1. INTRODUÇÃO
A integração regional e as relações comerciais entre Brasil e Argentina estiveram fora do circuito acadêmico nos últimos anos, mas voltaram ao debate em 2023. Nos meios de comunicação, a reaproximação política entre as duas mais importantes economias da América do Sul despertou especial atenção quando da retomada da proposta de criação de uma moeda de circulação comum regional.
A confusão terminológica entre os termos “moeda comum” e “moeda única”, não administrada a contento pela imprensa, deu ensejo a contexto de expressiva desinformação da opinião pública brasileira. Nesse sentido, a responsabilidade da academia de fornecer insumos para ilustrar o debate funcionou como motivação principal deste estudo.
Em linhas gerais, vários são os questionamentos que surgem nesse debate monetário regional. Haveria uma intenção política clara de implementação de uma moeda única no Mercosul? Qual seria a diferença entre moeda única e moeda comum? Seria possível a implementação imediata desses modelos monetários? Todos esses questionamentos confluem para o problema que este escrito pretende reagir, sem a intenção de esgotar: qual seria o panorama histórico e a posição atual do debate acerca da implementação de uma moeda de circulação comum entre o Brasil e a Argentina?
A pesquisa pretende, a partir da investigação jurídica da normativa internacional regional e bilateral a respeito do tema - cotejada com as perspectivas histórica e jornalística - dedutivamente traçar um panorama da trajetória percorrida pelos Estados envolvidos nessa temática para, indutivamente, buscar compreender as possibilidades postas e os desdobramentos possíveis do atual momento da relação política regional.
Na primeira parte do estudo, as possíveis vantagens e desvantagens competitivas e impactos nos custos de transação da adoção de alternativas ao uso de moedas de terceiros Estados nas relações bilaterais são abordadas. Em um segundo momento, a diferença entre moeda única e moeda comum precisa ser consolidada para introduzir o percurso histórico dos debates a respeito de uma moeda de circulação comum entre Brasil e Argentina e também no contexto regional do Mercosul. Finalmente, na última parte do artigo, pretende-se descrever a posição atual do debate e contribuir, no uso das atribuições da academia, para a melhor compreensão das oportunidades e desafios que se apresentam em contexto de falta de clareza das intenções dos governos, de confusão conceitual da imprensa sobre temas econômicos e de grande desinformação orgânica da sociedade.
2. A REDUÇÃO DE CUSTOS DE TRANSAÇÃO E A BUSCA DE ALTERNATIVAS AO DÓLAR E OUTRAS MOEDAS ESTRANGEIRAS: MOEDA ÚNICA E MOEDA COMUM
A busca pela redução dos custos de transação comercial e de alternativas ao uso do dólar no comércio internacional, evitando as variações cambiais, incentivou os Estados a desenvolverem formas diferentes de engajamento no comércio bilateral.
No Mercosul, por exemplo, esse movimento resultou na aprovação da Decisão nº 25/07 do Conselho do Mercado Comum que criou o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) para o comércio realizado entre os Estados Membros do Mercosul. Posteriormente, reconhecendo a importância do mecanismo para o aprofundamento da integração regional, foi aprovada a Decisão nº 09/09 do Conselho do Mercado Comum que estendeu o uso desse mecanismo para transações de qualquer natureza realizadas entre os Estados Membros.
Mais recentemente, os Governos do Brasil e da República Popular da China se engajaram em tratativas bastante noticiadas para deixarem o dólar americano de lado e passarem a utilizar moeda local para as suas transações comerciais. Um acordo com esse objeto poderá impactar de maneira importante o comércio bilateral, por conformar medida facilitadora do comércio entre esses países que, somente no ano de 2022, representou um fluxo comercial na ordem de US$ 150 bilhões de dólares com saldo positivo para o Brasil de US$ 28.6 bilhões de dólares.
Outra forma de promoção da redução de custos de transação, deixando de utilizar uma moeda estrangeira para as transações comerciais, está na adoção e/ou implementação de uma moeda regional. As discussões sobre essa proposta na América do Sul evidenciaram na sociedade brasileira uma certa confusão de conceitos sobre “moeda comum” e “moeda única”.
Apesar de serem distintas entre si, tanto a moeda comum quanto a moeda única possuem pontos de contato e podem ser implementadas visando, por exemplo, uma maior integração regional, diminuição da dependência de moeda estrangeira, intensificação das trocas comerciais intrazona que, como consequência, resultariam em maior dinamismo econômico regional. Em suma, ambos os instrumentos seriam facilitadores do comércio.
Apesar de apresentarem semelhanças, suas diferenças são bem marcantes e se referem, principalmente, nas variações de complexidade para a adoção de uma ou outra medida.
No caso da moeda comum, por exemplo, sua implementação não visa a substituição das moedas domésticas. Esse modelo possui uma função que a aproxima mais da experiência brasileira com a Unidade Real de Valor (URV) - na transição do Cruzeiro Real para o Real em 1994 - e destina-se quase exclusivamente para as transações comerciais entre os países que a adotam. Para países como a Argentina, que enfrentam problemas crônicos de escassez de dólares no mercado, seria uma solução para contornar esse fator limitador de sua capacidade de se engajar no comércio internacional e, ao mesmo tempo, para reduzir os custos de transação, considerada a possibilidade de neutralização das variações cambiais.
A moeda única, por sua vez, possui como objetivo substituir as unidades monetárias domésticas e está inserida em um processo de união monetária entre dois ou mais países de uma região e, para isso, exige da sua implementação que seja criada uma autoridade monetária única, como um Banco Central regional, por exemplo.
Uma série de fatores condicionam, contudo, a implementação de uma moeda única regional como, por exemplo, a existência de vínculos profundos comerciais e financeiros dos países envolvidos, a existência de um grau de convergência entre os seus ciclos econômicos, a construção de uma base institucional que uniformize as políticas fiscal e monetária, e também a existência de vontade política de seus líderes, entre outros. Esses requisitos denotam a exigência de um nível de coordenação macroeconômica muito maior e mais profundo que aquele requerido pela outra alternativa monetária.Nesse sentido, infere-se que a criação de uma moeda única depende do quão integrado é o mercado regional.
Existem atualmente algumas regiões que optaram pela implementação de uma união monetária como, por exemplo, a União Europeia - que adotou o Euro - e a Organização dos Estados do Caribe Oriental ou das Caraíbas Orientais (OECO) - que adotou o dólar caribenho. Existem, ainda, outras regiões que ainda estão em processo de implementação como no caso da Comunidade da África Oriental.
Um ponto em comum desses exemplos mencionados é que neles houve um instrumento estabelecendo a criação de uma entidade monetária responsável pela emissão e pelo controle da nova moeda, coordenação das políticas macroeconômicas para mitigar as assimetrias regionais e, sobretudo, vontade política das partes de darem continuidade ao processo de integração e implementação da moeda única.
A Europa possui um dos processos de integração mais aprofundados atualmente. Suas origens estão em 1958, quando foi criada a Comunidade Econômica Europeia (CEE). O Euro foi lançado em 1999 e se tornou moeda de circulação em 2002. Nada disso, porém, aconteceu sem planejamento. Em 1988 foi estabelecido pelo Conselho Europeu pela implementação de uma União Económica e Monetária (UEM), que passaria por três fases distintas iniciando no dia 1 de julho de 1990 e findaria no dia 01 de janeiro de 1999 e, ao longo desse processo foi criado, em 1998, o Banco Central Europeu.
A criação da Organização dos Estados do Caribe Oriental ou das Caraíbas Orientais (OECO) foi estabelecida em 1981 mediante a assinatura do Tratado de Basseterre e abrange um total de 11 estados (Estados membros e Associados). Desse total, 8 utilizam o Dólar Caribenho e possuem como autoridade monetária o Banco Central do Caribe Oriental, que substituiu a Autoridade Monetária do Caribe Oriental em 1983.
A Comunidade da África Oriental, por sua vez, é um projeto de integração regional bastante ousado. Além da união monetária que está em processo de implementação, um de seus objetivos é a criação de uma federação de estados chamada de Federação da África Oriental, cuja a população, se concretizada, ultrapassará a do Brasil e totalizaria, hoje, 283 milhões de pessoas. O seu tratado constitutivo foi assinado em 1999 e entrou em vigor em 7 de julho de 2000. Inicialmente, era um projeto que envolvia três Estados, a República do Quênia, da Tanzânia e Uganda. Desde a sua implementação, a Comunidade da África Oriental se expandiu para os países vizinhos. Em 2007, a República de Ruanda e Burundi se tornaram membros plenos, em 2016 foi a vez do ingresso da República do Sudão do Sul e, em 2022, a República Democrática do Congo passou a fazer parte.
Apesar de ainda estarem em processo de implementação de uma União Monetária, com a implementação de um Banco Central regional em andamento, é de se destacar que os objetivos de seus Estados membros são bastante ambiciosos, justamente por se tratar de Estados que até recentemente passaram por crises humanitárias sem precedentes. Ruanda, por exemplo, teve que se reinventar após o genocídio da população Tutsi de 1994 gerando uma crise humanitária que transbordou as fronteiras nacionais afetando os países da região dos Grandes Lagos Africanos. O Sudão do Sul, por sua vez, é um Estado recém formado, sua independência do Sudão aconteceu somente em 2011 seguido da crise de Darfur. Também a existência de grupos rebeldes na República Democrática do Congo não pode deixar de ser aqui mencionada. Não se trata, portanto, de uma região com um histórico de estabilidade política, mas mesmo nesse contexto adverso esses Estados optaram pelo estreitamento de seus laços regionais.
Esses são apenas alguns exemplos de iniciativas regionais integracionistas que optaram pelo estabelecimento de uma união monetária. Três regiões distintas, com desafios e objetivos próprios de sua conjuntura política, economia e história, mas, independentemente de suas peculiaridades, em todos eles a vontade política prevaleceu.
3. DE MOEDA ÚNICA À MOEDA COMUM REGIONAL: COMO A PROPOSTA MUDOU NO TEMPO
3.1. Retrospectiva da proposta
A proposta de se adotar uma moeda de uso regional não é nova e possui suas origens no período da redemocratização, na década de 80. Embalados pelo espírito de aproximação e decididos a estabelecer um novo tipo de relação bilateral, os governos do Brasil e da Argentina, representados pelos presidentes José Sarney e Raul Alfonsín, decidiram celebrar diversos acordos bilaterais.
Dentre os acordos firmados, um se destaca por tratar especificamente da adoção de uma moeda comum para os dois países. O Protocolo nº 20, assinado em 17 de julho de 1987, tratou da criação de uma unidade monetária comum para uso nas transações regionais das duas maiores economias da América do Sul e definiu etapas e prazos a serem seguidos.
O art. 1º do referido Protocolo estabelece que a nova moeda seria chamada de “Gaúcho”. Seu texto determinava a criação de um “Fundo de Reservas” que seria administrado pelos Bancos Centrais dos dois países e fixou o prazo de 30 de outubro de 1987 para que os Bancos Centrais estabelecessem um “Acordo Intercambiário” para a implementação da nova moeda. Apesar de suas diversas dimensões e complexidade, o tema foi tratado de maneira bastante simples e não havia no acordo, por exemplo, previsão de criação de uma entidade monetária comum, como um Banco Central regional.
O objetivo principal da proposta era deixar de usar o dólar como moeda de troca em virtude da escassez de moeda que os dois países enfrentavam naquele momento. Para além disso, era um momento em o Brasil, sobretudo, enfrentava os males da hiperinflação. Era interessante, portanto, para ambos que se pensasse em uma alternativa que pudesse retirá-los da dependência do dólar e estabelecer uma nova medida de valor capaz de contornar os desafios ao comércio exterior que se apresentavam.
Apesar dos acordos firmados e da intenção de ambos os Governos, a moeda “Gaúcho” nunca saiu do papel e a proposta caiu no esquecimento, mas isso não impediu que novas iniciativas nesse sentido posteriormente surgissem.
A ideia de uma moeda única tomou força nos anos 90, dessa vez já no contexto do Mercado Comum do Sul - Mercosul - durante a XIV Reunião do Conselho do Mercado Comum em Ushuaia, Argentina, em 24 de julho de 1998. Na declaração conjunta dos presidentes dos Estados membros do Mercosul foi incluída previsão, desta vez sem prazos, para o estabelecimento de uma moeda única no Mercosul.
O tema retorna nos anos seguintes em algumas ocasiões. O então incumbente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, inclusive, chegou a falar sobre a adoção de um “pequeno Maastrich” pelo Mercosul em junho de 1999 durante negociações de uma área de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que lançou o Euro em 1º de janeiro daquele ano.
Apesar das declarações em reuniões e documentos da organização regional, nem todos os membros do Mercosul eram entusiastas da proposta de moeda única.
O Presidente do Uruguai, Jorge Batlle, por exemplo, em 1º de dezembro de 1999, defendeu a criação de uma organização supranacional e criticou a pressa para se adotar uma moeda única em contexto no qual nem mesmo uma zona de livre comércio havia sido concluída na região. Sua declaração já denota um certo descolamento dos outros países e se apresenta como um indício da insatisfação uruguaia com a arquitetura mercosulina, por entender haver grandes assimetrias entre os seus Estados membros.
Nesse sentido, Briceño-Ruiz discorre de maneira precisa sobre a insatisfação tanto do Uruguai como do Paraguai, sobretudo com o que chama de “unilateralismo”, que seria nada mais que o bilateralismo na forma do eixo político entre Brasil e Argentina. Essa insatisfação levou aos dois menores membros do Mercosul a buscarem acordos de livre comércio com terceiros Estados, exemplo de Taiwan, Estados Unidos e, mais recentemente, com a China. Esses acordos não avançaram, contudo, em virtude das restrições impostas pelo Mercosul aos seus membros quando do estabelecimento de acordos de comércio extrazona. A exceção se faz no último caso, o da China, por ser uma questão que ainda não foi resolvida.
As assimetrias denunciadas pelo Paraguai e Uruguai ficam mais evidentes quando colocadas em números. Quando tomados apenas os dados do Produto Interno Bruto e da população dos países membros do Mercosul, o Brasil sozinho responde com mais de 70% do PIB e quase 80% da população mercosulina, seguido da Argentina como os dois membros com maior presença regional, conforme se extrai das Figura 1 e 02 a seguir.
Em janeiro de 2003, em visita oficial ao Brasil, o presidente da Argentina, Eduardo Duhalde, juntamente com o então presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, resgataram o tema da moeda única com a proposta de criação de um Instituto Monetário para que se pudesse discutir a implementação da moeda regional no Mercosul.
A proposta do Instituto foi levada ao Grupo de Monitoramento Macroeconômico do Mercosul (GMM) que em sua reunião de 10 e 11 de junho de 2003, inclusive, chegou a incluir como proposta de debate para a reunião seguinte o tema do Instituto Monetário e de moeda comum. Importa destacar, contudo, que nesse momento não houve referência à implementação de uma moeda única como nas outras vezes, e como proposto pelos presidentes Lula e Duhalde em janeiro daquele mesmo ano. Percebe-se que nesse momento específico do processo regional a proposta de moeda única foi posta de lado, seja no marco da integração ou mesmo bilateralmente e que, a partir de então, as negociações com viés monetário passaram a tratar da adoção de um sistema de moeda comum.
Na reunião seguinte do GMM, contudo, que ocorreu em 14 de outubro de 2003, o tema do Instituto foi suspenso e não se tratou da criação da moeda comum, como havia sido proposto na reunião anterior. Mais uma vez a proposta de moeda regional foi descontinuada.
No caso brasileiro é interessante notar que a mudança da proposta coincide com dois fatores macroeconômicos importantes: o sucesso do Plano Real em controlar a inflação, persistente e desafiadora nos anos 80 e no início de 90; a robusta acumulação de reservas internacionais, conforme se extrai da Figura 3 e Quadro 1, abaixo.
Brasil | Argentina | Paraguai | Uruguai | |
1985 | 226 | - | 24,8 | 72,2 |
1986 | 147,1 | - | 31,7 | 76,4 |
1987 | 228,3 | - | 21,7 | 63,6 |
1988 | 629,1 | - | 22,6 | 62,2 |
1989 | 1.430 | - | 25,6 | 80,4 |
1990 | 2.950 | - | 38,2 | 112,5 |
1991 | 432,8 | - | 24,3 | 102 |
1992 | 952 | - | 15,1 | 68,5 |
1993 | 1.930 | - | 18,3 | 54,1 |
1994 | 2.080 | - | 20,6 | 44,7 |
1995 | 66 | - | 13,4 | 42,2 |
1996 | 15,8 | - | 9,8 | 28,3 |
1997 | 6,9 | - | 7 | 19,8 |
1998 | 3,2 | 0,9 | 11,6 | 10,8 |
1999 | 4,9 | -1,2 | 6,8 | 5,7 |
2000 | 7 | -0,9 | 9 | 4,8 |
2001 | 6,8 | -1,1 | 7,3 | 4,4 |
2002 | 8,4 | 25,9 | 10,5 | 14 |
2003 | 14,7 | 13,4 | 14,2 | 19,4 |
2004 | 6,6 | 4,4 | 4,3 | 9,2 |
2005 | 6,9 | 9,6 | 6,8 | 4,7 |
2006 | 4,2 | 10,9 | 9,6 | 6,4 |
2007 | 3,6 | 8,8 | 8,1 | 8,1 |
2008 | 5,7 | 8,6 | 10,2 | 7,9 |
2009 | 4,9 | 6,3 | 2,6 | 7,1 |
2010 | 5 | 10,5 | 4,6 | 6,7 |
2011 | 6,6 | 9,8 | 8,2 | 8,1 |
2012 | 5,4 | 10 | 3,7 | 8,1 |
2013 | 6,2 | 10,6 | 2,7 | 8,6 |
2014 | 6,3 | - | 5 | 8,9 |
2015 | 9 | - | 3,1 | 8,7 |
2016 | 8,7 | - | 4,1 | 9,6 |
2017 | 3,4 | 25,7 | 3,6 | 6,2 |
2018 | 3,7 | 34,3 | 4 | 7,6 |
2019 | 3,7 | 53,5 | 2,8 | 7,9 |
2020 | 3,2 | 42 | 1,8 | 9,8 |
2021 | 8,3 | 48,4 | 4,8 | 7,7 |
2022 | 9,4 | 72,4 | 9,5 | 9,1 |
Fonte: Fundo Monetário Internacional
Após uma queda constante das reservas internacionais brasileiras no período que vai de 1996 até 2000, o período que se estende de 2001 até 2012 é marcado por um acúmulo constante e expressivo, saltando de U$ 35,87 bilhões em 2001 para U$ 373,16 bilhões em 2012. Desde então o país conseguiu manter com pequenas variações esse patamar. A Argentina, por sua vez, na série histórica, só conseguiu a máxima de U$ 66,22 bilhões no ano de 2018, mantendo como padrão do país poucas reservas internacionais à sua disposição.
Quando observado o contexto inflacionário, é visível os efeitos do Plano Real no Brasil. Sua implementação ocorreu em 1994, quando a inflação brasileira marcou 2.080%, no ano seguinte, em 1995, a inflação foi reduzida para 66%, em 1996 foi de 15,8% e em 1997 foi de 6,9%. Desde então, a inflação se manteve relativamente baixa. Do lado argentino, não há dados nas fontes consultadas, por exemplo, do período de 1985 até 1997 e, posteriormente, entre 2014 e 2016. Do analisado, é possível concluir que, desde o ano de 2010 a Argentina manteve como padrão uma inflação na casa dos dois dígitos e que desde 2017 o índice está em trajetória ascendente, atingindo em 2022 o valor de 72,4%.
Esses fatores podem ter desestimulado a busca de um arranjo monetário regional por parte dos governos brasileiros, uma vez que o país passou a não mais conviver com a escassez de reservas internacionais e conviveu com cenário de inflação controlada. Essas assimetrias podem sugerir, ao menos em parte, os motivos pelos quais a proposta foi sendo diluída ao longo dos anos.
Desde o ano de 2003 pouco - ou quase nada - se discutiu sobre moeda regional, seja comum ou única, no Mercosul. O tema retorna, de fato, somente em 2019 quando a proposta volta a ser discutida ao menos em duas ocasiões, nas XXIX e XXX reuniões da Comissão de Diálogo Macroeconômico do Mercosul.
Assim como em 2003, debateu-se a viabilidade de adoção de uma moeda comum no Mercosul. Como resultado dessas discussões foi apresentado pela Presidência Pro-Tempore do Brasil a consolidação preliminar do trabalho de viabilidade da moeda comum, na qual foram abordados os custos e benefícios, embasamento teórico, experiências empíricas e a necessidade de coordenação de políticas macroeconômicas para sua implementação. Fica evidente que, de maneira diferente das discussões anteriores, houve um engajamento maior das delegações e, consequentemente, discussões mais aprofundadas sobre o tema.
Chama atenção que a proposta de uma moeda comum na região tenha sido resgatada e discutida com certa profundidade no período recente durante um governo que criticava e colocava em dúvida, sobretudo durante o período eleitoral, os laços brasileiros com os países do Mercosul e mesmo sua participação na organização. O aperfeiçoamento dos estudos para uma moeda comum foi, no referido contexto político, defendido por ministros e por políticos influentes, chegando a ser, inclusive, batizada de “Peso-Real”. Apesar do eco causado no meio político, a proposta enfrentou resistências por parte do Banco Central do Brasil.
3.2. Proposta atual
A proposta atual, de maneira diferente das últimas, foi feita por ocasião da viagem oficial do atual mandatário brasileiro à Argentina, em 23 de janeiro de 2023. Na Declaração Conjunta foi registrada, ainda que de maneira vaga, a intenção de se estabelecer uma “moeda de circulação sul-americana” e, para isso, os Estados concordaram em iniciar estudos técnicos com o propósito de viabilizar sua criação. Os objetivos centrais dessa proposta seriam de potencializar o comércio e a integração produtiva regional e de aumentar a resiliência das economias a choques internacionais.
Registra-se que no memorando de entendimento entre o Ministério da Economia da República Argentina e o Ministério da Fazenda da República Federativa do Brasil sobre integração econômica e financeira, assinado na ocasião da declaração conjunta, não há menção a uma moeda de uso regional ainda que consignada expressamente a intenção de instruir suas equipes técnicas a explorar outros mecanismos para aprofundar a integração financeira da região.
As especificidades da proposta da moeda regional ficam um pouco mais claras se tomarmos como base as entrevistas dadas aos veículos de imprensa, nacionais e estrangeiros, por membros de ambos os governos. A partir delas é possível elaborar um pouco melhor o que consta dos documentos oficiais que, como visto, foram bastante vagos, inclusive, na terminologia.
Afinal, “moeda de circulação sul-americana” poderia ser enquadrada tanto na hipótese de moeda única, quanto para a hipótese de moeda comum, o que sugere que a proposta feita seria mais de ordem retórica do que de ordem prática, apesar de ser uma ideia defendida em artigo por membros da atual equipe econômica brasileira. Na perspectiva acadêmica indicada, o atual ministro da economia do Brasil argumenta a favor da implementação de uma moeda de circulação sul-americana com a criação de um Banco Central regional. Nesse cenário, essa moeda poderia ser utilizada para transações comerciais dos países, mantendo as suas moedas nacionais, contornando a escassez de moedas de terceiros Estados, por exemplo, ou até mesmo adotá-la domesticamente.
Em entrevista para o Financial Times, que foi replicada pelo jornal O Globo, o atual ministro da economia argentino deu informações que podem contribuir para melhor compreensão da proposta de adoção do “Sur” como moeda comum regional. A ideia em estudo seria de implementação de uma unidade de valor em paralelo das nacionais, usada para fluxos financeiros e comerciais, num esforço de reduzir os custos de transação que envolvem o uso, por exemplo, do dólar americano. O “Sur” funcionaria como a já mencionada Unidade Real de Valor (URV) do Plano Real e, nesse quesito, o Brasil possuiria boa expertise a oferecer por já ter aplicado política similar internamente.
Interessante destacar aqui que essa é uma proposta de moeda feita em relação bilateral entre o Brasil e Argentina e que outros países da região poderiam vir a ser convidados a utilizá-la. Mais uma vez, temos a presença do “unilateralismo” tanto criticado por Uruguai e Paraguai, já destacado anteriormente. Para além das críticas ao “unilateralismo”, é importante frisar que o Uruguai mantém as suas críticas quanto à adoção de uma moeda regional, sustentando a postura adotada por Jorge Batlle em 1999.
4. CONCLUSÃO
Este trabalho tem como um de seus objetivos centrais afastar confusões entre os conceitos de moeda comum e moeda única, apontando suas semelhanças e indicando as variações de complexidade para a adoção de um ou outro modelo de convergência monetária. Foi apontado, por exemplo, que a implementação de uma moeda comum para as trocas comerciais não visa a substituição das moedas domésticas como ocorreria no caso de adoção de uma moeda única.
Em linhas gerais, o artigo buscou trazer respostas - não exaustivas - ao seguinte questionamento: qual seria o panorama histórico e a posição atual do debate acerca da implementação de uma moeda de circulação comum entre o Brasil e a Argentina?
Pretendeu-se, partindo-se de uma investigação jurídica dedutiva da normativa internacional regional e bilateral a respeito do tema, traçar um panorama da trajetória percorrida pelos Estados envolvidos nessa temática para, indutivamente, buscar compreender as possibilidades postas e os desdobramentos possíveis do atual momento da relação política regional.
Observou-se, preliminarmente, que a proposta de uma moeda de uso regional não é nova e possui antecedentes na década de 1980 e, assim, na primeira parte do estudo, as possíveis vantagens e desvantagens competitivas e impactos nos custos de transação da adoção de alternativas ao uso de moedas de terceiros Estados nas relações bilaterais foram abordadas. Em um segundo momento, a diferença entre moeda única e moeda comum precisou ser conceituada para introduzir o percurso histórico dos debates a respeito de uma moeda de circulação comum entre Brasil e Argentina e também no contexto regional do Mercosul. Finalmente, na última parte do artigo, buscou-se descrever a posição atual do debate e contribuir para a melhor compreensão das oportunidades e desafios que se apresentam em contexto de falta de clareza das intenções dos governos, de confusão conceitual da imprensa sobre temas econômicos e de grande desinformação da sociedade.