco central o problema da imunidade internacional jurisdicional dos Estados; o segundo, um cotejo entre a atual compreensão do Supremo Tribunal Federal (doravante STF) acerca da imunidade internacional de jurisdição dos Estados em relação à da Corte Internacional de Justiça (doravante CIJ).
O que levou a essa escolha foi o julgado proferido pelo STF na Repercussão Geral 944 (doravante RG 944):
Alcance da imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro em relação a ato de império ofensivo ao direito internacional da pessoa humana. - Tese: Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos, dentro do território nacional, não gozam de imunidade de jurisdição.
A ementa do Agravo em Recurso Especial 954.858 (doravante ARE 954.858) tem o seguinte conteúdo:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITOS HUMANOS. DIREITO INTERNACIONAL. ESTADO ESTRANGEIRO. ATOS DE IMPÉRIO. PERÍODO DE GUERRA. CASO CHANGRI-LÁ. DELITO CONTRA O DIREITO INTERNACIONAL DA PESSOA HUMANA. ATO ILÍCITO E ILEGÍTIMO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. RELATIVIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. ACESSO À JUSTIÇA. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS. ART. 4º, II, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. Controvérsia inédita no âmbito desta Suprema Corte, estando em questão a derrotabilidade de regra imunizante de jurisdição em relação a atos de império praticados por Estado soberano, por conta de graves delitos ocorridos em confronto à proteção internacional da pessoa natural, nos termos do art. 4º, II e V, do Texto Constitucional. 2. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro no direito brasileiro é regida pelo direito costumeiro. A jurisprudência do STF reconhece a divisão em atos de gestão e atos de império, sendo os primeiros passíveis de cognoscibilidade pelo Poder Judiciário e, mantida, sempre, a imunidade executória, à luz da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas (Dec. 56.435/1965). Precedentes. 3. O artigo 6, “b”, do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, reconhece como “crimes de guerra” as violações das leis e costumes de guerra, entre as quais, o assassinato de civis, inclusive aqueles em alto-mar. Violação ao direito humano à vida, incluído no artigo 6, do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos. Assim, os atos praticados em períodos de guerra contra civis em território nacional, ainda que sejam atos de império, são ilícitos e ilegítimos. 4. O caráter absoluto da regra de imunidade da jurisdição estatal é questão persistente na ordem do dia do direito internacional, havendo notícias de diplomas no direito comparado e de cortes nacionais que afastaram ou mitigaram a imunidade em casos de atos militares ilícitos. 5. A Corte Internacional de Justiça, por sua vez, no julgamento do caso das imunidades jurisdicionais do Estado (Alemanha Vs. Itália), manteve a doutrina clássica, reafirmando sua natureza absoluta quando se trata de atos jure imperii. Decisão, no entanto, sem eficácia erga omnes e vinculante, conforme dispõe o artigo 59, do Estatuto da própria Corte, e distinta por assentar-se na reparação global. 6. Nos casos em que há violação à direitos humanos, ao negar às vítimas e seus familiares a possibilidade de responsabilização do agressor, a imunidade estatal obsta o acesso à justiça, direito com guarida no art. 5º, XXXV, da CRFB; nos arts. 8 e 10, da Declaração Universal; e no art. 1, do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos. 7. Diante da prescrição constitucional que confere prevalência aos direitos humanos como princípio que rege o Estado brasileiro nas suas relações internacionais (art. 4º, II), devem prevalecer os direitos humanos - à vida, à verdade e ao acesso à justiça -, afastada a imunidade de jurisdição no caso. 8. Possibilidade de relativização da imunidade de jurisdição estatal em caso de atos ilícitos praticados no território do foro em violação à direitos humanos. 9. Fixação de tese jurídica ao Tema 944 da sistemática da repercussão geral: “Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição.” 10. Recurso extraordinário com agravo a que se dá provimento.
(ARE 954858, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/08/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-191 DIVULG 23-09-2021 PUBLIC 24-09-2021)
Já a decisão da CIJ foi proferida no caso Jurisdictional Immunites of the State (Germany v. Italy: Greece intervening), julgado em 03 de fevereiro de 2012.
O problema que se identificou na disparidade entre as decisões judiciais paradigmáticas foi, de um lado, a incompatibilidade entre a decisão do STF e o conteúdo atual da norma consuetudinária acerca da imunidade jurisdicional dos Estados, e de outro as dificuldades em se dar efetividade a uma eventual decisão condenatória da Alemanha, tendo em vista a imunidade internacional de execução, de caráter absoluto, que seus bens e ativos gozam face à jurisdição brasileira, bem como consequências em razão do princípio da reciprocidade, haja vista que nada impediria que a Alemanha, ou mesmo qualquer outro Estado, adote posição idêntica à da Corte nacional.
Portanto, a similaridade entre os casos, que têm no afastamento da imunidade internacional de jurisdição sob a alegação de responsabilidade civil Estado por crimes de guerra uma base fática aproximada, permitirá, assim se imagina, verificar os (des)acertos da decisão proferida pelo STF, quanto mais pelo emprego retórico do conceito de derrotabilidade da norma internacional.
A discussão desse tema se apresenta relevante por pelo menos quatro questões:
1. permite uma discussão mínima sobre o conceito de soberania a partir de uma interlocução entre Direito Internacional e Direito Interno;
2. por se relacionar à incorporação de normas internacionais costumeiras e a dificuldade que se abate sobre esta terra incógnita, para lembrar interessante expressão empregada por Triepel acerca da vigência interna das normas internacionais em seu Cours de 1923 na Haia;
3. aferir como a jurisprudência do STF tem tratado o tema da extensão e limitação da jurisdição adjucativa pela incidência das imunidades internacionais; e
4. uma crítica de lege ferenda à decisão do STF na RG 944, tomando como paradigma interpretativo o brocardo de Conselheiro Acácio, famoso personagem do romance O Primo Basílio, de Eça de Queiroz: as consequências vêm sempre depois!
O método adotado foi o estudo de caso orientado pela crítica, na medida em que se busca, a partir dos contrastes entre opostos - a decisão do STF e a da Corte Internacional de Justiça - uma síntese compreensiva que corresponda ao conteúdo da norma internacional incidente ao caso; na reconstrução do caso Changri-la, o método histórico, o qual será reconstruído num ligeiro apanhado fático no próximo tópico.
Mas antes, uma pequena nota sobre o título do trabalho: banzeiro, neste trabalho, conota as ondas que se formam nos rios amazônicos, os quais, ora embalam os sonos dos viajantes de barcos e pirogas, ora os levam a pique ao trafegarem nas imensas e abundantes águas da região. É sobre essa ambiguidade que se procurará analisar a citada decisão do STF.
2. O CASO CHANGRI-LÁ
O caso Changri-lá inicia-se no contexto da Segunda Guerra Mundial nas conflagradas costas brasileiras.
Ao espocar da guerra, o Governo Vargas buscou manter uma relação bastante ambígua em relação aos Aliados e ao Eixo, mormente em razão do caráter fascista do Estado Novo inaugurado com o golpe de Estado de 1937, e mantida com punhos e botinas pesadíssimos pela política de segurança nacional e a assim chamada Polaca, isto é, a Constituição de 1937. Esta, obrada pelo jurista conservador brasileiro Francisco Campos, se inspirou na constituição polonesa de 1929, cuja principal característica era a de concentrar poderes praticamente ilimitados no executivo.
A essa ambiguidade política o governo Vargas denominou de neutralidade.
Com efeito, são bastantes evidentes as provas acerca da pretensão originária do governo em manter-se neutro ao conflito, como é o caso da ata de 6 de setembro de 1939 - 5 dias após a invasão da Polônia pela Alemanha -, que registrou a decisão do Conselho de Segurança Nacional de que o Brasil
[...] manter-se-á estritamente neutro, pautando as suas atitudes pelas normas estatuídas no decreto que definir essa neutralidade. Reservar-se-á, entretanto, o direito de negociar livremente em seus portos com qualquer dos países das duas correntes antagônicas o excedente de sua produção e as matérias-primas de que é possuidor, excetuado apenas o tráfico de material bélico, cuja exportação será vedada.
A perspectiva havida era a de que o Brasil lograria ser um provedor de matérias primas para ambos os lados da refrega - pois, diz a ata, ele “[...] fomentará, por todos os meios, a ampliação da capacidade produtiva e o desenvolvimento do potencial econômico do País, em estreito entendimento com os seus organismos industriais, agrícolas, comerciais, técnicos, científicos etc” -, devendo, em relação aos Estados Unidos da América, que também declarara neutralidade, promover “[...] propaganda das nossas fontes de trabalho e de riquezas a fim de atrair para o País os capitais acumulados, ultimamente, nos Estados Unidos à espera de emprego seguro”. Moura chamará a essa política de “equidistância pragmática”.
Os historiadores são acordes em afirmar que o Brasil logrou manter, com muitos custos e dificuldades, a neutralidade, e isso tanto pelas pressões externas para que o país entrasse no conflito, como também pelos movimentos internos que contestavam ora a neutralidade ora o Estado Novo ou mesmo o sistema político-econômico. Gerson Moura sintetiza esse período com as seguintes palavras:
Nos 30 meses seguintes, a neutralidade brasileira pôde ser razoavelmente sustentada, não obstante a tensão crescente e as dificuldades surgidas em razão dos problemas econômicos, da radicalização ideológica e da luta política em todo o país. Mas a entrada dos EUA na guerra mudou de forma drástica todo esse quadro, desestabilizando o delicado equilíbrio político que sustentava a neutralidade. Nos oito meses seguintes, de dezembro de 1941 a agosto de 1942, os neutralistas foram perdendo gradualmente sua posição dominante no processo decisório da política externa.
Sobre esse período, Pereira compreendo-o sob a rubrica da ameaça efetiva à soberania territorial, vez que desde a
[...] proclamação da República até os dias atuais, jamais a soberania e a integridade territorial do Estado brasileiro estiveram tão ameaçados quanto durante a primeira gestão do político gaúcho, quando os antagonismos internos que acompanharam a República desde o seu nascedouro somaram-se às ingerências de várias potências estrangeiras e aos problemas que surgiram com o início das hostilidades em 1939.
Importante frisar que a neutralidade não foi uma escolha isolada do Brasil e Estados Unidos, mas continental, conforme o evidencia a decisão da I Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, convocada pelos EUA sob a presidência de Roosevelt e ocorrida no Panamá em setembro de 1939, pela qual os Estados participantes decidiram pela neutralidade bélica e de seus domínios marítimos.
Já em 1940, a Conferência de Havana estendeu a corda da neutralidade para a área da defesa mútua, pois decidiu-se que a ofensiva militar contra qualquer membro da comunidade de Estado americanos se constituiria num ato de agressão ao continente como um todo.
O fato que mudou definitivamente qualquer possibilidade de manutenção da neutralidade continental foi o ataque japonês a Pearl Harbour em dezembro de 1941.
Não sendo o caso de se entrar no debate sobre a (in)evitabilidade e (im)previsibilidade do ataque aéreo japonês, é fato que ele se constituiu num evento de máxima importância por implicar no ingresso dos Estados Unidos da América numa guerra que, até então, não transcendera os limites europeus, salvo eventuais escaramuças navais no Atlantico em razão do bloqueio naval que a Armada Inglesa promovia, o que desencadeou para o Brasil em um crescente défice de exportação para a Alemanha; contudo, e nada obstante isso, os canais de comunicação entre o Brasil e o Reich permaneceram abertos.
Com o ataque a Pearl Harbour convocou-se, para janeiro de 1942 na então capital do Brasil, a III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, tendo como objeto de deliberação a tomada de posição continental em relação à agressão do Eixo. Para o grupo de países sob a influência dos EUA, se deveria romper relações e declarar-se guerra ao Eixo; já os Estados sob a influência da Argentina - Chile, Paraguai e Bolívia -, na esteira da proposta apresentada pelo chanceler argentino Enrique Ruiz-Guiñazu, cada país seria livre para decidir se acataria a recomendação de rompimento e declaração de guerra. Embora Roosevelt obviamente esperasse uma decisão no sentido de sua orientação, acabou por prevalecer a proposta argentina.
Este fato gerou em relação ao Estado brasileiro uma situação bastante importante no campo das expectativas sobre qual posição se tomaria, uma vez que o Brasil padecia de um gravíssimo défice de equipamentos de guerra, bastando pensar que as suas duas maiores belonaves haviam sido adquiridas - os encouraçados São Paulo e Minas Gerais - em 1910, e que desencadeara uma corrida belicistas no continente sul com Argentina e Chile, e se encontravam, à época, em evidente incapacidade de lidar com as novíssimas naves de guerra dos países do Eixo, e por isso Moura a denominava de uma neutralidade dependente.
Com efeito, a dependência de que os Estados Unidos, de fato, cumprissem com seus compromissos, sempre reafirmados, mas sempre adiados, de entrega de toda a sorte de equipamentos bélicos, levava o Brasil a preterir a medida esperada pelos norte-americanos. A isso se soma o fato de que o General Marshall Júnior, Chefe do Estado-Maior do Exército norte-americano tinha como plano a redução dos demais países americanos em meros entrepostos livres ao tráfego de meios de transporte e soldados sob controle total dos Estados Unidos, tais como: a) que todos os Estados declarassem guerra ao Eixo ou cortassem relações diplomáticas com eles; b) que permitissem o deslocamento da Força Aérea americana por seus territórios ou através deles, e que eles seriam avisados quando possível; c) que permitissem a construção de bases militares americanas, as quais ficariam sob comando independente dos EUA; d) o uso das instalações nacionais que se fizessem necessárias em todos o hemisfério etc, o que era percebido como uma efetiva perda de soberania pelos demais estados.
Entretanto, nada obstante isso, o Brasil de Vargas optou por confiar no compromissivo norte-americano de fornecimento de armas, veículos e barcos de guerra - os quis foram inúmeras vezes adiados -, declarando, em 28 de janeiro de 1942, o rompimento de relações diplomáticas com a Alemanha, o Japão e a Itália.
Ponto importante acerca desse contexto é que já antes do rompimento brasileiro das relações diplomáticas ocorreram ataques militares a navios mercantes que trafegavam na rota sul-norte hemisférico por navios mercantes brasileiros por submarinos alemães e italianos. Contudo, a partir do rompimento das relações diplomáticas com o Eixo, ao que se somou autorização de construção e instalação das forças armadas americanas na base de Parnamirim, Rio Grande do Norte e o exercício conjunto de fiscalização e guarda do litoral brasileiro, inclusive com o afundamentos de um submarino alemão e danos em outro, fez com que o Reich elaborasse o Plano Brasil, pelo qual alcateias de submarinos da armada alemã atacariam a diversos alvos civis e militares da costa brasileira. Embora o Plano Brasil não tenha sido concretizado por decisão de Adolf Hitler, o qual temia que uma ataque ao Brasil implicasse no ingresso dos demais Estados da região na guerra, o submarino alemão U-507, comando pelo capitão Harro Schacht, empreendeu uma série de ataques a embarcações da Marinha Mercante brasileira em seu litoral do nordeste, levando a pique a 5 barcos em pouco mais de uma semana, com a perda de 650 vidas.
Em resposta a esta agressão, ocorreu a declaração do estado de guerra contra o Eixo pelo Decreto 10.358, de 31 de agosto de 1942, ingressando o Brasil na guerra, sendo este o contexto a partir do qual se deve compreender o caso Changri-lá.
Pois bem. Em julho de 1943, o barco de pesca Changri-lá afundou na costa brasileira de Cabo Frio, Rio de Janeiro, o que provocou na perda total da embarcação e a morte de seus dez tripulantes, a saber: José da Costa Marques, Deocleciano Pereira da Costa, Otávio Vicente Martins, Ildefonso Alves da Silva, Manoel Gonçalves Marques, Manoel Francisco dos Santos Júnior, Otávio Alcântara, Zacarias da Costa Marques, Apúlio Vieira de Aguiar e Joaquim Mata de Navarra.
Sendo a matéria afeita à jurisdição do Tribunal Marítimo nos termos do Decreto 20.829/1931, foi instaurado o Inquérito 812/1944 para apurar as circunstâncias de seu desaparecimento. Contudo, sem que o Tribunal tivesse indícios da causa do afundamento, arquivou o processo. Segundo relatado no Acórdão do Tribunal Marítimo,
[...] o desaparecimento do B/P “CHANGRI-LÁ” foi julgado pelo Tribunal Marítimo, através do processo nº 812 de 1944, sem que os juízes possuíssem elementos confiáveis para a designação da causa determinante do desaparecimento do “CHANGRI-LÁ”. Assim, mesmo aventando-se a hipótese de um ataque inimigo, a Corte decidiu que não foi apurada a causa determinante do desaparecimento do barco e de sua tripulação, já que àquela época eram escassas as informações a respeito do misterioso sumiço daquela embarcação.
Entretanto, no ano de 1999, o diretor do Museu Histórico Marítimo de Armação de Búzios, Elísio Gomes Filho, levou ao conhecimento da Procuradoria Especial do Tribunal Marítimo que o Changri-lá havia sido afundado pelo U-boot 199, o qual, posteriormente, afundou em 31 de julho de 1943 pela ação de aviões dos Estados Unidos e do Brasil. Do total de tripulantes, 49 morreram, sendo 12 resgatados, inclusive o capitão Hans Werner Klaus. Submetidos a interrogatório, produziu-se relatório no qual consta o ataque ao Changri-lá a tiros de canhão de 105mm, não tendo o U-boot 199 conseguido verificar o afundamento do navio.
À vista das informações subministradas por Elísio Gomes, a Procuradoria impetrou recurso inominado para que o Tribunal reabrisse o Inquérito 812/1944 e, dentre vários pedidos, reconhecesse a responsabilidade do capitão Hans Werner como crime de guerra por violação ao Direito Internacional Humanitário, haja vista a violação ao princípio da distinção entre alvos civis e militares, o que foi reconhecido pelo Tribunal na decisão já mencionada com as seguintes letras “[...] conclui-se que o B/P “CHANGRI-LÁ” foi afundado pela artilharia do U-199, em ato de guerra, que provocou a perda total da embarcação e a morte de seus dez tripulantes, devendo ser conhecido e julgado procedente o recurso apresentado pela Douta Procuradoria”.
Os descendentes dos marinheiros mortos com esse ato de guerra ingressaram com ação de reparação de danos perante a Seção Judiciária do Rio de Janeiro, tendo o juízo declinado da competência por decidir pela incidência de imunidade da República Federativa da Alemanha, à qual não ordenou a citação, determinando o arquivamento do feito sem resolução do mérito.
Inconformados, os autores interpuseram Recurso Ordinário perante o Superior Tribunal de Justiça (doravante STJ), o qual, por decisão monocrática do Ministro Marco Buzzi, indeferiu o seguimento ao Recurso Ordinário 129 sob o fundamento de o Estado alemão gozar de imunidade de jurisdição absoluta conforme inúmeros precedentes da Corte, inclusive alguns versando sobre o caso Changri-lá, como o Recurso Ordinário 66/2008 (Ministro Fernando Gonçalves), Recurso Ordinário 72/2009 (Ministro João Otávio de Noronha) e o Agravo Regimental no Recurso Ordinário 110/2012 (Ministra Maria Isabel Gallotti). Dessa decisão eles recorrer ao interporem Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, e que foi inadmitido pela Vice-presidência do STJ. Agravada a decisão, o recurso foi distribuído ao Ministro Edson Fachin.
Em maio de 2017 o Plenário Virtual reconheceu a repercussão geral da matéria, tendo a Procuradoria Geral da República opinado pelo não provimento. Além disso, a Advocacia Geral da União requereu intervenção na condição de amicus curiae, tendo opinado pelo improvimento do recurso.
Na primeira sessão de julgamento, em março de 2021, o Relator proferiu voto no qual, como já visto, afastou a imunidade de jurisdição do Estado alemão por ato jura imperii, considerando, em apertada linha, que os crimes de guerra, por serem imprescritíveis e violarem os direitos humanos, ilidem a incidência da imunidade, devendo o processo, neste sentido, retornar ao Juízo Federal de primeiro grau, tendo em vista a anulação da sentença que extinguiu o processo sem exame do mérito, e proceder a citação da Alemanha. Nessa sessão ele foi acompanhado por Rosa Weber, Dias Toffoli e Carmen Lúcia, tendo o Ministro Gilmar Mendes pedido vistas.
Na segunda sessão de julgamento se apresentou o voto-vista, pelo qual foi apontada a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal acerca do caráter absoluto da imunidade jura imperii, bem como precedentes da CIJ (caso Jurisdictional Immnunites of the State, Germany vs Italy, 2012). Foi seguido pelos Ministros Alexandre de Moraes, Nunes Marques, Luiz Fux e Marco Aurélio. Luiz Barroso e Ricardo Lewandowski seguiram o voto do relator.
Assim, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal afastou a incidência da imunidade internacional de jurisdição por ato de jura imperii, determinando, pois, que o Estado alemão fosse citado para os termos da ação de indenização.
No próximo tópico discutiremos a relação entre soberania e Direito Internacional.
3. SOBERANIA, AKA JURISDIÇÃO NACIONAL
Não há palavra mais ambígua no mundo das ideias político-jurídicas que soberania. O grande internacionalista inglês Michel Akehurt dizia “Uma palavra que se repete frequentemente nos escritos dos seguidores de Vattel é “soberania”, e é duvidoso que qualquer outra palavra tenha causado tanta confusão intelectual e conflito [lawlessness] internacional” [livre tradução], já que:
[...] a palavras ainda carrega uma tonalidade emotiva de poder ilimitado, acima da lei, e isso deu uma imagem totalmente enganosa das relações internacionais. O fato de um governante poder fazer o que ele quer em seus próprios assuntos não significa que ele possa fazê-lo, em questões de direito ou de poder político, a outros Estados (Livre tradução).
Em síntese, quem pensa soberania sob essa perspectiva ainda o faz como se ela representasse um poder acima do Direito, e não um conjunto de competências asseguradas PELO direito. Mas qual Direito? Por certo que não o nacional...
Com efeito, o conceito de soberania se resolve, no âmbito do Direito Internacional, como sinônimo a jurisdição nacional, sendo esta entendida como o conjunto de competências internacionalmente asseguradas pelo Direito Internacional para que o Estado possa, no gozo de sua independência conforme Celso D. de A. Mello “[...] exercer sua jurisdição sobre todas as pessoas e coisas no seu território nacional. As restrições à jurisdição estatal são impostas pelo DI”.
Nisso se aclara a aporia revelada pelo pensamento kelseniano, já que tanto ele objetava a existência da soberania, uma vez que a Grundnorm tem natureza internacional - é a regra pressuposta da criação dos costumes internacionais, consuetudo est servanda -, bem como assevera a inexistência de uma soberania nacional, vez que a soberania é um conceito que não comporta relativização, donde se teria por consequência lógica a ideia de que, se existisse soberania, esta deveria ser atribuída ao Direito Internacional.
Contudo, o que se conota quando se fala em jurisdição, no contexto do Direito Internacional, em referência aos Estados? Primeiramente, que o Direito Internacional delega para os Estados aquilo que Carta das Nações Unidas denomina de jurisdição nacional (artigo 2.7). Segundamente, que o próprio Direito Internacional estabelece os limites para o seu exercício. Isso implica, em apertadas linhas, que quanto mais o Direito Internacional se expande, mais a jurisdição nacional se vê afetada pelas mitigações e limitações provindas das normas internacionais.
No contexto do Direito Internacional, a expressão jurisdição é compreendida como:
[...] uma forma de poder legal ou competência. Conforme Hohfeldian, isto significa que a jurisdição diz respeito ao poder de controlar e alterar as relações jurídicas daqueles que estão sujeitos a essa competência através da criação e aplicação de normas jurídicas. Assim, por exemplo, um Legislativo pode promulgar uma série de regras que alterem as relações jurídicas das pessoas que lhe estão sujeitas (por exemplo, os cidadãos ou empresas). Além disso, os Estados que tenham consentido no exercício da chamada jurisdição obrigatória da CIJ podem ter algumas de suas relações jurídicas julgadas pelo Tribunal, uma vez que tem a competência para determinar os direitos e obrigações dos Estados que tenham consentido em sua jurisdição [Livre tradução].
Assim, o que se denomina de soberania em nível interno é identificado internacionalmente pela expressão jurisdição, expressão esta que abrange o conjunto de competências internacionalmente asseguradas pelo Direito Internacional para que o Estado possa, no gozo de sua independência, criar, aplicar e executar as regras de conduta aos indivíduos. Relaciona-se essencialmente à extensão do direito do Estado de regular a conduta e as consequências dos eventos
Decompondo-se a jurisdição nacional desde estas linhas gerais, tem-se que são as seguintes:
1. jurisdição prescritiva ou legislativa (prescreptive juridiction): se conforma no conjunto de competências constitucionais através das quais os Estados poderão impor, sob a ameaça de sanção jurídica, normas jurídicas que têm por finalidade, para ficar no locus clássico, organizar o Estado e reger as relações jurídicas, públicas ou privadas;
2. jurisdição executiva (executive jurisdiction ou enforcement jurisdiction): identifica a competência dos órgãos estatais de impor as sanções jurídicas a quem tenha sido responsabilizado pela violação às regras jurídicas, sejam elas de caráter cível ou penal e de autogoverno, e
3. jurisdição adjudicativa ou judicial (adjucative jurisdiction): expressão sinônima àquela utilizada em nível interno para identificar a função jurisdicional do Estado, se consubstancia no conjunto de procedimentos públicos (processo) através dos quais os Estados julgam uma lide por violação a suas normas, sejam civis ou penais.
O tema deste trabalho envolve as imunidades internacionais, as quais vedam o exercício da adjucative jurisdiction em relação a um Estado por normas internacionais.
4. IMUNIDADES INTERNACIONAIS
O conceito central do problema é o de imunidade jurídica, vale dizer, a existência de uma regra que excepciona a incidência de normas de submissão à jurisdição adjudicativa ou de imputação de responsabilidade em relação a uma pessoa ou coisa, criando, com isso, um conjunto de comportamentos que, embora juridicamente relevantes, são infensos à regulação prevista nos preceitos primários de um determinado ordenamento jurídico e, por consequência, à sanção jurídica da norma ou jurisdição que se imuniza.
Nesse sentido, o conceito se aproxima àquele em que a imunidade foi inicialmente empregada - a biologia -, vez que também neste campo de conhecimento ela é entendida como a capacidade de resistir a um agente causador de doença.
Com efeito, se pelo princípio neminem laedere aquele que causa dano a outrem fica obrigado a responder pelo ilícito, a imunidade - em cujo étimo temos o munus, o dever jurídico de suportar o ônus do comportamento ilícito, contudo marcada pela partícula negativa (i), com a qual se anula o munus - ilide a incidência da norma de imputação da responsabilidade e/ou do exercício da adjucative jurisdiction. Assim:
1. a imunidade parlamentar é o preceito constitucional que assegura ao titular de mandato parlamentar a ausência da obrigação de suportar a incidência de determinadas normas penais relacionadas a palavras, gestos ou votos qua atividade parlamentar, de forma que, embora juridicamente relevante - acusar alguém da prática de um ilícito, por exemplo -, é juridicamente infenso tanto à incidência da norma incriminadora como, por consequência, da sanção correspondente;
2. a imunidade tributária é o preceito normativo que cria para seu destinatário o direito constitucional à não incidência da norma constitutiva da obrigação tributária, de forma que, embora realize na facticidade história a hipótese de incidência da norma tributária, fica, por força da imunidade, infenso do dever de pagar o tributo.
Os dois exemplos acima deduzidos têm sua origem em preceitos constitucionais. O que toca neste trabalho é a de origem internacional, vale dizer, normas de imunidade que se impõe em caráter erga omnes a todos os Estados. Com efeito, para Valadão, as imunidades internacionais são as normas que asseguram “[...] isenção, para certas pessoas, da jurisdição civil, penal, administrativa, por força de normas jurídicas internacionais, originalmente costumeiras, praxe, doutrina, jurisprudência, ultimamente convencionais, constantes de tratados e convenções”. No mesmo sentido segue a lição de Reuter, para quem
[...] ces immunités se présentent comme de corolaires nécessaires de certaines dérogations à l’exclusivité de la compétence territoriale; elles sont rattachées à des règles fondamentales du droit international public et encadrées par des institutions aujourd’hui bien assises sur un plan universel. Il est ainsi en ce qui concerne l’exercice d’un pouvoir qui se présente comme une dérogation licite à l’exclusivité de la souveraineté territoriale et qui comporte, en conséquence de son caractère licite des immunités qui permettent son fonctionnement pratique.
Se deve também a Reuter diferenciação conceitual importante entre imunidades de jurisdição e imunidade jurisdicional. Na primeira, o privilégio de não se submeter à jurisdição adjudicativa de um Estado deferida em favor de um sujeito internacional; no segundo, um alargamento que abarca à imunidade de execução, vale dizer, o privilégio de não ser compelido à satisfação de um título executivo com a respectiva constrição patrimonial pelo poder judiciário de outro Estado.
Em sua importante monografia sobre o assunto, Ernest K Bankas não somente refere-se, como usualmente se faz nos demais manuais, ao princípios par in parem non habet judicium e da igualdade soberana, mas reconstrói, de forma bastante consistente, a sua origem tanto no direito romano como no direito anglo-saxão, apontando a sua origem na ideia absolutista de o que soberano - imperador ou rei - não estaria submetido a nenhuma constrição legal no exercício de suas funções reais, sintetizada nos princípios legibus solutus e the king can do wrong. Quando a soberania passa da pessoa natural para o sujeito de direito internacional Estado, aplica-se a ele os mesmos princípios, embora de forma mitigada: ele é responsável internacionalmente por danos que venha a provocar na esfera de interesses públicos e/ou privados, mas não está sujeito à jurisdição de nenhum outro Estado.
Na literatura internacionalista brasileira, Carmen Tiburcio aportada considerações bastantes relevantes, em particular no contexto da jurisdição adjucativa brasileira, partindo, pois, dos mesmos fundamentos de Bankas, ao aduzir que, uma vez constatada “[...] a jurisdição do Estado acionado, surge questão relativa a outro aspecto da soberania, a imunidade de jurisdição - privilégio conferido pelo direito internacional a alguns entes de estar fora da esfera de atuação desse poder do Estado do foro”.
Essas normas podem ser sistematizadas por alguns critérios, como, por exemplo,
1. a fonte normativa internacional, uma vez que elas podem ser asseguradas tanto por Tratados Internacionais como por costumes internacionais;
2. o caráter pessoal, funcional ou real para a sua determinação: ratione personae: Estados e Organizações Internacionais; ratione officium: Chefes de Estado de Governo e Ministros das Relações Internacionais, representantes Diplomáticos e/ou Consulares; propter rem: aeronaves e navios públicos pertencentes aos Estados; bens móveis e imóveis e ativos financeitos dos Estados etc.
Sobre o caráter ratione officium das imunidades internacionais de Chefes de Estado e demais autoridades públicas, e não personae, é preciso verificar a distinção operada no contexto internacional desde os casos Pinochet e Arrest Warant. Tanto naquela como nesta, a imunidade internacional foi discutida a partir de um critério temporal de efetivo exercício da função de Chefe de Estado - Pinochet - e Ministro das Relações Exteriores - Arrest Warant -, com soluções distintas. Contra Pinochet, a House of Lords deferiu a extradição solicitada pela Espanha por ter afastado a incidência da imunidade internacional de Chefe de Estado arguida pela defesa, uma vez que ele não mais exercia a função. Já no caso Arrest Warant, a CIJ determinou que a Bélgica arquivasse a causa aberta em face do Ministro das Relações Exteriores congolês, e o consequente recolhimento do mandado de prisão, pois Yerodia gozava de imunidade internacional enquanto estivesse no exercício da função.
O que deflui desse cotejo entre as decisões é que se a um se indefere o reconhecimento do privilégio internacional e ao outro se o faz, muito embora em ambos os casos o que está em jogo é tanto o exercício da jurisdição universal como a acusação do cometimento de crimes internacionais próprios, isso se dá em razão da situação concreta: o exercício contemporâneo quando dos julgamentos de função que atrai a regra imunizadora. Logo, parece ser possível afirmar-se que as imunidades são conferidas em razão da função exercida e enquanto ela durar, e não personae.
Pois bem. As imunidades de que se trata são aquelas asseguradas a todos os Estados por fontes costumeiras, isentando-os de se submeterem à jurisdição de outros Estados em razão do princípio par in parem non habet iudicium.
Embora as Nações Unidas tenha logrado aprovar a Convenção das Nações Unidas sobre imunidades de jurisdição dos Estados e suas propriedades durante a 65º Sessão Plenária da Assembleia Geral em 02 de dezembro de 2004, ela não entrou em vigência internacional pelo fato de não ter obtido o número mínimo de ratificações conforme previsto no artigo 30, 1 (30 ratificações); ademais, até o momento ela reuniu 28 Estados assinantes e 23 Estados parte, não figurando o Brasil em nenhuma destas situações.
A convenção foi fruto de um longo processo de estudos pela Comissão de Direito Internacional que se inicia no ano de 1977 e se consuma, após oito relatórios dos anos de 1991, 1994, 1997, 1999, 2000, 2001, 2002 e 2003, com a apresentação do draft à Assembleia Geral. Apesar de todo o esforço, ainda não logrou reunir o apoio internacional necessária à sua vigência, o que em parte se deve a uma distinção que se desenvolveu a partir da década de 1960 referente à sua cisão entre jure imperii e jure gestionis, bem como a relativização dessa última, enquanto se manteve a absolutização daquela primeira.
Mas aos Estados não se assegura somente as imunidades de jurisdição, mas também a de execução, que tem por objetivo ilidir a contrição patrimonial de bem ou ativo de um Estado por decisão judicial de outro.
Essa imunidade foi o cerne do caso NML Capital v Argentina, e que tramitou perante o poder judiciário ganês e o Tribunal Internacional dos Direitos do Mar, conforme a exposição feita por Bankas.
O caso referiu-se à penhora que recaiu sobre a fragata Libertad - uma belonave da armada argentina que é um navio-escola de aspirantes a oficiais - em resposta a um mandado emitido por tribunal estadunidense em Nova Iorque, com o qual se buscava a satisfação de uma dívida proveniente de títulos da dívida pública argentina e que não haviam sido satisfeitos.
A constrição, tendo recaído sobre navio da armada argentina, envolveu, desde o primeiro momento, não somente a alegação de imunidade de jurisdição que a Argentina teria em relação à justiça ganesa, mas principalmente imunidade de execução em relação à justiça norte-americana, uma vez que as normas de imunização, de fato, garantia ampla imunidade jurisdicional.
Em julgamento perante a Corte Superior de Gana, decidiu-se que a constrição não se constituía em uma violação à imunidade de jurisdição da Argentina (que teria natureza procedimental), mas uma execution forcéé / saisie conservatoire, que tinha por escopo assegurar-se a satisfação do crédito executado.
Como resultado dessa decisão ganesa, a Argentina apresentou reclamação perante o Tribunal de Direitos do Mar em face de Gana, pela qual requereu medida cautelar consistente na liberação da belonave, aventando em suas razões tanto a incidência da imunidade jurisdicional como a natureza estatal do barco, sobre o qual recairia imunidade de execução absoluta.
O Tribunal de Direitos do Mar, em decisão provisional, concedeu a medida requerida pela Argentina sob os seguintes fundamentos:
Warship means a ship belonging to the armed forces of a state bearing the external marks distinguishing such ship of its nationality, under the command of an officer duly commissioned by the government or the state and whose name appears in the appropriate service list or its equivalent, and manned by a crew which is under armed forces discipline; considering that a warship is an expression of the sovereignty of the state whose flag it flies; considering that, in accordance with general international law, a warship enjoys immunity, including in internal waters, and that this is not disputed by Ghana.
Logo, parecem ser acertadas as seguintes conclusões parciais:
1. em sentido geral e abrangente, Estados gozam de imunidades jurisdicionais, vale dizer, não somente procedimentais (não ser parte em um processo), mas também material, vale dizer, não se submeter a nenhuma constrição patrimonial por medida judicial de outro Estado - de execução;
2. contemporaneamente a imunidade jurisdicional ainda é regida no âmbito do Direito Internacional geral pelo costume internacional;
3. se na origem a imunidade jurisdicional é de natureza absoluta, com a decomposição da imunidade de jurisdição por acta jure imperii e acta jure gestiones, somente aquela mantém caráter absoluto; esta é relativa;
4. por ser expressão autônoma em relação à imunidade de jurisdição, a imunidade de execução guarda, ainda, natureza absoluta.
4.1 A imunidade de jurisdição na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Estudando-se o desenvolvimento da jurisprudência do STF acerca do assunto verifica-se que ela, primeiramente, acompanha a distinção entre acta jure imperii e acta jure gestiones. Doutro giro, e como consequência da imunidade de jurisdição do Estado tem-se a imunidade de execução de bens e ativos do Estado em relação à jurisdição de outros Estados.
A jurisprudência do STF até o caso que ora se comenta reconheceu todas essas dimensões.
Assim, antes da Constituição Federal de 1988, o STF entendia que a imunidade de jurisdição era ampla e absoluta. Assim, a Apelação Cível 9705, de 09/09/1987, Relator Moreira Alves:
APELAÇÃO CÍVEL CONTRA DECISÃO PROLATADA EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO. ESTA CORTE TEM ENTENDIDO QUE O PRÓPRIO ESTADO ESTRANGEIRO GOZA DE IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO, NÃO SÓ EM DECORRÊNCIA DOS COSTUMES INTERNACIONAIS, MAS TAMBÉM PELA APLICAÇÃO A ELE DA CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE RELAÇÕES DIPLOMATICAS, DE 1961, NOS TERMOS QUE DIZEM RESPEITO A IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO ATRIBUIDA A SEUS AGENTES DIPLOMATICOS. PARA AFASTAR-SE A IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO RELATIVA A AÇÃO OU A EXECUÇÃO (ENTENDIDA ESTA EM SENTIDO AMPLO), E NECESSARIO RENUNCIA EXPRESSA POR PARTE DO ESTADO ESTRANGEIRO. NÃO OCORRENCIA, NO CASO, DESSA RENUNCIA. APELAÇÃO CÍVEL QUE NÃO SE CONHECE EM VIRTUDE DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO.
(ACi 9705, Relator(a): MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/1987, DJ 23-10-1987 PP-23154 EMENT VOL-01479-01 PP-00117)
Já no contexto da Constituição de 1988, o STF entendeu que a imunidade de jurisdição deveria ser decomposta entre jus gestionis e jura imperii, sendo que aquela primeira não afastaria a jurisdição nacional em relação ao Estado estrangeiro, mas somente esta. O leading case é Apelação Cível 9696, Relator Sidney Sanches:
ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE JUDICIÁRIA. CAUSA TRABALHISTA. NÃO HÁ IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO PARA O ESTADO ESTRANGEIRO, EM CAUSA DE NATUREZA TRABALHISTA. EM PRINCÍPIO, ESTA DEVE SER PROCESSADA E JULGADA PELA JUSTIÇA DO TRABALHO, SE AJUIZADA DEPOIS DO ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 (ART. 114). NA HIPÓTESE, POREM, PERMANECE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL, EM FACE DO DISPOSTO NO PARAGRAFO 10 DO ART. 27 DO A.D.C.T. DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, C/C ART. 125, II, DA E.C. N. 1/69. RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA SE AFASTAR A IMUNIDADE JUDICIÁRIA RECONHECIDA PELO JUÍZO FEDERAL DE PRIMEIRO GRAU, QUE DEVE PROSSEGUIR NO JULGAMENTO DA CAUSA, COMO DE DIREITO.
(ACi 9696, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 31/05/1989, DJ 12-10-1990 PP-11045 EMENT VOL-01598-01 PP-00016 RTJ VOL-00133-01 PP-00159)
No julgamento desse recurso ocorreu uma discussão muito importante. Para Sanches a mitigação da imunidade de jurisdição seria uma consequência das normas constitucionais de 1988 que priorizava os valores sociais do trabalho e os direitos do trabalhador sobre a imunidade jura gestionis. Já Francisco Rezek retificou a compreensão ao comprovar como o Direito Internacional operava a distinção jura gestionis-jura imperii desde meados da década de 1960, distinção assimilada pelo direito internacional costumeiro.
No que toca, por fim, à imunidade de execução, o STF não tem relativizado a sua incidência pelo direito brasileiro, conforme recente julgado da Corte no ARE 1292062, Relator Dias Toffoli:
EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Direito Internacional. Estado estrangeiro. Imunidade. Execução trabalhista. Imunidade de execução e imunidade de jurisdição. Precedentes. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reiterado o entendimento de que, relativamente aos processos de execução, se impõe a imunidade absoluta dos Estados estrangeiros em relação à jurisdição brasileira, em razão do que dispõem as Convenções de Viena de 1961 e 1963, salvo na hipótese de renúncia expressa. 2. Não se pode confundir a imunidade de execução com a imunidade de jurisdição, a qual vem sendo relativizada, em algumas situações, pela Corte. 3. Agravo regimental não provido.
(ARE 1292062 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 08/06/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-158 DIVULG 06-08-2021 PUBLIC 09-08-2021
Essa decisão tem antecedente, e.g., no Recurso Extraordinário 222368, Relator Celso de Mello, cuja ementa tem o seguinte conteúdo:
E M E N T A: IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO - RECLAMAÇÃO TRABALHISTA - LITÍGIO ENTRE ESTADO ESTRANGEIRO E EMPREGADO BRASILEIRO - EVOLUÇÃO DO TEMA NA DOUTRINA, NA LEGISLAÇÃO COMPARADA E NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: DA IMUNIDADE JURISDICIONAL ABSOLUTA À IMUNIDADE JURISDICIONAL MERAMENTE RELATIVA - RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. OS ESTADOS ESTRANGEIROS NÃO DISPÕEM DE IMUNIDADE DE JURISDIÇ ÃO, PERANTE O PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO, NAS CAUSAS DE NATUREZA TRABALHISTA, POIS ESSA PRERROGATIVA DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO TEM CARÁTER MERAMENTE RELATIVO. - O Estado estrangeiro não dispõe de imunidade de jurisdição, perante órgãos do Poder Judiciário brasileiro, quando se tratar de causa de natureza trabalhista. Doutrina. Precedentes do STF (RTJ 133/159 e RTJ 161/643-644). - Privilégios diplomáticos não podem ser invocados, em processos trabalhistas, para coonestar o enriquecimento sem causa de Estados estrangeiros, em inaceitável detrimento de trabalhadores residentes em território brasileiro, sob pena de essa prática consagrar censurável desvio ético-jurídico, incompatível com o princípio da boa-fé e inconciliável com os grandes postulados do direito internacional. O PRIVILÉGIO RESULTANTE DA IMUNIDADE DE EXECUÇÃO NÃO INIBE A JUSTIÇA BRASILEIRA DE EXERCER JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS DE CONHECIMENTO INSTAURADOS CONTRA ESTADOS ESTRANGEIROS. - A imunidade de jurisdição, de um lado, e a imunidade de execução, de outro, constituem categorias autônomas, juridicamente inconfundíveis, pois - ainda que guardem estreitas relações entre si - traduzem realidades independentes e distintas, assim reconhecidas quer no plano conceitual, quer, ainda, no âmbito de desenvolvimento das próprias relações internacionais. A eventual impossibilidade jurídica de ulterior realização prática do título judicial condenatório, em decorrência da prerrogativa da imunidade de execução, não se revela suficiente para obstar, só por si, a instauração, perante Tribunais brasileiros, de processos de conhecimento contra Estados estrangeiros, notadamente quando se tratar de litígio de natureza trabalhista. Doutrina. Precedentes.
(RE 222368 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 30/04/2002, DJ 14-02-2003 PP-00086 EMENT VOL-02098-02 PP-00344)
Em conclusão parcial, é possível chegar ao que segue:
1. embora seja uma terra incognita para a maioria dos estudiosos brasileiros, o Direito Nacional reconhece a legitimidade e a validade dos costumes internacionais, embora não haja, assim como se dá em relação ao direito internacional convencional, qualquer preceito constitucional relacionado ao modo de internalização das normas;
2. a jurisprudência do STF tem acompanhado as transformações das imunidades de jurisdição dos Estados ao longo de sua jurisprudência, desde aquela unificada e absoluta, até a atual, em que ela se distingue entre jus gestionis - relativa - e jura imperii - absoluta, bem como a imunidade de execução, essa também de caráter absoluto.
Como visto, o ARE 954.858/RG 944 vêm pôr a discussão em novos termos, com reflexos bastante importantes, interna e externamente.
5. CONSEQUÊNCIAS POSSÍVEIS E ATUAIS DO BANZEIRO
A primeira consequência possível em relação à decisão do STF no ARE 954.858 é a da Alemanha ingressar com um dissenso em face do Brasil perante a CIJ, assim como já o fez em duas ocasiões contra a Itália, ambas relacionadas a crimes de guerra e/ou crimes contra a humanidade no contexto da 2ª GGM.
Como citado de passagem, no case Jurisdictional Immnunites of the State, Germany vs Italy, de 2012, a CIJ reconheceu o caráter absoluto da imunidade de jurisdição do Estado alemão pela maioria 12/15 de seus juízes, mesmo que os fatos ilícitos tivessem sido praticados em território italiano e contra cidadãos italianos (territorial tort) [Distomo Massacre], uma vez que o Direito Internacional não admite a grave violação dos Direitos Humanos como exceção às imunidades internacionais dos Estados. Para a Corte, não há conflito entre a natureza de norma de jus cogens que caracteriza a proscrição de crimes de guerra e a imunidade jurisdicional, já que esta última somente veda que um Estado exerça jurisdição sobre outro Estado, não sendo uma barreira aq que o Estado interessado busque submeter o dissenso acerca da (i)legalidade do comportamento nos foros internacionais competentes, não tendo a Corte, ademais, encontrado parâmetros internacionais e nacionais a se afastar a imunidade jurisdicional em precedentes relevantes. Em razão disso, por 14/15 votos a Itália foi condenada a anular a decisão em face da Alemanha.
Em cumprimento à decisão da Corte Internacional de Justiça, a Itália aprovou a Lei 5/2013, pela qual determinou que as imunidades jurisdicionais fossem conhecidas de ofício pelos tribunais italianos. No entanto, um tribunal de Florença entendeu que referida norma padecia do vício de inconstitucionalidade, tendo, com isso, remetido a sua apreciação pela Corte Constitucional italiana.
Vale lembrar para aclarar dúvidas, que o sistema de controle de constitucionalidade na Itália é concentrado; caso um tribunal ordinário entenda que uma norma é inconstitucional, suscita-se o procedimento incidental de remessa da controvérsia constitucional para a Corte, suspendendo-se o processo até a manifestação do órgão, conforme o artigo 1º da Lei Constitucional 1 de fevereiro de 1948
Pois bem, a Corte Constitucional italiana decidiu pela Sentença 238/2014 que graves violações aos Direitos Humanos não permitem, segundo a Constituição italiana, reconhecer a imunidade de jurisdição, prevalecendo, no caso, a norma constitucional italiana em relação às normas internacionais; que o sistema constitucional italiano prevê o acesso ao poder judiciário como um direito absoluto, razão pela qual, ao se aprovar a Lei 5/2013, priva-se o cidadão italiano de buscar a reparação dos danos suportados. Essa decisão levou a Alemanha a ingressar com nova reclamação perante a CIJ em 2022 - caso of jurisdictional immunities of the State and measures of constraint against State-owned property (Germany v. Italy) -, ainda sem deliberação pela Corte.
Sobre esta sentença em específico, Volpe et al organizaram um livro bastante interessante no qual procuraram compreender, a partir de um olhar crítico, as diversas implicações decorrentes da decisão da Corte Constitucional italiana, destacando-se dentre as diversas contribuições a de Tomuschat, o qual chama a atenção para a ilusão inerente á busca de uma “justiça perfeita”, uma vez que a decisão “[...] does not see that jurisdictional immunity constitutes an essential element of the current system of international law based on sovereign equality [...]”, uma vez que a regra estabelece a autocontenção do exercício da jurisdição nacional às esferas de vigência e eficácia compatíveis com o Direito Internacional, e que nenhum
[…] state is prepared to see its governmental conduct supervised by the judiciary of another country and appropriate reparation being imposed upon it. By attributing to each state its own sphere of jurisdiction and establishing rules for the settlement of cross-boundary disputes, international law contributes to upholding peace in interstate relations.
Para Tomuschat, danos e reparações de guerra têm instrumentos específicos no âmbito do Direito Internacional - tratado internacional de paz e responsabilidade coletiva -, sendo uma panaceia a crença de que seja possível a busca de reparações individuais contra as regras internacionais que asseguram a igualdade soberana entre os Estados por meio da reciprocidade das imunidades jurisdicionais.
A segunda consequência ocorreu com a alteração da jurisprudência do STJ.
Conforme visto em espaço próprio, antes da RG 944, a Corte entendia pelo caráter absoluto da imunidade jura imperii. Assim, no Agravo Interno no Recurso Ordinário 109/RJ o Min. Luis Felipe Salomão decidiu:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ORDINÁRIO. DIREITO INTERNACIONAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. NAUFRÁGIO DE EMBARCAÇÃO BRASILEIRA POR SUBMARINHO ALEMÃO. ATO PRATICADO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIA. IMUNIDADE ABSOLUTA.
1. Embora contrário ao entendimento pessoal deste relator, apresentado quando do julgamento do RO 60/RJ, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que a República Federal da Alemanha não se submete à jurisdição nacional, para responder à ação de indenização por danos morais e materiais, decorrentes de ofensiva militar realizada durante a Segunda Guerra Mundial, em razão de a imunidade acta iure imperii revestir-se de caráter absoluto.
2. Agravo interno não provido.
(AgInt no RO n. 109/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/10/2016, DJe de 4/11/2016.)
Ao se submeter à RG 944, o mesmo ministro assim relatou no Recurso Ordinário 76/RJ:
RECURSO ORDINÁRIO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO (ARTIGO 1.040, INCISO II, DO CPC). AÇÃO INDENIZATÓRIA AJUIZADA POR PESSOA RESIDENTE NO BRASIL EM FACE DE ESTADO ESTRANGEIRO. ALEGADOS DANOS MATERIAIS E MORAIS DECORRENTES DA MORTE DO TIO-AVÔ DOS AUTORES POR OCASIÃO DE NAUFRÁGIO DE EMBARCAÇÃO BRASILEIRA PROVOCADO POR SUBMARINO ALEMÃO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL.
1. Consoante assente pelo STF, no âmbito de julgado submetido à sistemática da repercussão geral (Tema 944), "os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição" (ARE n. 954.858/RJ, relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 23.8.2021, Processo Eletrônico, Repercussão Geral-Mérito, DJe 24.9.2021).
2. Na hipótese dos autos, uma vez reconhecida a imprescritibilidade, inclusive para os sucessores, da pretensão de reparação de grave ofensa à dignidade da pessoa humana causada em virtude de conduta - omissiva ou comissiva - praticada a mando ou no interesse de detentores de poder estatal (AgRg no RE n. 715.268/DF, relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 6.5.2014, DJe 23.5.2014), bem como constatada a superação (overruling) da jurisprudência desta Corte que preconizava a imunidade absoluta da nação estrangeira por atos de guerra, afigura-se impositiva a reforma da sentença extintiva da ação indenizatória, cujo julgamento deverá retomar o seu devido curso, na linha do entendimento pessoal deste relator.
3. Recurso ordinário provido para, afastadas a prescrição da pretensão autoral e a imunidade de jurisdição da República Federal da Alemanha, determinar o retorno dos autos à origem para prosseguimento do feito.
(RO n. 76/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/6/2022, DJe de 17/6/2022.)
Em síntese, hoje tanto o STF como o STJ entendem que a imunidade jurisdicional não é assegurada aos Estado em razão da incidência da RG 944, devendo o Estado ser citado para compor o polo passivo da lide.
Terceira consequência, existe uma autonomia entre imunidade de jurisdição e imunidade de execução, e segundo a jurisprudência atual do STF, é absoluta, assim como determinado pelo costume internacional.
Suponha-se que após longos anos de tramitação perante o Poder Judiciário brasileiro, a sentença condenatória em face de um Estado transite em julgado; suponha-se, ademais, que seja proposta a sua execução. Mantido o entendimento da Corte, perfeitamente adequado com o Direito Internacional, tratar-se-á de decisão inexecutável no território brasileiro. Qual a finalidade de se criar esperança em algo que é inexecutável?
Por fim, e não menos importante, em razão do princípio da reciprocidade que giza as relações entre Estados, nada ilidirá que a Alemanha, ou mesmo os países membros da União Europeia, passem a afastar a imunidade de jurisdição em relação ao Estado brasileiro, mormente naqueles casos de brasileiros naturalizados ou estrangeiros que tenham vítimas no período da ditadura militar ou mesmo depois. Caso significativo, nesse sentido, é o julgamento, na Itália, da Operação Condor, pela qual militares brasileiros foram condenados por terem praticado crimes contra a humanidade em relação a brasileiros e italianos que residiam no Cone Sul pela Corte de Assisse, Roma.
Há um dito popular no Brasil segundo o qual “pau que dá em Chico, dá em Francisco”, ou conforme dizia o Conselheiro Acácio: as consequências vêm sempre depois...: estaria o Brasil “aberto” a que os tribunais de outros Estados passassem a sindicar os acta jure imperii sob a alegação de “graves violações dos Direitos Humanos”?
Sendo bastante claro, parece óbvio que a decisão do STF no ARE 954.858 não reúne pressupostos de universalidade, quanto mais pelo uso retórico do conceito de derrotabilidade, uma vez que, compulsando-se com o rigor necessário o voto do Ministro Luiz Fachin, não se encontra uma comprovação clara e rigorosa de que seja possível se afastar a normas internacionais tão relevantes às relações entre Estados como a de imunidade jurisdicional.
Qualquer prático que trafega pelos rios amazônicos o sabe dizer muito bem sobre a necessidade de prudência na pilotagem: manter o barco navegando e navegável pressupõe não joga-lo contra os banzeiros; estes tanto podem acalentar sonos como ser o pior pesadelo em dias de procelas.
O mesmo vale como conclusão geral deste trabalho: não se “derrotam” normas internacionais tão importantes sem que ocorram consequências deletérias em termos de segurança jurídica e estabilidade das relações internacionais, haja vista a necessária deliberação dos próprios sujeitos internacionais envolvidos em sua aplicação, a saber, os Estados; e como o evidencia a baixíssima adesão à Convenção sobre Imunidades da ONU, ele não se encontram dispostos a abdicar de uma aplicação estrita e rigorosa da imunidade jurisdicional.