1. INTRODUÇÃO
A realidade internacional nas últimas décadas se mostrou um cenário de complexidade crescente, onde os Estados perderam continuamente a aptidão de concretizar sozinhos suas próprias políticas públicas, o que acaba por convergir no surgimento de uma interdependência global. A resultante desse processo de complexificação das relações internacionais é origem de uma ordem internacional cujas manifestações econômicas e políticas têm como expressão máxima o fenômeno da regionalização e da multilateralização das relações entre os Estados.
A América do Sul não ficou à margem dessa tendência, mesmo enfrentando alguns percalços. Nesse interim, surgiram iniciativas buscando a integração entre Estados sul-americanos em vários momentos dos séculos XX e XXI como: a Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC), criada em 1960 objetivando a construção de um mercado comum, e a Associação Latino-americana de Integração (ALADI) de 1980, a qual substituía a primeira.
Mesmo ao se considerar o histórico parcialmente exitoso da integração regional sul-americana até o início dos anos 90, a integração regional na América do Sul pode ser pensada como uma saída factível para a superação dos obstáculos e fragilidades individuais dos Estados nacionais - ainda que a bilaterização das relações entre os países e o enfraquecimento do multilateralismo tenha sido a tônica no último quinquênio.
O Mercosul, ao longo de sua história, vem sendo implementado de forma morosa e via de regra ritmada pelas necessidades particulares de cada um de seus membros, conforme estas vão surgindo e ganhando relevância político. Como todo processo de integração regional, o Mercosul tem que lidar com conflitos e controvérsias entre os interesses nacionais de seus membros, que nem sempre estão em consonância com os interesses supranacionais do bloco. Considera-se assim que os atritos são inerentes à coexistência dos diferentes interesses nacionais no interior de um processo de integração e são um desafio indissociável na construção de uma identidade regional comum a todos os membros.
É necessário destacar que dos diversos conflitos intrabloco, os de ordem econômico-comercial são os que assumem maior relevo, em especial em um bloco com as características e assimetrias do Mercosul. À vista disso, se do comércio emana a maior parte dos conflitos e da ausência de solução pacífica de tais conflitos advêm a instabilidade nas relações interestatais, é elementar deduzir à necessidade da construção de um sistema sólido e eficaz para a resolução pacífica das diferenças comerciais surgidas entre os Estados que tentam se integrar. Afinal, conflitos mal resolvidos são dotados da capacidade de minar as fundações de qualquer processo de integração, a ponto de comprometer todo um sistema de acordos entre países parceiros.
Após a instituição do Sistema de solução de controvérsias do Mercosul (SSCM), delimitado no protocolo de Brasília - o qual em 2002 foi reestruturado por meio do Protocolo de Olivos, com a instituição de um Tribunal Permanente de Revisão (TPR) entre outras mudanças - tentou aumentar o nível de institucionalização de mecanismos de solução de controvérsias, implementando algumas modificações significativas.
Dessa forma, como avaliar essa evolução do sistema instituído no Mercosul? Em resposta a esta pergunta, o presente trabalho se propõe a analisar a possibilidade da aplicação do instrumental teórico ligado ao conceito de Juridificação-Institucionalização (ou “legalização”) desenvolvido pelos autores Kenneth W. Abbott, Robert O. Keohane, Andrew Moravcsik, Anne-Marie Slaughter e Duncan Snidal, em trabalho conjunto publicado em 2007 no livro “International Law and International Relations”, instrumental esse que, aplicado a realidade do Mercosul, passa a ser objeto de análise nas sessões abaixo.
2. UMA ANÁLISE DO SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DO MERCOSUL À LUZ DAS DIMENSÕES DA TEORIA DA JURIDIFICAÇÃO COMO PARAMETRO DE ANÁLISE
Segundo os autores citados ao final da seção anterior, o conceito de juridificação se apresenta como um conjunto particular de características que as instituições podem (ou não) possuir. Essas características são estabelecidas considerando-se três dimensões: a obrigação, a precisão e a delegação.
A dimensão da obrigação denota que Estados e vinculam por meio de conjunto de regras ou compromissos. Notadamente, é ponto fundamental que eles estejam juridicamente ligados, no sentido de que seu comportamento seja sujeito a averiguação - ou seja, responsabilizável - sob regras gerais, procedimentos e normativas de direito internacional e, reiteradamente, também do direito internacional internalizado.
Já a dimensão da precisão se define por regras que inequivocamente incidem de forma certeira sobre a conduta que exigem, autorizando ou vedando tal conduta. A precisão é um elemento de determinação das normas internacionais de suma importância, em vista da baixa institucionalização do ordenamento internacional e da descentralização que naturalmente caracteriza sua produção legislativa. Por fim, a dimensão da delegação se expressa quando terceiros receberam autoridade de implementar, interpretar e aplicar as regras; para resolver disputas; e possivelmente criar outras regras.
Cada umas dessas dimensões são pautadas na existência de inúmeros graus de incidência e manifestação, não sendo em suma uma dicotomia rígida entre existir e não existir. Consequentemente, o conceito de juridificação abarca um “continuum multidimensional”, oscilando entre ‘‘ tipos ideais ’’ de juridificação, nos quais todas as três dimensões estão presentes em sua totalidade, passando por formas intermediarias como na juridificação ‘‘ hard ’’, onde todos os três (ou pelo menos obrigação e delegação) são elevados; ou na forma de uma juridificação ‘’ suave ‘’ envolvendo diferentes combinações de atributos em níveis menos acentuados; e, por fim, à total ausência de juridificação (anarquia), outro tipo ideal.
Nesse mesmo sentindo os trabalhos como os de Abram Chayes e Antonia Hadler Chayes e Downs, Rocke, Barsoon, demonstram que cada vez mais a teoria vem se desviando do conceito rígido do imperativo da aplicação centralizada e se voltando à diferentes formas de institucionalização, em especial tendo a promoção da cooperação internacional como foco principal. De mais a mais, é possível constatar que formas de juridificação vistas na virada do milênio seguem se desenvolvendo, ao passo que as relações internacionais se complexificam.
Outro ponto acerca das dimensões do conceito de juridificação, é a independência entre as dimensões, o que conceitualmente pode resultar em combinações de quaisquer níveis de obrigação, precisão e delegação, ao serem consideradas as características específicas de da instituição ou sistema internacional.
Isso posto, ABBOTT et al. apresentam na figura abaixo oito possíveis combinações dessas dimensões, organizando-as em forma decrescente de juridificação, com a dimensão da obrigação como faceta de maior peso, seguida da delegação, e precisão, esta última com o menor peso relativo (veja a Figura 1).
Frente à existência de uma gama de possibilidades institucionais de juridificação, é possível identificar os fatores envolvidos no fortalecimento ou enfraquecimento das instituições. Por conseguinte, os tipos demonstrados na parte superior da figura (linha I) correspondem a situações próximas do tipo ideal de juridificação total, como em analogia com sistemas jurídicos domésticos altamente desenvolvidos, o que ocorre em algumas convenções e organizações. Além disso, a OMC também se localiza em situação muito próxima do tipo ideal de juridificação total ao administrar um conjunto extremamente detalhado de acordos internacionais juridicamente vinculativos; também opera um mecanismo de solução de controvérsias, com a previsão de um sistema recursal para tribunal com autoridade significativa - a quem cabe interpretar e aplicar esses acordos no curso da resolução de disputas específicas.
As linhas II-III, por sua vez representam situações em que a obrigação legal permanece alta, ao passo que um dos outros dois elementos, também é codificado como ‘‘alto’’ - e o terceiro como baixo - gerando nessa combinação de regras relativamente imprecisas e delegação forte uma resposta institucional eficaz à incerteza. Contudo, devido à baixa delegação de autoridade, tais arranjos devem ser consideramos menos legalizado do que aqueles discutidos anteriormente.
Avançando pelas combinações, as dificuldades de aplicação das três dimensões se tornam mais evidentes, requerendo uma análise cuidadosa e específica das formas de obrigação, precisão e delegação utilizadas em cada caso. As linhas intermediárias na figura sugerem a existência de uma ampla gama de formas “leves” ou intermediárias de juridificação. Elas podem ter normas de difícil aplicação, sendo tais arranjos frequentemente usados em ambientes onde as normas são contestadas e as preocupações com a autonomia soberana são fortes, o que torna a exigência de níveis mais altos de obrigação, precisão ou delegação inaceitáveis.
Outras formas “leves” ou intermediárias de juridificação (linhas VI, VII e VIII) são as situações em que as regras não são legalmente obrigatórias, mas nas quais os Estados aceitam formulações normativas precisas ou delegam autoridade para implementação de princípios gerais. Os Estados muitas vezes delegam autoridade discricionária para julgamentos que combinem preocupação com padrões profissionais são necessários, mesmo que critérios políticos estejam implícitos.
Finalmente, na parte inferior das combinações, se localiza o tipo ideal de anarquia proveniente sobretudo da teoria das relações internacionais. O termo ‘‘Anarquia’’ é facilmente mal compreendido e erroneamente identificado, sendo o termo aqui desprovido da conotação de “caos”, simplesmente um indicativo da ausência de um poder hierárquico no âmbito internacional.
Superada a caracterização geral do conceito básico de juridificação, é necessário um estudo mais detido de suas três dimensões, no intuito de possibilitar seu uso como instrumental de análise do caso Mercosul. Dessa maneira passa-se ao exame das referidas dimensões e sua aplicação como parâmetro analítico da realidade do Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul (SSCM).
2.1. DIMENSÃO DA OBRIGAÇÃO
As regras e compromissos jurídico-legais ditam uma forma particular de obrigação vinculativa sobre Estados e outros agentes (como organizações internacionais). Tais obrigações diferem de outros tipos de obrigações resultantes de coerção, cortesia ou moralidade, sendo as obrigações legais essencialmente resultado de normas, procedimentos e formas determinadas no sistema jurídico internacional.
As obrigações no âmbito jurídico internacional se alicerçam no princípio jurídico do “pacta sunt servanda”, o que denota que as regras, compromissos e acordos internacionais tenham caráter obrigatório, passíveis de várias formas de responsabilização. De fato, o direito internacional consuetudinário, geralmente, determina que o cumprimento de obrigações internacionais assumidas deva ser adimplido de boa-fé, independentemente das disposições conflitantes do sistema legal doméstico.
O direito internacional também se submete a princípios, mediante os quais a violação de uma obrigação legal ensejará “responsabilidade legal”, que não exige uma demonstração de intenção (dolo) por parte de dos envolvidos.
Seguindo nessa direção, ABBOTT et al. sugerem que os compromissos internacionais podem variar amplamente no que concerne ao aspecto da obrigação:
Dentro desse espectro de possibilidades, os atores internacionais podem acordar obrigações legais entre os dois extremos apresentados. Segundo Palmer, muitas vezes são criados arranjos surpreendentes entre forma e conteúdo, fazendo com que até mesmo declarações não vinculantes possam com o tempo formatar as práxis de Estados e outros atores internacionais, influenciando suas condutas, levando ao surgimento do direito consuetudinário ou o surgimento de novos acordos.
O Mercosul, por sua natureza intergovernamental, implica em um forte controle estatal sobre o processo de integração. Este controle também existe sobre as decisões existentes no SSCM, ao se notar que o mecanismo se divide em dois planos distintos: o primeiro diz respeito às normas obrigacionais existentes no escopo jurídico do Mercosul e a sua baixa capacidade regulatória; o segundo elemento que caracteriza o sistema é a possibilidade de não acatamento das decisões do SSCM, que em ultima ratio deveria gerar obrigações primordiais à manutenção do equilíbrio e paz institucional do bloco.
Em seu capítulo IV, artigos 38 e 40, o Protocolo de Ouro Preto dispõe que os “Estados Partes comprometem-se a adotar todas as medidas necessárias para assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento das normas emanadas dos órgãos do Mercosul”. As disposições do protocolo, ao não tratarem de forma impositiva a internalização e ao deixar tal atividade à livre disposição dos estados membros, não impõem qualquer obrigatoriedade aos Estados de incorporar compulsoriamente os regramentos ditados pelo Mercosul.
Em seu art. 42 o Protocolo de Ouro Preto prevê que as normas do Mercosul, “quando necessário” serão incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país. A faculdade que se concedeu aos Estados componentes do Mercosul de reconhecer internamente uma norma do bloco apenas quando necessário traz grande instabilidade e insegurança jurídica para a integração do Mercosul, pois como bem explica Trindade, “basta que um dos sócios não proceda a internalização para que a norma não tenha vigência regional e, assim, não seja oponível aos demais sócios”. Vale acrescentar que essa liberdade de decisão tem sido usada como uma conveniência de idoneidade duvidosa.
As consequências da atual forma de tratamento jurídico dado pelos países-membros às normas criadas pelo Mercosul demostram que “a falta de mecanismos efetivos que corroborem para pressionar os Estados a internalizar as normas emanadas do Mercosul é uma das grandes dificuldades enfrentadas hodiernamente no processo de integração regional”.
Um processo eficaz de internalização das normas, bem como seus efeitos no sistema jurídico doméstico dos Estados-membros, seria um passo importante que revelaria um incremento no grau de integração regional pretendido no bloco. Todavia, a busca por preservar soberanias e autonomias individuais diante dos órgãos do Mercosul tem se mostrado estrategicamente mais importante do que o processo de integração.
O segundo critério que demonstra os níveis baixos de obrigação no sistema jurídico do Mercosul e em seu sistema de solução de controvérsias é a falta de monitoramento das decisões jurisdicionais do bloco. A professora Bressan ressalta ainda que no Mercosul os Estados não são obrigados a cumprirem as resoluções arbitrais, tampouco a internalizar as regras do bloco, conforme já tratado acima. Segundo a autora, a criação do Protocolo de Olivos pretendia superar essa deficiência se valendo do instituto do recurso de esclarecimento sobre o cumprimento do laudo. Mas tal medida não assegurou o cumprimento de decisões, apenas manteve uma realidade que reduz a eficácia e alcance das decisões dos próprios órgãos institucionais do Mercosul.
Um exemplo emblemático dessa situação foi o não cumprimento da decisão proferida no Laudo n. 1/2005, como narra Camilla de Freitas Feijó. Nesse caso, o Uruguai - ciente do não cumprimento da decisão proferida no referido laudo- resolve levar ao conhecimento do Tribunal Permanente de Revisão para que se pronunciasse. O Uruguai argumentava que a Argentina continuava descumprido o Laudo n. 1/2005 quando resolveu, à época, apenas sancionar norma que ameniza a proibição de importação dos pneus, sem, no entanto, eliminar o objeto da lide.
A manifestação do TPR, considerou que a República Argentina, ao promulgar uma lei que ameniza o caráter discriminatório vigente na lei anterior, não eliminava a discriminação existente. Além disso, a decisão proferida pelo Tribunal no Laudo n. 1/2005, “tem força de coisa julgada e não prevê meios de escusa de caráter suspensivo ou interruptivo do prazo fixado, que desobrigue o Estado argentino de cumprir a decisão”. Note-se, entretanto, que o modelo intergovernamental empregado pelo bloco não viabiliza - no caso de descumprimento do laudo - o emprego de medidas pecuniárias coercitivas que obriguem o Estado descumpridor a implementar o disposto na decisão.
Do exposto nessa sessão, e considerando que as considerações apresentadas são apenas uma parte de uma conjuntura desestabilizadora do processo integrativo, é seguro inferir que os níveis da dimensão obrigação, que compõe o processo de juridificação/institucionalização jurídica do Mercosul, são baixos, boa parte resultado de uma não-obrigatória e deficiente internalização das normas regionais, somada à falta de mecanismos de imposição supranacional das decisões proferidas pelo Sistema de Solução de Controvérsias do bloco.
2.2. DIMENSÃO DA PRECISÃO
Uma regra necessita ser dotada de uma forma clara e inequívoca, perfeitamente ajustada em termos do objetivo pretendido e dos meios de o alcançar num determinado conjunto de circunstâncias. Em outros termos, a precisão de uma norma pode ser definida pela relação estreita entre sua finalidade e a possibilidade de uma interpretação razoável dessa finalidade. Sobre a precisão, ABBOTT et al. explicam:
A precise rule is not necessarily more constraining than a more general one. Its actual impact on behavior depends on many factors, including subjective interpretation by the subjects of the rule. Thus, a rule saying ‘‘drive slowly’’ might yield slower driving than a rule prescribing a speed limit of 55 miles per hour if the drivers in question would normally drive 50 miles per hour and understand ‘‘slowly’’ to mean 10 miles per hour slower than normal.[…]
[…] In addition, precision can be used to define limits, exceptions, and loopholes that reduce the impact of a rule. Nevertheless, for most rules requiring or prohibiting particular conduct - and in the absence of precise delegation - generality is likely to provide an opportunity for deliberate self-interested interpretation, reducing the impact, or at least the potential for enforceable impact, on behavior.
Para Thomas Franck, em um sistema de regras jurídicas elas devem ser determinadas, ou seja, em um conjunto de regras, a precisão resulta não apenas em um conjunto de interpretação inequívoca, mas sim em um sistema onde as regras estão relacionadas umas com as outras de uma forma ordenada, coordenada e não contraditória, criando uma estrutura dentro da qual a interpretação caso a caso pode ser realizada de forma consistente e coerente.
No contexto institucional dos sistemas jurídicos internacionais, as normas imprecisas são a maioria, frequentemente interpretadas e aplicadas pelos próprios atores aos quais tais normas destinam-se a regulamentar. Além disso, ao se constatar, como vimos, que a maioria das normas internacionais são criadas por meio do consentimento direto ou prática dos Estados, e não existindo assim um sistema centralizado de legislatura ou judiciário, tais normas podem ficar à mercê de interpretações inadequadas e egoístas.
Assim, a precisão vem ganhando maior relevância como marca caracterizadora do processo de juridificação a nível internacional. Muito do direito internacional é de fato bastante impreciso, mas a precisão parece estar aumentando consideravelmente na forma como muitos tratados modernos são explicitamente projetados para aumentar a determinação e estreitar as questões de interpretação, mediante ‘‘codificação’’ e ‘‘desenvolvimento progressivo’’ da lei costumeira.
Ainda assim, muitos compromissos firmados nos tratados são vagos e gerais. Como sugerido por ABBOTT et al o nível de precisão pode ser avaliado nos moldes apresentados no quadro abaixo:
Vale lembrar, como sustentam os autores, que as disposições jurídicas nos documentos internacionais, que dão margem a amplas áreas de discricionariedade para os atores afetados, na verdade não são o resultado de uma falha de elaboração legal, mas de uma escolha deliberada, dadas as circunstâncias da política interna e internacional. Contudo tais disposições podem assumir um caráter tão geral que não viabilizem sua aplicação adequada, fazendo pairar um nevoeiro de dúvidas sobre sua força legal.
O Mercosul, como o bloco de integração regional, segue o padrão do ordenamento jurídico internacional, mantendo considerável parte de sua produção normativa imbuída de alto grau de generalidade, e por conseguinte, baixos níveis de precisão em seu ordenamento jurídico. Contudo, ao longo das décadas de sua existência, o Mercosul tem produzido grande quantidade de acordos e protocolos sobre assuntos específicos em que demonstra o aumento dos níveis de precisão das normas. Foram celebrados, de 1991 até 2019, 163 instrumentos normativos específicos, dotados de bons níveis de precisão.
Apesar desse incremento de normas especificas, uma ressalva é necessária quanto aos baixos níveis de precisão em alguns diplomas legais, que transferem um encargo relevante à função do árbitro, conforme exposta por Feijó:
[...] à função dos árbitros no processo de controvérsia, requer-se extrema habilidade e se exige uma capacidade interpretativa muito grande, especialmente em face do próprio caráter de transitoriedade e evolução do Sistema e pela necessidade de busca do direito aplicável caso a caso. (grifo do autor)
Quando a autora indica a necessidade de o árbitro ter uma capacidade interpretativa muito grande e destaca a existência de dificuldade em se buscar o direito aplicável ao caso concreto, ficam evidenciados que carecem de precisão as normas do bloco, já que uma norma precisa necessariamente demanda pouca ou nenhuma interpretação para ser aplicada se seu propósito e o objeto sobre o qual surtirá efeitos estão detalhados precisa e exaustivamente.
Nesse sentido, é possível identificar indícios de imprecisão também nas decisões dos órgãos jurisdicionais do SSCM, como constatado no primeiro laudo proferido pelo TPR, Laudo n.1/2005, no qual o Tribunal apresentou decisão genérica, um reflexo da liberdade e discricionariedade existentes nas normas que definem os procedimentos de apreciação de controvérsias. A imprecisão transfere ao aplicador/julgador maior poder de decidir na prática os efeitos da lei.
Em síntese, o Mercosul deve seguir trilhando caminhos mais precisos na elaboração de seu arcabouço jurídico, pois como alerta Gisele Leite:
[...] o que implica em superar a ilusão de que as normas gerais e abstratas resolveriam todos os eventuais conflitos jurídicos. (grifo do autor)
2.3. DIMENSÃO DA DELEGAÇÃO
A terceira dimensão da juridificação ou legalização pode ser entendida como o nível de delegação de autoridade a terceiros designados (como tribunais, árbitros e organizações administrativas) que os estados e outros atores internacionais estão dispostos a tolerar na busca dos objetivos comuns.
A forma característica da delegação legal é a concessão a terceiros nos mecanismos de resolução de litígios, autorizando-os a interpretar regras e aplicar a fatos particulares sob as doutrinas estabelecidas no direito internacional.
A delegação é especialmente importante na constituição de mecanismos de solução de disputas, nos quais quanto maiores níveis de juridificação apresentam, mais acentuada é a concessão realizada pelas partes, que aceitam ficar sob a égide das decisões vinculativas de terceiros isentos, desde que necessariamente baseadas em regras claras e aplicáveis.
Em sentido contrário, menores níveis de juridificação envolvem menor delegação de competências e privilegiam uma maior ação política de barganha: as partes podem aceitar ou rejeitar propostas sem oferecerem justificativa legal, consubstanciando suas ações na defesa de seus interesses e na sua soberania.
Na prática, os mecanismos de solução de controvérsias abarcam uma gama extremamente ampla de situações: de nenhuma delegação (como na tradicional interação internacional baseada na tomada de decisão política); por formas institucionalizadas de negociação, como mediação (OMC) e conciliação (Convenção do Mar); arbitragem não vinculativa (mecanismo do antigo Acordo Geral de Tarifas e Comércio - GATT); arbitragem vinculativa; e, finalmente, para a adjudicação real (Tribunal Europeu de Justiça - TEJ).
Destaca-se que a delegação de autoridade legal não se limita à resolução de disputa, estendendo-se à atuação de novos atores e novas formas de política, onde os agentes imbuídos de autoridade legal delegada, na busca de seus próprios interesses, atuam subsidiariamente, mais ou menos limitados conforme o alinhamento de seus interesses com as condições da concessão de autoridade realizada pelos Estados.
Ainda sobre a dimensão da delegação, Keohane, Moravcsik e Slaughter explicam que:
Three dimensions of delegation are crucial to our argument: independence, access, and embeddedness. [...], independence specifies the extent to which formal legal arrangements ensure that adjudication can be rendered impartially with respect to concrete state interests. Access refers to the ease with which parties other than states can influence the tribunal’s agenda. Embeddedness denotes the extent to which dispute resolution decisions can be implemented without governments having to take actions to do so. We define low independence, access, and embeddedness as the ideal type of interstate dispute resolution and high independence, access, and embeddedness as the ideal type of transnational dispute resolution. Although admittedly a simplification, this conceptualization helps us to understand why the behavior and impact of different tribunals [...].
Assim considerando a importância da dimensão da delegação, válido é o estudo mais detido dos três aspectos que a compõe: a independência, o acesso e o enraizamento, que se mensurados podem resultar em uma análise mais apurada das estruturas de solução de conflitos no Mercosul.
2.3.1. A INDEPENDÊNCIA
O propósito da variável independência é mensurar até que ponto os juízes de uma autoridade internacional encarregada da resolução de controvérsias são capazes de deliberar e julgar de forma independente dos governos nacionais envolvidos.
O modelo internacional tradicional de resolução de disputas, conforme explicam KEOHANE, MORAVCSIK e SLAUGHTER, coloca o controle puro do processo na mão dos Estados, que resolvem as disputas por meio dos seus próprios agentes. Cada lado oferece sua própria interpretação das regras e dos fatos, bem como sua aplicabilidade ao caso em análise; as divergências são resolvidas por meio de negociações interestatais por vias político-diplomáticas. Caso não existam regras de procedimento ou precedentes legais permanentes, a resolução de disputas, mesmo que negociada, deve guardar coerência com o direito internacional.
Cabe aqui uma ressalva: o tal modelo tradicional é fortemente arraigado nos preceitos da teoria intergovernamentalista e guarda grande semelhança com o desenho mercosulino, o qual é construído sob os mesmos pilares teóricos.
Seguindo no sentido oposto, o requisito da independência demanda a flexibilização das restrições políticas impostas aos julgadores. A ampliação do nível de independência dos membros de um tribunal internacional pode, por seu turno, ser aferida pela existência ou não de pelo menos três categorias de restrições institucionais: seleção e mandato, discricionariedade legal e controle sobre recursos materiais e humanos.
As regras de seleção e posse de juízes variam amplamente. Várias instituições internacionais mantêm um controle nacional rígido sobre a resolução de disputas por meio de regras de seleção e posse, enquanto na arbitragem internacional ad hoc o processo de seleção é geralmente dirigido pelos disputantes e o tribunal é instituído para um único caso específico, sendo dissolvido após exauridas as suas finalidades.
Em casos particularmente afeitos a países autoritários, os juízes podem ser vulneráveis à retaliação quando retornam para seus países após finalizarem seus mandatos; mesmo em democracias liberais, o futuro profissional e o avanço na carreira podem ser manipulados pelo governo.
O espectro da independência legal medida pelas regras de seleção e posse é mostrado no quadro abaixo:
No SSCM observam-se níveis consideravelmente baixos de independência relacionada às formas de nomeação e posse dos membros julgadores. Inicialmente devido à forma de seleção dos membros, que no caso dos tribunais ad hoc têm a escolha atrelada a cada Estado parte na lide, o árbitro atua como um “quase advogado”, ou seja, é escolhido por critérios políticos e provavelmente defenderá o pleito da parte que o determinou àquela função”. Segundo o art.10 do Protocolo de Olivos, os Estados Partes podem designar um árbitro titular constante em lista prévia conforme determinado no protocolo em seu art.11.
Contudo, no art.12 do referido protocolo resta a possibilidade dos Estados partes solicitarem esclarecimentos e apresentarem objeções sobre a escolha das demais partes da lide. Para KLOR “o sistema em que se pode contestar os árbitros pode abalar a confiança entre as partes e enfraquece o sistema, pois uma consulta injustificada pode resultar no veto daquele árbitro indicado para a controvérsia”.
Já no caso do TPR as escolhas dos membros são realizadas conforme o disposto no art. 18 do Protocolo de Olivos, segundo o qual cada Estado Parte do Mercosul designará um árbitro e seu suplente por um período de dois anos, renovável por no máximo dois períodos consecutivos; o quinto árbitro, que será designado por um período de três anos não renovável, salvo acordo em contrário dos Estados Partes, será escolhido por unanimidade dos Estados Partes. Tal dinâmica demonstra a completa a ingerência dos Estados Parte sobre as escolhas dos árbitros no TPR.
A discricionariedade jurídica, o segundo critério para mensuração da independência judicial, refere-se à amplitude do mandato conferido ao órgão de resolução de disputas. Certos órgãos de resolução de disputas institucionalizados devem respeitar rigorosamente os textos dos tratados; contudo, como bem descreve Karen Alter, alguns órgãos julgadores também podem realizar seus julgamentos para além do ordenamento jurídico internacional positivado - exemplo disso é a Corte Europeia de Justiça, que decidiu pela supremacia da legislação comunitária da Comunidade Europeia (CE) sem base explícita no texto de nenhum tratado ou em interesse dos governos nacionais.
De modo mais geral, as instituições tendem a julgar para além do direito posto, como argumentam Abbott e Snidal, quando existem condições relevantes de complexidade e incerteza, que tornem os tratados e demais instrumentos legais necessariamente lacunosos e, portanto, tornando-se necessários mais do que o ato de aplicar padrões e normas precisas ao caso concreto. Nesses casos, demanda-se a interpretação de normas e a resolução de conflitos entre normas concorrentes, assim como a complementação das lacunas normativas, respeitando os princípios básicos do direito internacional, no contexto de casos apreciados.
O SSCM, apresenta um nível de discricionariedade legal entre o intermediário e o alto, não ficando adstrito unicamente à letra da lei, sendo menos legalista que tribunais como o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE) e o Órgão de Apelação da OMC (OA-OMC) - o que de certa forma concede um pouco mais de autonomia aos árbitros do sistema mercosulino, em especial no âmbito das decisões e opiniões consultivas proferidas pelo TPR.
O último critério para independência judicial são os recursos financeiros e humanos, ou seja, a disponibilização de uma estrutura física, financeira e de pessoal, que possibilite aos juízes resolver seus processos de forma rápida e eficiente. Esses recursos são essenciais ao processamento das reclamações e para tomada de decisões consistentes e adequadas. Destaca-se que, em geral, quanto maior os recursos financeiro e humano disponíveis para um tribunal, maior será sua independência jurídica.
Nesse quesito a decisão MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 29/10, em seu art. 1º, estabelece que o orçamento anual destinado a cobrir os gastos de funcionamento do TPR assim como o SSCM, deverá ser financiado, em partes iguais, por contribuições dos Estados-membros.
No entanto, as peças orçamentárias são um tanto peculiares, haja vista a grande oscilação de valores existente, conforme demonstrado no quadro abaixo:
Ano | Orçamento destinado em US$ | Outros ingressos de valores | Cota-parte de cada Estado membro |
---|---|---|---|
2021 | 449.484 | 112.371 | |
2020 | 664.465 | 166.116 | |
2019 | 686.661 | 304.144 | 95.629* |
2018 | 811.360 | 202.840 | |
2017** | 787.948 | 157.590 | |
2016** | 812.360 | 162.472 | |
2015** | 782.839 | 53.896 | 145.789 |
2014** | 657.230 | 131.446 | |
2013** | 740.496 | 148.099 | |
2012 | 376.810 | 94.203 | |
2011 | 341.967 | 85.491,75 | |
2010 | 307.502 | 76.875,50 | |
2009 | 354.926 | 88.731,50 | |
2008 | 164.286 | 41.072 | |
2007 | 40.670 | 10.167,50 | |
Total | 7.979.004 | 1.718.893 |
Fonte: Dados trabalhados pelo autor, dados disponíveis nas resoluções anuais do GMC estabelecendo orçamento anual do SSCM/TPR. (https://www.tprmercosur.org/pt/norm_administrativa.htm)
Notas: *A cota parte foi significativamente menor devido ao repasse de 304.144 dólares não gastos no orçamento anterior. ** Venezuela conta como 5º membro contribuinte.
Depreende -se do quadro 1 que os valores destinados ao SSCM, variam ao gosto dos ventos políticos que sopram nos países membros, não existindo constância ou previsibilidade orçamentária, o que dificulta o planejamento e a efetividade a longo prazo. Comparando-se valores, os investimentos se mostram muito aquém dos destinados a outros sistemas de solução de controvérsias e tribunais internacionais. A título de comparação, o Órgão de Apelação da OMC e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias dispuseram em 2019 de orçamentos nos valores de US$195.500.000,00 e US$ 429.000.000,00 respectivamente.
No tocante aos recursos humanos, podemos dividi-los em dois grupos: Tribunais ad hoc e TPR. O primeiro grupo é composto de grupos de doze árbitros designados por cada membro do bloco, sendo chamado a fazer parte da composição dos tribunais ad hoc conforme a conveniência do país pelo qual for indicado. Já o TPR, é composto, por 5 árbitros/juízes e por uma Secretaria de apoio. Segundo a MERCOSUL/GMC/RES. nº66/05, esta é composta por 5 cargos, um secretário, um responsável pela biblioteca e arquivo, um técnico da área de informática, uma responsável pela secretaria de administração e um responsável pelo setor jurídico, tendo a estrutura sido acrescida, por meio da MERCOSUL/GMC/RES. Nº 58/08, de mais um cargo de apoio administrativo, tal estrutura ainda passaria por revisão no MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 15/15, onde em seu art.2°, do apêndice II, fica determinado que o tribunal contara com um quadro de funcionários composto pelo Secretário e um máximo de 6 funcionários.
Em conclusão, quanto aos recursos humanos à disposição do SSCM, estes são diminutos, é impossível se pensar em eficiência ao se cogitar que um tribunal internacional possa ser conduzido por 6 funcionários e 5 árbitros, ao passo que tribunais como o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, segundo o relatório anual-2019, empregam cerca de 2256 funcionários; muito menos se pensar em independência ao se considerar o controle político exercido pela GMC na criação de novos cargos, o que ocorreu apenas uma vez, conforme já citado.
Em suma, quanto maior for a liberdade de um órgão de solução de controvérsias em relação ao controle dos Estados membros sobre aspectos como a seleção e mandato, a discrição legal e os recursos financeiros e humanos, maior será sua independência jurídica e maior sua isenção e efetividade na solução de conflitos.
Assim, ponderando sobre o modelo de solução de controvérsias adotado pelo Mercosul, é possível afirmar que a seleção e mandato dos membros do sistema é dotada de nível de liberdade entre baixo e moderado, há uma discricionariedade legal, com espaço para julgamentos fora das leis e dos tratados, e existem restritos recursos orçamentários e humanos. Desta forma, o SSCM, ao se considerar a gradação apresentada por KEOHANE; MORAVCSIK; SLAUGHTER, enquadra-se como um sistema com baixa independência.
2.3.2. O ACESSO
O acesso, assim como a independência, é uma variável relevante. Do ponto de vista jurídico, o acesso mensura o conjunto de atores sociais e políticos que têm legitimidade para enviar uma disputa para ser resolvida pelo sistema de solução de conflitos.
Do ponto de vista político, o acesso mede o alcance daqueles que podem definir a agenda de assuntos passíveis de apreciação. O acesso é particularmente importante no que diz respeito aos tribunais e outros órgãos de resolução de disputas porque, em contraste com os mecanismos executivos e legislativos internacionais, eles são órgãos passivos, regidos pelo princípio da inércia; ou seja, incapazes de iniciar ações de maneira unilateral, sem provocação das partes legítimas.
O acesso é escalonado dentro de uma lógica na qual em um extremo nenhum ator social ou político pode apresentar disputas e, na outra extremidade, qualquer um com uma reclamação legítima dirigida às questões de interesse do bloco e do seu regramento jurídico pode apresentar uma reclamação de maneira fácil e economicamente viável. Entre os dois extremos descritos, estão situações como as em que os indivíduos podem apresentar suas queixas apenas tutelados por seus governos nacionais - sendo nesses casos missão árdua convencer os governos a mover a máquina pública para apoiar sua reivindicação, em especial se tratando de reivindicação do tipo particular contra outro governo, ou envolvendo um procedimento de alto custo.
Indivíduos e grupos ainda podem exercer influência sobre os sistemas de solução de controvérsias, mesmo não tendo acesso direto a ele, mas eles devem fazê-lo por meios domésticos, onde via de regra os meios políticos são o caminho. Tais indivíduos e grupos em sistemas controlados pelo estado, ou seja, eminentemente intergovernamentais, acabam depositando nas mãos dos estados suas reclamações, não tendo grandes meios oficiais para interferir no transcorrer do processo, e dependem assim da postura e boa vontade do seu governo nacional.
O Mercosul adota uma forma de acesso interestatal mitigado, onde os únicos legitimados para intervir no procedimento de solução de controvérsias são os Estados Partes (art.1 do Protocolo de Olivos e art. 43 Protocolo Ouro Preto), sendo que particulares (pessoas físicas ou jurídicas) podem interferir ou iniciar uma reclamação unicamente quando os seus interesses tenham sido afetados como consequência de decisões adotadas pelos Estados Partes do bloco e que sejam contrárias ao ordenamento jurídico instituído pelo bloco (art. 39 Protocolo de Olivos). Devem valer-se, para tanto, da respectiva seção nacional do GMC.
Vale ainda ressaltar que, caso a controvérsia não seja sanada no âmbito do GMC, apenas ao Estado Parte são legitimados para iniciar o procedimento arbitral, exaurindo-se aí as possibilidades diretas de intervenção para além do modelo meramente intergovernamentalista.
Em síntese, o SSCM pode ser considerado um sistema de acesso baixo, pois - mesmo legitimando particulares a intervir no processo de solução de controvérsias - restringe sua atuação a níveis quase irrelevantes; na prática processual os Estados são os únicos reais legitimados.
2.3.3. O ENRAIZAMENTO
A implementação e o correto transcurso processual em disputas internacionais são bem mais problemáticos do que em sistemas judiciários domésticos, em especial porque pressupõem delegação de parcelas de soberania. O significado político de delegar autoridade sobre a resolução de disputas depende, portanto, do grau de controle exercido por governos individuais sobre a promulgação legal e a implementação de sentenças.
À vista disso, a ideia de enraizamento consiste na internalização, ou não, de legislação internacional ou comunitária, que diminua a ingerência dos Estados na executividade das decisões internacionais, reduzindo assim o controle que os Estados membros tem sobre tais decisões.
O espectro de do enraizamento judicial pode ser resumido em uma linha evolutiva que vai desde um forte controle dos governos nacionais sobre a promulgação e implementação de decisões proferidas até um controle muito fraco, com a existência de legislação doméstica regrando a execução destas decisões no âmbito interno dos estados.
A maioria dos sistemas jurídicos internacionais se enquadra na mesma categoria do sistema da OMC; ou seja, os estados são obrigados pelo direito internacional a cumprir as sentenças de cortes ou tribunais internacionais, mas nenhum mecanismo legal interno garante a executoriedade legal. As decisões ficam à mercê dos executivos e legislativos nacionais, os quais podem não agir, devido à conjuntura política doméstica ou simplesmente devido à inércia. O resultado dessa ingerência política na executoriedade das decisões internacionais não impede que os Estados incorram em uma obrigação legal internacional adicional de reparar os danos.
No outro extremo, onde o controle de governos individuais é mais limitado pelo enraizamento das normas internacionais, estão os sistemas nos quais tribunais nacionais autônomos podem proferir sentenças internacionais contra seus próprios governos. O expoente deste modo de aplicação é o sistema jurídico da Comunidade Européia, no qual os tribunais nacionais de todos os Estados-Membros reconhecem que o direito comunitário é superior ao direito nacional (supremacia).
No caso Mercosul, o sistema não compele os Estados envolvidos a cumprirem as resoluções arbitrais, tampouco a internalizar as regras do bloco, o que garantiria a vinculação mais efetiva dos Estados ao processo de integração. Já que a estrutura institucional do Mercosul de caráter estritamente intergovernamental proporcionou que governos tivessem grande controle sobre a tomada de decisões e implementação dos acordos, reduzindo a eficácia e o alcance das decisões dos próprios órgãos institucionais.
Frente a tal realidade, resta claro o alto controle estatal sobre as decisões proferidas em sede de solução de controvérsias existentes no Mercosul - e por decorrência lógica a existência de um baixo nível de enraizamento legal, que tem afetado a credibilidade e eficácia do sistema de solução de controvérsias e até mesmo do processo de integração como um todo.
3. CONCLUSÃO
A priori, pode-se destacar que o processo de juridificação se mostra como um parâmetro bastante satisfatório de aferição do desenvolvimento de sistemas jurídicos internacionais, o que engloba os SSC’s, haja vista que ao se aferir as dimensões que compõem o conceito é possível mensurar se o sistema está mais ou menos perto do tipo ideal de eficiência legal. Observe-se a figura abaixo:
Em análise ao esquema acima, constata-se que o SSCM, assim como o Mercosul, é dotado via de regra de níveis bastante baixos em todas as dimensões que compõem o processo de juridificação (ou “legalização”) e, por consequência, pode nesses termos ser avaliado como um sistema de baixo nível de legalização.
Na Figura 1, com base nas análises das dimensões realizadas nas seções anteriores deste capítulo, demonstra-se que a aferição do processo de juridificação, realizada através da avaliação de suas dimensões, no caso do Mercosul e de seu SSC, não demonstra grandes variações nos níveis de suas dimensões, sendo em sua maioria de níveis baixos.
Na Figura 1, onde ABBOTT, K. W. et al. delimitam as formas e tipos ideais de juridificação, é possível enquadrar o SSCM nos tipos VII. Conforme os autores:
Rows VI and VII include situations where rules are not legally obligatory, but where states either accept precise normative formulations or delegate authority for implementing broad principles. States often delegate discretionary authority where judgments that combine concern for professional standards with implicit political criteria are required.
O Tipo VII é caracterizado por composições institucionais usadas para administrar padrões de coordenação e integração, no qual os agentes condicionam-se a seguir normas comuns, desde que exista contrapartida dos demais agentes do bloco. Ainda o referido tipo é comumente visto em cenários onde ações legalmente obrigatórias seriam politicamente inviáveis de serem implementadas.
Feito esse enquadramento teórico, vale agora adentrar as implicações desse aporte teórico para a avaliação do processo de integração do Mercosul - o qual, ao se apresentar entre os tipos de níveis mais baixos de juridificação, demonstra que o SSCM não foi definido pensando no modelo juridicamente ideal ao bloco, mas sim na necessidade de adequação ao cenário político institucional característicos dos países que compõe o bloco. Não se optou pelo modelo com maior eficácia e ganhos jurídico-integrativos, mas sim pelo modelo que melhor se adequa aos interesses e projetos nacionais dos Estados-partes.
O sistema mercosulino de solução de controvérsias esbarrou também na preponderância do modelo intergovernamentalista, modelo este que prima pela manutenção dos Estados nacionais como atores no processo de integração e pela manutenção da soberania estatal, sendo a ideia de delegação de competências soberanas algo improvável. As características do intergovernamentalismo podem ser consideradas uma das principais explicações da estagnação da evolução do SSCM, que basicamente se manteve atrelado a práticas arbitrais de resolução de lides. Não são um modelo suficiente às complexidades das comunidades internacionais, quando comparado a cortes internacionais dotadas de competências que demandam grande cessão de soberania por parte dos Estados que se submetem a sua jurisdição, e conformam altos níveis de juridificação, em suas três dimensões.
Mesmo que ABBOTT, K. W. et al. ressalvem não ser possível assumir a posição de que uma legalização maior, ou qualquer forma particular de legalização, seja inerentemente superior a outra, é bastante pacífico que níveis maiores de juridificação geram sistemas juridicamente mais elaborados e precisos, trazendo em si os ganhos de maiores níveis de segurança jurídica.
Mesmo tendo seus méritos próprios, o SSMC é um mecanismo arbitral, marcado pelo fato de que “as partes das controvérsia são soberanas e isso acaba tornando o ofício do tribunal sujeito a limitações políticas”, o que também faz com que os interessados, além de partes envolvidas no litígio, sejam os agentes que criam as normas, definem os responsáveis por resolver as lides e em último plano decidem quando se submeterão às decisões do SSCM - pois como já dito são partes soberanas não subordinadas à jurisdição do sistema mercosulino.
Assim, é possível inferir que o SSCM permanece à mercê de interesses nacionais, que condicionam sua evolução, obstando um sistema juridicamente pacificador e normativamente eficiente. Tal situação acaba por diminuir drasticamente a capacidade de pacificação e resolução de conflitos, comuns ao dia a dia do processo integrativo, o que afeta o ambiente de integração no âmbito do Mercosul.