1. INTRODUÇÃO
O presente artigo visa analisar como o divórcio, enquanto institudo destinado à dissolução do matrimônio, que corresponde à mais prestigiada e difundida forma de organização da vida familiar, é disciplinado no âmbito comunitário do MERCOSUL. Como blocos de integração regional, que consagram a liberdade de circulação de pessoas, e, consequentemente, de circulação de famílias e do estatuto familiar dos cidadãos intra bloco, tanto o MERCOSUL como a União Europeia consagram normas próprias sobre a matéria. Ao compartilharem parcelas de suas soberanias, para a constituição e funcionamento do bloco jurídico-econômico, os Estados-Membros do MERCOSUL e da União Europeia estabelecem normas de direito internacional privado (doravante denominado DIPRI), que delimitam os efeitos legais do divórcio entre os Estados que aderem a estas normas comunitárias. A técnica é recorrer aos mecanismos de cooperação jurídica internacional para estabelecer normas sobre jurisdição, lei aplicável e reconhecimento e execução em matéria de divórcio dentro destes blocos regionais.
Apesar de conhecido, desde a Antiguidade, o divórcio foi considerado por longo tempo, como proibido ou restrito, em vários sistemas legais, por pressão religiosa, somada à preocupação de manutenção da sociedade patriarcal fundada no casamento, preferencialmente indissolúvel e destinado à procriação, como forma de consagração da família legítima. A partir do Século XIX, e, sobretudo, no Século XX, com a liberação dos costumes após a II Guerra Mundial, o divórcio ganha força e se torna uma instituição cosmopolita, passando a ser conhecido em praticamente todo o mundo, e, recebendo maior atenção do DIPRI.
Paralelamente ao regime jurídico do divórcio no âmbito comunitário tanto do MERCOSUL como da União Europeia, no ordenamento comum dirigido a todo o bloco; cada Estado-Membro guarda a prerrogativa de disciplinar o divórcio com normas próprias, em seu direito interno, para casos não-comunitários; levando inevitavelmente ao estudo deste instituto no direito comparado, eterno aliado do DIPRI. Em sede de qualificação, o divórcio é essencialmente um instituto dirigido à dissolução do vínculo matrimonial. Matéria bastante rica por envolver não somente o efeito principal da dissolução do casamento em si, mas também diversos efeitos acessórios que repercutem sobre as relações pessoais e patrimoniais entre os (ex)cônjuges, tais como a partilha de bens, a guarda de filhos menores ou maiores vulneráveis, a concessão de alimentos a filhos menores ou maiores vulneráveis, ou ainda a um dos ex-cônjuges, e, até mesmo a alteração de nome de ex-cônjuge, em razão do rompimento da união. A variação na extensão destes direitos no âmbito interno dos Estados-Membros dentro de um mesmo bloco, como o MERCOSUL e a União Europeia, forma um mosaico de diferentes figuras do divórcio dentro de cada bloco. Sem embargo, o direito comunitário relativo a divórcio em cada um destes blocos leva em conta características essenciais do instituto, que sugerem seu caráter universal dentro da cultura jurídica; apesar de haver um desafio à universalidade do instituto, com a abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo. Uma variação de posicionamento a ser modulada pelo conhecido filtro da ordem pública em DIPRI, para a circulação do divórcio de casais do mesmo sexo dentro do próprio bloco.
Com o objetivo de guiar a aplicação e circulação do divórcio (e de outros pontos da vida familiar), tanto o MERCOSUL como a União Europeia consagraram normas do bloco a este fim. No contexto da União Europeia, o elevado grau de integração promovida entre os Estados-Membros conduziu a um sofisticado processo de elaboração de arcabouço destinado a disciplinar o direito processual internacional intra bloco, e, particularmente, diferentes aspectos da vida familiar. Neste contexto, destacam-se alguns regulamentos, como os que analisaremos adiante, especificamente destinados a regular matérias de direito das famílias em nivel comunitário. Embora muito menos sofisticado, o MERCOSUL adotou, pela Decisão N° 58/2012, uma norma visando disciplinar os direitos de família no bloco: o Acordo entre os Estados Partes do MERCOSUL e Associados sobre Jurisdição Internacionalmente Competente, Lei Aplicavel e Cooperação Jurídica Internacional em Matéria de Matrimônio, Relações Pessoais entre os Cônjuges, Regime Matrimonial de Bens, Divórcio, Separação Conjugal e União Não-Matrimonial.
Deste modo, o presente artigo visa analisar, comparativamente, a regulamentação do divórcio no MERCOSUL e na União Europeia, em três questões principais, em matéria de divórcio, a saber: 1) a jurisdição; 2) a lei aplicável; 3) o reconhecimento e a execução de decisões.
2. FORO COMPETENTE PARA O DIVÓRCIO
Ao estabelecer critérios para a determinação da jurisdição em matéria de divórcio, o legislador comunitário tenta basear-se em critérios razoáveis, comumente também utilizados pelo direito interno dos Estados. Frequentemente, tenta alicerçar a competência dos tribunais no princípio da efetividade e no princípio da proteção, em que se considera, respectivamente, a viabilidade de cumprimento da decisão e a proteção da parte presumidamente vulnerável da relação jurídica. Excepcionalmente, por sua relevância e especificade, algumas matérias, que correspondem a efeitos acessórios do divórcio, requerem um tratamento especifico, com um foro específico para sua análise, tais como algumas questões patrimoniais e medidas cautelares.
2.1. Foro competente para o divórcio no Direito Comunitário Europeu
No âmbito da União Europeia, apesar de um objeto ambicioso, englobando as questões matrimoniais e aquelas relativas à responsabilidade parental dos filhos comuns, o Regulamento (UE) n° 2201/2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental justifica o seu objeto pelo fato de que as questões de responsabilidade parental são frequentemente examinadas, por ocasião dos conflitos matrimoniais. Para as questões matrimoniais, o Regulamento delimita sua aplicação às questões de divórcio, de separação de corpos e de anulação de casamento, com exceção das questões patrimoniais - tais como os regimes matrimoniais e as sucessões - e de obrigações alimentares. No âmbito da competência jurisdicional em matéria matrimonial, o Regulamento lista critérios de competência alternativos, não hierarquizados e centrados na residência habitual ou na nacionalidade comum dos esposos - também assimilada como a noção de domicílio do Common Law. Ademais, o foro da concessão da separação de corpos prorroga sua competência para sua conversão em divórcio. Como tais critérios têm um caráter exclusivo, o Regulamento prevalece sobre o direito nacional dos Estados-Membros, salvo para medidas provisórias e de conservação, em caso de urgência, que são regidas pelo direito nacional do Estado-Membro em que se situem as pessoas ou bens objeto destas medidas.
Uma consequência da imperatividade dos critérios do Regulamento (UE) n° 2201/2003 é a obrigação de o julgador verificar sua competência, de maneira a declarar-se incompetente, caso sua competência não seja fundada, e, se o caso implicar a jurisdição de outro Estado-Membro. Como os casos de conflitos positivos de jurisdição não são escassos em matéria matrimonial, não é raro que cada esposo tente submeter o litígio no foro de sua preferência, conduzindo assim a casos de litispendência internacional. No esteio da orientação pragmática de alguns textos convencionais, seguindo a tradição da Convenção de Bruxelas de 1968, da Convenção de Lugano do 1988 (substituida pela convenção homônima de 2007) e do seu antecessor Regulamento (UE) n° 1347/2000; o Regulamento (UE) n° 2201/2003 prevê a admissão da litispendência international. O juiz acionado em segundo lugar, ao verificar a propositura anterior da demanda perante um tribunal de outro Estado-Membro, deve suspender de ofício o processo, no aguardo de que a competência da jurisdição primeiramente acionada seja confirmada. Neste caso, a jurisdição acionada em segundo momento deve se reconhecer incompetente em favor da outra jurisdição, consagrando a prioridade de instância, mas a parte que era o autor na jurisdição que se desencumbe pode então levar seu caso perante a jurisdição acionada em primeiro lugar. Faz-se mister ressaltar que o conceito de litispendência do Regulamento é consideravelmente expandido de modo a aplicar este procedimento acima, mesmo se as duas ações não possuem exatamente o mesmo objeto nas duas jurisdições acionadas: por exemplo, uma ação de divórcio e uma demanda de separação (de corpos). Com isto, o Regulamento rompe a rígida tríade processual da litispendência: mesmo objeto, mesma causa de pedir e mesmas partes, em favor da conexão de ações em matéria matrimonial. Como a admissão da litispendência internacional supõe o reconhecimento da prioridade de instância no tempo, face aos possíveis conceitos diferentes do acionamento da jurisdição nos Estados-Membros, o Regulamento estabelece uma definição comum do que caracteriza o juiz primeiramente acionado no campo de sua aplicação.
Ciente de que o divórcio abarca uma variedade de efeitos além do efeito principal da dissolução do vínculo matrimonial, o legislador europeu também previu hipóteses de competência relativas a efeitos que são acessórios ao divórcio, apesar de possuírem autonomia. Cabe remarcar que o Regulamento (UE) n° 1103/2016, ciente do corriqueiro exame da matéria patrimonial matrimonial, por ocasião do divórcio, ao tratar da partilha de bens do casal; remete aos critérios já previstos para matéria de divórcio no Regulamento (UE) n° 2201/2003. Por respeito à especificidade e autonomia de cada assunto em DIPRI, o citado Regulamento sobre regime matrimonial também remete as questões patrimoniais sucessórias ao Regulamento (UE) 650/2012, o Regulamento Sucessões.
Ainda sobre o Regulamento (UE) n° 1103/2016, além de aderir aos critérios usualmente adotados para a determinação do foro para o divórcio, por nítida vis attractiva do divórcio sobre a questão do efeito acessório, envolvendo o regime matrimonial inserido na partilha de bensdo casal; este também oferece aos cônjuges critério próprio para o foro envolvendo regime matrimonial, caso o efeito da partilha de bens seja tratado autonomamente. É possível a escolha do foro correspondente à lei aplicável ao regime matrimonial, que decorre da escolha dos cônjuges ou das previsões do Regulamento, supletivas na falta do exercicio da autonomia da vontade.
Em matéria de alimentos, o Regulamento (CE) n. 4/2009 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares prevê a jurisdição da residência habitual do credor ou do devedor das obrigações alimentares; ou ainda a jurisdição que seria competente, segundo a lei do foro para ação sobre o estado de pessoas ou sobre a responsabilidade parental, se a obrigação alimentar lhe for acessória, como no caso de efeito acessório de divórcio. No tocante à autonomia da vontade, as partes têm a possibilidade de escolher a juridição de um Estado-Membro do qual uma das partes tenha a nacionalidade ou a residência habitual, para alimentos em geral; ou, para obrigações alimentares entre (ex)cônjuges, a jurisdição que seria competente para contendas matrimoniais ou aquela de um Estado-Membro, onde os cônjuges tenham tido sua última residência habitual, por pelo menos um ano. E a competência atribuída por uma convenção é, em principio, exclusiva; confirmando assim a importância dada ao forum voluntatis.
Por fim, ainda em sede de efeito eventualmente acessório a divórcio, faz-se mister registrar que o Regulamento (UE) n° 2201/2003 prevê a prorrogação do foro do divórcio, para dispor sobre a responsabilidade parental de filho do casal, na hipótese de exame de questões de guarda ou direito de visita, por ocasião do pleito de divórcio.
2.2. Foro competente para o divórcio no direito comunitário do MERCOSUL
No âmbito do MERCOSUL, por sua vez, a competência para matéria de divórcio é atribuida ao domicílio conjugal, entendido como o domicílio comum dos cônjuges durante a união, e, subsidiariamente, em sua falta, à escolha do autor, ao último domicílio conjugal, caso um dos cônjuges aí se encontre, ou ainda, ao domicílio do autor ou aquele do réu. Sobre a preferência do domicílio como critério escolhido, cabe observar que há tradição no DIPRI da região em recorrer ao domicílio como elemento de conexao para a lei aplicavel e como critério para determinação de foro em matérias relativas ao estatuto pessoal.
Mesmo diante do avanço da cooperação internacional no DIPRI, os Estados ainda avocam para si, em nome da soberania, o monopólio sobre determinadas questões patrimoniais, como direitos reais e matéria sucessória. Principalmente, quando tais direitos envolvem bens imóveis, onde o princípio da territorialidade parece se anunciar com mais intensidade em matéria patrimonial. Por esta razão, mesmo em textos convencionais, é comum verificar-se o caráter exclusivo da competência em matéria de direitos reais, sobretudo para imóveis. Razão pela qual, na esfera do Mercosul, entretanto, ao dispor sobre competência jurisdicional em matéria de divórcio, o Acordo ressalva o forum rei sitae, para questões de direitos reais versando os bens matrimoniais.
Outro campo onde também se exceptuam os critérios tradicionais de jurisdição para divórcio em DIPRI, pelo caráter de urgência, são as medidas cautelares relativas à pessoa de um dos cônjuges. Não é raro que o divórcio se dê em meio a uma situação de exacerbado conflito entre os cônjuges, em um contexto de violência doméstica, onde medidas extremas se fazem necessárias. Como é feito no dominio da União Europeia; no MERCOSUL, o Acordo prestigiou o princípio da proteção e também o princípio da efetividade, ao prever a competência dos juizes onde o autor da medida (e, portanto, beneficiário desta) se encontre.
3. LEI APLICÁVEL AO DIVÓRCIO
Para analisar a questão da lei aplicável ao divórcio, é preciso considerar que o divórcio serve usualmente, não somente para dissolver o vínculo matrimonial, como efeito principal do divórcio em si mesmo, mas também para disciplinar efeitos acessórios da vida entre os cônjuges, que passam a novo regime em razão da ruptura da comunhão de vida comum.
Da mesma forma como adota-se o dépeçage, o fracionamento, para tratar as condições exigidas para a celebração do casamento em DIPRI; cabe aplicar a mesma estratégia de distinguir os diferentes efeitos acessórios do divórcio entre si para determinação da lei aplicável em DIPRI. Como o divórcio envolve diferentes relações que se acumulam e se transformam durante a vida conjugal, este mosaico deve ser devidamente analisado no momento de ruptura do vínculo e sobre todas as relações por ele afetadas. Face ao grau de aperfeiçoamento do conflito de leis em DIPRI, deve-se aplicar a regra de conexão própria a cada matéria que guarda autonomia, para se chegar à adequada lei que lhe for aplicável.
3.1. Lei aplicável ao divórcio no Direito Comunitário Europeu
O Regulamento (UE) n° 1259/2010, chamado de Regulamento Roma III, estabelece uma cooperação reforçada em matéria de lei aplicável ao divórcio e à separação de corpos, e, distingue claramente duas situações quanto à lei aplicavel ao divórcio. O Regulamento Roma III prioriza a autonomia da vontade, ao listar as opções para uma escolha restrita da lei aplicável, a saber: a lei do Estado de residência habitual dos esposos no momento da conclusão da convenção, a lei do Estado de última residência habitual dos cônjuges, desde que um deles ainda aí resida no momento da conclusão da convenção; a lei do Estado de nacionalidade de um dos cônjuges no momento da conclusão da convenção; ou a lei do foro. A competência da lex voluntatis se prorroga também para o consentimento e o fundo da convenção relativa à escolha da lei aplicavel, mas a validade da forma da convenção está submetida à lei do Estado de residência de um dos ex-cônjuges ou daquele que residir no espaço geografico do Regulamento, se o outro aí não residir. Ademais, o Regulamento proíbe o reenvio. Na ausência de escolha da lei aplicável, o Regulamento determina, em cascata, subsidiariamente, a aplicação da lei da residência habitual dos cônjuges no momento da propositura do divórcio; a lei da última residência habitual dos cônjuges, desde que esta residência não tenha cessado há mais de um ano antes da propositura da demanda e que um dos cônjuges ainda seja aí residente no momento da propositura da demanda; a lei da nacionalidade de ambos os cônjuges no momento da propositura da demanda; e, por fim, a lex fori. A lei aplicável à separação de corpos tem sua aplicação estendida à conversão em divórcio, salvo se as partes escolherem outra lei, nos limites do Regulamento. No que concerne à lei aplicável, o Regulamento confirma os critérios tradicionalmente utilizados para a lei aplicável ao divórcio e à separação de corpos pelo princípio da proximidade. Face aos conflitos móveis em matéria de divórcio, o Regulamento tende a examinar o critério de conexão, no momento da propositura da demanda de divórcio.
Especificamente quanto à lei aplicável ao regime matrimonial, o Regulamento n° 1103 (2016), que visa dar tratamento jurídico às questões de DIPRI envolvendo regime matrimonial, inovou. Beneficiando-se, em parte, em alguns ensinamentos da Convenção da Haia sobre a lei aplicável aos regimes matrimoniais de 1978, que logrou pouca repercussão, e, ficou limitada apenas a três Estados europeus; o Regulamento priorizou a autonomia da vontade, mas simplificou o labirinto de opções para a lei aplicável ao regime matrimonial, através de uma escolha limitada entre a lei da residência habitual à época da celebração do casamento ou da nacionalidade comun. Na ausência de escolha, há a previsão, em cascata, do recurso à lei da primeira residência conjugal (após o casamento), seguida da lei de nacionalidade comum dos cônjuges no momento do casamento; e, em último caso, a lei do Estado com o qual eles possuam «os laços mais estreitos» no momento da celebração do casamento. Como a Convenção da Haia sobre o mesmo objeto, o Regulamento (UE) n° 1103/2016 tem uma abertura universal em relação à lei aplicável ao regime matrimonial, ao permitir a aplicação da lei de um Estado que não é parte do Regulamento. Entretanto, diferentemente da Convenção, o Regulamento (UE) n° 1103/2016 impôs unidade da lei aplicável, com uma solução mais harmoniosa, por manter a homogeneidade das relações patrimoniais entre os cônjuges. sem concessão para a adoção da lex rei sitæ para bens imóveis.
Quanto à parte extrínseca da convenção para a escolha da lei aplicável ao regime matrimonial, o Regulamento (UE) n° 1103/2016 prevê que a convenção é considerada válida, alternativamente, em obediência à lei da residência comum dos cônjuges; ou segundo a lei do Estado-Membro cujas exigências sejam mais severas, no caso em que cada cônjuge tenha a residência habitual em Estados-Membros diferentes, à época da celebração da convenção; ou ainda conforme a lei do Estado-Membro, onde um cônjuge tenha sua residência habitual no momento da celebração da convenção, na hipótese em que o outro cônjuge não tenha sua residência em um Estado-Membro. O Regulamento (UE) n° 1103/2016 utiliza estes mesmos critérios para a validade da convenção matrimonial, quanto à forma, e, frisa a necessidade de observar exigências suplementares, caso a lei aplicável ao regime matrimonial as imponha. Ainda no tocante à convenção, o Regulamento (UE) n° 1103/2016 condiciona a validade do consentimento dos cônjuges e o fundo da convenção à lei escolhida pelos cônjuges, com escolha limitada entre a lei da residência habitual, no momento da celebração do casamento ou aquela da nacionalidade comum, mas permite a um dos cônjuges recorrer à lei da sua rsidência habitual no momento de acionamento desta jurisdição, para justificar sua ausência de consentimento. Cabe ainda observar que o Regulamento (UE) n° 1103/2016 permite facilmente aos cônjuges trocar a lei aplicável ao regime matrimonial, através da opção entre a lei da residência habitual ou da nacionalidade de um dos cônjuges no momento da conclusão da convenção.
A repercussão do direito convencional produzido no seio da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado se faz sentir na UE, em matéria de alimentos, uma vez que o artigo 15 do Regulamento (CE) n. 4/2009 relativo à competência, à lei aplicavel, ao reconhecimento e à execução de decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares remete ao Protocolo da Haia sobre a lei aplicavel às Obrigações Alimenares de 2007. Apesar da consagração da lei da residência habitual do credor, como regra geral do Protocolo, mesmo se há uma mudança de residência, com a concessão em favor da lei da nova residência, para o caso de modificação da obrigação; esta regra não é absoluta. As partes podem escolher, salvo se se tratar de um (ex)cônjuge incapaz, a lex patriae de uma das partes, a lei do Estado da residência habitual de uma das partes, a lei aplicável às relações patrimoniais entre as partes (mesmo se se tratar da lex voluntatis) ou a lei aplicável ao divórcio ou separação de casal, ainda que por força de escolha das partes. Ademais, para os cônjuges ou ex-cônjuges, a oposição à lei da residência habitual do credor deve se fazer em nome do princípio da proximidade, que permite substiuir esta lei pela lei da última residência conjugal.
3.2. Lei aplicável ao divórcio no direito comunitário do MERCOSUL
Na esfera do MERCOSUL, o Acordo reitera os critérios já usados para jurisdição, para a lei aplicável, harmonizando assim ambas as questões. Deste modo, a lei aplicável ao divórcio é aquela do domicílio conjugal; e, subsidiariamente, em sua falta, à escolha do autor, a lei do último domicílio conjugal, caso um dos cônjuges aí se encontre, ou ainda, a lei do domicílio do autor ou aquela do domicílio do réu.
Da mesma forma como é feito para matéria de jurisdição, o regime matrimonial aplicado aos bens do casal comporta regra excepcional no conflito de leis, dado o caráter patrimonial. Neste contexto, diferentemente do que é feito no Regulamento n° 2013/2016, que priorizou a autonomia da vontade na matéria; no MERCOSUL, a autonomia da vontade é prevista timidamente, desde que as convenções matrimoniais obedeçam à lei do Estado em que sejam outorgadas, consagrando-se assim a lex loci actus. Na falta de escolha pelas partes, recorre-se, em cascata, à lei do primeiro domicílio conjugal, e, à lex loci celebrationis do casamento. Ainda sobre outros eventuais efeitos acessorios do divórcio, faz-se mister registrar que o legislador mercosulino não detalhou os eventuais efeitos acessórios do divórcio, como o fez o legislador da União Europeia; preferindo apenas indicar, salvo exceção para questões patrimoniais, o divórcio como uma questão geral.
Da mesma forma como a União Europeia dá importancia à questão das medidas cautelares, o MERCOSUL no Protocolo de Ouro Preto sobre Medidas Cautelares de 1994 prevê medidas amplas para a proteção de bens, pelo juiz do Estado-Parte pretendendo sua execução no território do outro Estado-Parte, mas salvaguardando a aplicação da lei do Estado requerido no que diz respeito aos efeitos relativos à propriedade e aos direitos reais do bem objeto da medida de proteção.
4. RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE DECISÕES DE DIVÓRCIO
A área de reconhecimento e execução de decisões estrangeiras é, usualmente, um campo, onde os Estados costumam recorrer a mecanismos de cooperação juridica internacional. E isto se faz de modo ainda mais intenso, em blocos como o MERCOSUL e a União Europeia, para tentar facilitar a circulação de decisões intra bloco, como uma forma de otimizar os objetivos do bloco, como a liberdade de circulação de pessoas.
4.1. Reconhecimento e execucao de decisoes de divórcio no Direito Comunitário da União Europeia
No nível da União Europeia, o Regulamento Bruxelas II-bis prevê o reconhecimento e a execução de decisões entre os Estados-Membros, partindo da utilização indireta dos critérios de competências enunciados nos seus artigos 3-7. Embora o Regulamento confime a tendência da livre circulação de decisões dentro do bloco, como já feito em outros regulamentos, o Regulamento Bruxelas II-bis retoma os crritérios tradicionais para o reconhecimento de decisões estrangeiras, ao estabelecer os motivos para a recusa do reconhecimento, a ser levantada pela parte interessada, como a ofensa à ordem pública do Estado requerido, a falta de contraditório entre as partes, o conflito com a coisa julgada do Estado requerido, de outro Estado-Membro ou ainda de um terceito Estado. O Regulamento proíbe ainda qualquer forma de revisão do mérito da decisão, questionamento da competência da autoridade prolatora da decisão ou da lei aplicada por esta autoridade.
Cabe observar que o Regulamento (CE) n. 4/2009 relativo à competência, à lei aplicavel, ao reconhecimento e à execução de decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares estabelece diferenças para o reconhecimento das decisões prolatadas em matéria de obrigações alimentares. De um lado, se a decisão provém de um Estado-Membro ligado pelo citado Protocolo da Haia, o reconhecimento se faz de pleno direito, sem possibilidade de contestá-la. Ademais, a decisão goza de força executória, mas o devedor tem dois meios para bloquer a execução: requerer a suspensão ou recusar a execução por circunstâncias tais como a litispendência internacional e a prescrição executória no Estado requerido; ou ainda solicitar um reexame da decisão, no Estado de origem da decisão, em razão do não comparecimento perante o juiz que prolatou dita decisão. Por outro lado, se a decisão vem de um Estado-Membro não ligado pelo Protocolo da Haia, o reconhecimento também se faz de pleno direito, mas qualquer parte interessada pode contestar. A execução se faz em outro Estado-Membro, depois desta decisão ser declarada exequível a pedido de uma parte interessada, mas admite-se recursos.
4.2. Reconhecimento e execução de decisões de divórcio no direito comunitário do MERCOSUL
Quanto ao MERCOSUL, o Acordo foi muito suscinto sobre a temática de reconhecimento e execução de decisões de divórcio e matérias afins. O artigo 14, na verdade, prevê a possibilidade de reconhecimento e execução, sem a previsão de regras especificas, mas remetendo, de forma eficiente ao dispositivo do MERCOSUL destinado para este fim. Diferentemente do que ocorreu na União Europeia, o MERCOSUL trouxe limitado aporte, em termos de direito comunitário, para o DIPRI, em relação aos Estados-Partes; provavelmente por seu escopo mais limitado, visando ao fortalecimento de um mercado comum. As normas oriundas do MERCOSUL para os Estados-Partes focaram no direito processual internacional, visando a cooperação jurídica internacional, de modo que os protocolos adotados na área do DIPRI versam majoritariamente questões de conflito de jurisdições, e, episodicamente, normas de conflito de leis, no sentido clássico da matéria.
O Protocolo de Las Leñas de 1992, sobre cooperação internacional em matéria civil, comercial, penal e administrativa, facilitou a circulação de decisões dentro do bloco. O principal mecanismo de cooperação consiste na possibilidade de reconhecer e executar decisões judiciais e arbitrais prolatadas em um Estado-Parte em outro Estado-Parte, incluindo aquelas sobre matéria de divórcio, por meio de cartas rogatórias, com base no Artigo 19 do Protocolo de Las Leñas. Este mecanismo de cooperação jurídica internacional dispensa, portanto, o recurso ao procedimento tradicional para o reconhecimento de decisões estrangeiras, como a ação de homologação de sentença estrangeira do direito brasileiro, para reconhecer uma decisão de divórcio oriunda destes Estados no Brasil, e vice-versa. Por meio de carta rogatória, usualmente mais célere e menos complexa do que o procedimento tradicional, pode-se a requerimento da parte no Estado-Parte rogante, solicitar o reconhecimento e a execução da decisão por meio do expediente da rogatória. Ainda com relação ao campo geografico de aplicação, cabe registrar que em 2002 fez-se um acordo que reproduz a extensão dos mecanismos previstos no Protocolo de Las Leñas à Bolívia e Chile enquanto Estados-Associados ao MERCOSUL.
No que concerne a possibilidade de recusa ao reconhecimento de decisões estrangeiras, com base no filtro da ordem pública, o Acordo ressalva que um Estado-Parte que não preveja o casamento entre pessoas do mesmo sexo em seu direito interno podera recusar a aplicação das normas do Acordo sobre esta matéria. Donde se conclui que o reconhecimento de uma decisão de divórcio de casal homoafetivo oriunda, por exemplo, da Argentina ou Uruguai, poderia ser recusada em um Estado-Parte que seja refratario ao casamento homoafetivo, como o Paraguai. Na União Europeia, embora o Regulamento também preveja a tradicional cláusula escapatória da ordem pública, a negativa de um Estado-Membro europeu a reconhecer uma decisão de divórcio de casal do mesmo sexo prolatada na França ou nos Países Baixos seria mais difícil. Não somente pela maior permeabilidade do instituto aos diferentes nacionais dos Estados que compõem o bloco, mas principalmente, pelo respeito aos direitos adquiridos, reforçado pelo uso de certificados relativos a estado, no âmbito do bloco. Ademais, na seara dos direitos humanos, a Corte já se pronunciou sobre a necessidade de reconhecimento dos casamentos homoafetivos validamente constituídos por cidadãos europeus, e, pelo respeito à circulação deste status, em respeito à não discriminação e à liberdade de circulação, enquanto pilar do bloco.
5. CONCLUSÃO
Ao comparar-se os dois blocos de integração, percebe-se o avançado estágio da União Europeia, em termos de regras sobre divórcio, em razão do avançado estágio de seu direito comunitário, contando com vários regulamentos que visam disciplinar a vida familiar, mas também pelo avançado grau de aplicação do DIPRI por seus Estados-Membros.
No âmbito do MERCOSUL, apesar de o direito comunitário sobre a matéria ser muito suscinto, além da estrutura do bloco, para acompanhar tal aplicação, ser mais restrita, sem contar por exemplo, com a força da Corte de Justiça das Comunidades Europeias, o bloco sul-americano tem envidado esforços para tais fins. Além das já famosas normas de cooperação instituídas pelo Protocolo de Las Leñas, para reconhecimento e execução de decisões por meio de cartas rogatórias, o bloco deu grande impulso ao adotar o Acordo entre os Estados-Partes do MERCOSUL e Associados, sobre jurisdição internacionalmente competente, lei aplicável e cooperação jurídica internacional em matéria de matrimonio, relações pessoais entre os cônjuges, regime matrimonial de bens, divórcio, separação conjugal e união não-matrimonial, em 2012.
Por fim, é importante observar, em ambos os blocos, a contribuição das normas existentes para disciplinar as questões de circulação do estatuto familiar, em especial do divórcio, para garantir a livre circulação de pessoas, inclusive pelo estatuto instituído pelo divórcio a diversos ex-cônjuges, mas também a inúmeras famílias, que sofrem diretamente consequências deste status jurídico. E, neste contexto, possuem grande destaque os mecanismos de cooperação jurídica internacional utilizados para o reconhecimento e execução de decisões dentro do bloco, para tornar efetivos direitos, o status já adquirido pelo divórcio.