1. INTRODUÇÃO
O objetivo desta pesquisa é analisar o mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL e o exercício, por este bloco econômico regional, da regulação do comércio, inclusive com repercussão global, constatando-se seu estado atual, os avanços alcançados e os que ainda estão por vir.
Para tanto, o trabalho terá início com a análise geral e sintética da governança global de diversos setores, decorrente do fenômeno da globalização e exercida por atores que vão além das tradicionais organizações intergovernamentais. Com isto, será demonstrada a emergência de uma nova disciplina jurídica, que passou a ser chamada de Direito Administrativo Global (DAG) e tem como objetivo conduzir o estudo e a prática da governança transnacional com base em um conjunto de princípios jurídicos, tanto substantivos, quanto procedimentais. O respeito a estes princípios visa ampliar o grau de legitimidade, accountability e controle na regulação global.
O estudo apreciará, em seguida, a governança global do comércio exercida pelo MERCOSUL sob a ótica do DAG, sobretudo através do seu mecanismo de solução de controvérsias, partindo de uma análise evolutiva até chegar no estágio atual, cujas principais inovações foram a criação do TPR, que inaugurou um sistema de duas instâncias e recebeu a atribuição para proferir opiniões consultivas que, embora não vinculantes nem obrigatórias, são um avanço para a integração e para o fortalecimento do direito mercosulino. Ainda sobre o mecanismo de solução de controvérsias, será feita uma análise crítica à luz do DAG, demonstrando o nível de cumprimento dos ditames desta disciplina no âmbito do contencioso do MERCOSUL, demonstrando em que medida há o respeito aos seus ditames.
Como aprofundamento sobre o mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL, será estudado o caso da importação de pneus remodelados, que foi alvo de mais de uma disputa no cone sul, inclusive com repercussões em outros lugares do globo, como na União Europeia. Assim, tentar-se-á demonstrar a dimensão global da regulação do comércio exercida pelo MERCOSUL, ressaltando, mais uma vez, a necessidade de aplicação do DAG para elevar o nível desta governança ao rule of lawglobal.
2. DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL (DAG)
O Direito Administrativo, evidentemente, está intimamente relacionado à ideia de administração pública nacional, tendo em vista que um dos objetivos da disciplina é justamente a regulação do exercício da função administrativa pelo Estado, sob a égide do princípio da legalidade. Sendo assim, conforme lição de Vasco Pereira da Silva1, “o Direito Administrativo é, na sua origem, de caráter nacional”.
No entanto, segundo o mesmo autor, vive-se atualmente uma ruptura de paradigma, na medida em que o estudo e prática jurídica estão evoluindo para a adoção de uma visão comparatistas de ordenamentos jurídicos estrangeiros e, deste modo, passa o Direito Administrativo por uma internacionalização, que resulta dos processos de globalização econômica e, consequentemente, de globalização jurídica2.
As transformações sofridas pelo Direito Administrativo, neste contexto, mitigam o aspecto estatal deste ramo jurídico, de forma que deixa de existir um elo necessário entre este e o Estado, tendo em vista que as atividades administrativas passaram a ser promovidas, por exemplo, por organizações internacionais e até entidades privadas3. É por esta razão que se fala atualmente em governança global e, como seu alicerce e mecanismo de regulação e controle, o Direito Administrativo Global (DAG)
Na visão de Benedict Kingsbury, Nico Krisch, e Richard Stewart - precursores do estudo do DAG, este consistiria em um novo ramo jurídico, que ainda não é estudado, nem tampouco aplicado, de forma unificada, mas já há alguns esforços na doutrina para sistematização de suas normas (nacionais, transnacionais e internacionais), que promoveriam a disciplina da atuação administrativa em nível global4.
Sendo, pois, uma realidade a regulação no âmbito global - uma vez que organizações internacionais e outros atores transnacionais como companhias privadas e até órgãos governamentais nacionais, em regime de cooperação, praticam atos de poder, quer para restringir, quer para conceder direitos no cumprimento de decisões políticas5-, é preciso reconhecer a existência de um conjunto de normas que conformem estas atividades. Daí falar-se no DAG, a impor princípios regentes da governança global.
Diogo Freitas do Amaral define administração pública como atuação do Estado, por meio de serviços organizados e mantidos por ele, para satisfação de necessidades coletivas.A administração pública, ainda na visão de Amaral, também corresponderia à autorização, regulamentação e fiscalização, subsídio ou apoio às atividades econômicas privadas mais importantes para a sociedade6. Assim, resumidamente, à administração pública nacional cabe basicamente a satisfação de demandas coletivas e a regulação de alguns setores econômicos.
É possível dizer que em nível global isto também ocorre, agindo diversos atores em cooperação para satisfação de necessidades decorrentes da globalização. Assim, em âmbito global há inegável manifestação de poder7, o que impõe a necessidade de limitação através do reconhecimento de normas que disciplinem este exercício de autoridade transnacional. Esta é justamente a proposta do DAG, que pode ser conceituado da seguinte forma:
.global administrative law effectively covers all the rules and procedures that help ensure the accountability of global administration, and it focuses in particular on administrative structures, on transparency, on participatory elements in the administrative procedure, on principles of reasoned decision-making, and on mechanisms of review8
Há, neste sentido, dois níveis de administração, um nacional e outro global, de modo que se pode reconhecer a existência de um espaço administrativo global, que é autônomo no que tange à administração pública interna, embora tenha com esta uma relação de complementariedade.
Com esta visão, é superada a ideia do Direito Internacional Público (DIP), de que há legitimidade democrática na governação global na medida em que responde aos Estados que, de sua vez, respondem ao seu povo e seus tribunais. De igual maneira, ultrapassa-se a ideia baseada no Direito Administrativo doméstico de que o controle e a responsabilização pelos atos praticados no exercício da regulação global se resolvem com a aplicação do Direito Administrativo doméstico quando da tomada de decisões nacionais na internalização dos programas transnacionais9.
Assim, havendo uma administração global, é preciso reconhecer que esta possui dinâmica e características próprias, emergindo a necessidade de desenvolvimento de um ramo jurídico que discipline atuação administrativa no plano transnacional10. Em razão disso, Sabino Cassese afirma a existência de princípios jurídicos, previstos em diversas fontes normativas, que se aplicam aos sistemas de regulação global em si, mas também repercutem na atuação dos Estados quando da implementação dos programas regulatórios transnacionais, consolidando uma espécie de rule of law do DAG11.
Tais princípios podem ser divididos em substantivos e procedimentais. Segundo Kingsbury, Krisch e Stewart, os princípios ou padrões substantivos do DAG são centrados basicamente nas ideias de proporcionalidade, em sua visão tripartida (adequação ou relação racional entre meios e fins, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), bem como de expectativa legítima12.
Dentre os princípios procedimentais do DAG, cabe um destaque especial ao direito de participação, consistente não só na possibilidade de manifestação das pessoas naturais ou coletivas, bem como de grupos representativos de setores econômicos e sociais, passíveis de ser afetados pela decisão administrativa na esfera global13. Os demais princípios procedimentais são o da transparência, o da motivação das decisões, e o do direito ao recurso, que, de certa forma, são relacionados ao princípio da participação, porque são instrumentais ao exercício de influência dos interessados nas decisões de regulação global.
Reconhecendo-se, pois, a existência do DAG como disciplina autônoma, é nos seus próprios princípios que se deve encontrar o fundamento de legitimidade da governança global. Revela-se, pois, a importância do seu estudo para a presente pesquisa, permitindo a análise sobre o exercício ou não, no âmbito do MERCOSUL - notadamente em seu mecanismo de solução de controvérsias -, de governança em nível global e, em caso de resposta positiva, se há conformidade com o arcabouço principiológico que se desenha para a disciplina.
3. ANÁLISE DO MECANISMO DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DO MERCOSUL SOB A ÓTICA DO DAG
Na América Latina em geral, ainda há pouca preocupação com o debate sobre a governança global, de modo que também é deficitário o estudo do DAG, mais expressivamente desenvolvido nos Estados Unidos e na Europa14. Isto, evidentemente, demonstra a importância do aprofundamento a que se propõem esta pesquisa, tomando como referência o mecanismo de solução de litígios do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL).
Evidentemente, com a expansão do comércio internacional, a regulação meramente doméstica deste setor se mostra insuficiente, surgindo na esfera global diversos sistemas regulatórios. Apesar de serem muitos estes sistemas, dentre os quais o MERCOSUL - de modo que existem peculiaridades em cada caso -, algumas características comuns da regulação transnacional são apontadas por Sabino Cassese, sendo a principal delas a busca constante pelo equilíbrio entre interesses conflitantes15.
Fazendo uma análise de alguns sistemas de regulação do comércio internacional, o autor aponta a preocupação constante com: a) a transparência das condições para importação; b) uniformização de exigências e procedimentos para importação; c) equivalência entre os tratamentos dados aos Estados uns aos outros; d) previsão de um procedimento de consulta para que aqueles que se sentirem prejudicados possam abrir o debate em painéis de solução de controvérsias; e e) que o controle das importações pelos Estados integrantes do sistema seja feito por um procedimento célere, isonômico, sem exigências excessivas, com garantia de confidencialidade, razoabilidade, proporcionalidade e com mecanismos de revisão de decisões16.
Alguns desses pontos serão analisados a seguir na seara do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, levando-se em consideração algumas dificuldades como a diferença de tradições jurídicas nos seus Estados-membros, sua condição de países em desenvolvimento, sem tanta solidez institucional, consolidação do Direito Administrativo doméstico e poder global, como os países desenvolvidos17.
No que tange à busca por participação dos interessados nos processos que visem a tomada de decisões que possam os atingir, é possível perceber esta preocupação do MERCOSUL. Neste bloco econômico ainda não se adota a supranacionalidade, de modo que não há uma autoridade suprema que impõe o Direito verticalmente e, por este motivo, as decisões políticas são tomadas na base da consensualidade, de modo que os Estados-membros são colocados em pé de igualdade em coordenação de soberanias18. É, pois, uma members-driven organization à semelhança da Organização Mundial do Comércio (OMC), o que já garante, ao menos do ponto de vista dos Estado-membros, alto grau de participação na governança.
Nos processos de solução de controvérsias a participação é evidenciada no viés do contraditório e da ampla defesa, prestigiados, por exemplo, no artigo 14 do Protocolo de Olivos, que disciplina a delimitação do objeto da controvérsia antes da submissão ao julgamento pelo Tribunal Arbitral Ad Hoc. Todavia, a participação também pode ser percebida com a ampliação do acesso ao sistema, já que também é facultado ao particular - pessoa natural ou coletiva - que se sentir prejudicado por atos contrários à normas regionais19.
Inclusive, o fato de incorporar o particular como ator no processo de regulação do comércio no âmbito do MERCOSUL, já que nas relações de comércio internacional há sempre sua participação, o aproximam ainda mais do Direito Administrativo Global, que reconhece que os indivíduos são sujeitos do processo regulatório transnacional.
Já com relação à transparência, que é ideia consectária à ideia de participação, cumpre salientar que as decisões proferidas no sistema de solução de controvérsias, seja pelos Tribunais Arbitrais Ad Hoc, seja pelo Tribunal Permanente de Revisão (TPR). Assim, é nítida a preocupação com o a publicização de seus atos, facilitando, em algum nível, o controle social da atividade de integração. Se isto não é suficiente para conferir a participação que se almeja no sistema de solução de controvérsias do cone sul, é ao menos representativo de sua disposição para a abertura cada vez maior.
Percebe-se no caso do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, ainda, a indubitável exigência de fundamentação das decisões, tendo em vista a previsão no artigo 25 do Protocolo de Olivos de que os laudos, tanto dos Tribunais Arbitrais Ad Hoc, quanto do TPR, serão fundamentados. Ainda que assim não fosse, é preciso reconhecer que o dever de motivação corresponde a um princípio geral do Direito, decorrente dos próprios rule of law edue process of law, cuja implementação visa o DAG20, além de que é também uma necessidade decorrente da participação e da transparência.
No que se refere à accountability da regulação, um dos principais problemas do Direito Administrativo Global21, também se percebe preocupação no mecanismo de solução de litígios mercosulino, apesar da dificuldade na responsabilização da Administração global é no plano internacional, uma vez que, via de regra, seus órgãos não se submetem a mecanismos de controle de seus atos por órgãos independentes, como tribunais, por exemplo.
Neste sentido, destaca-se um avanço importante com relação à accountability no âmbito do MERCOSUL, que se deu justamente na jurisprudência do TPR. Trata-se do caso do “Procedimento Excepcional de Urgência solicitado pela República do Paraguai em relação à suspensão de sua participação nos órgãos do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e à incorporação da Venezuela como membro pleno”. Neste caso, se reconheceu a possibilidade de controle de decisões política-administrativas pelo sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, desde que tenha por base as normas do bloco, refutando a alegação de que só poderia julgar disputas comerciais.
Este episódio, portanto, é mais uma demonstração do surgimento do rule of law, reconhecido no DAG, no âmbito do MERCOSUL, com o surgimento de certo nível de judicial review, capaz de corrigir atuações contrárias aos princípios do Direito e às normas do bloco.
4. AS CRÍTICAS AO SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DO MERCOSUL
O comércio assumiu contornos globais e, deste modo, sua regulação também acompanha este fenômeno, de modo que foram criados sistemas regulatórios, tanto multilaterais como a OMC, quanto regionais como o MERCOSUL e o NAFTA com seus próprios órgãos jurisdicionais22. Tanto a governança exercida pelo MERCOSUL faz parte de uma rede regulatória em conexão com outros agentes reguladores, que, no exercício da jurisdição, é comum que haja choques, demonstrando que dificilmente questões regionais deixam de gerar alguma repercussão também em nível mundial.
Exemplo desta repercussão e interação entre sistemas de regulação do comércio ocorreu com a proibição feita pelo Brasil para importação de pneumáticos recauchutados, que será analisado no tópico seguinte desta pesquisa, mas, em síntese, revelou a repercussão global de medidas regulatórias adotadas no mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL, atingindo sobretudo as Comunidades Europeias. Isto deixa clara a importância e dimensão que a regulação do comércio pelo MERCOSUL, de modo que se impõe a análise crítica do mecanismo de solução de controvérsia do MERCOSUL com a lupa do DAG para que sejam apontadas as práticas e normas com ele compatíveis, bem como os aperfeiçoamentos necessários em alguns pontos do sistema para compatibilização com os padrões exigidos pela boa governança global.
Apesar dos avanços, as críticas ao sistema de solução de controvérsias instaurado pelo Protocolo de Olivos são muitas. Uma das mais contundentes consiste na falta de previsão das consequências das decisões no ordenamento jurídico interno das partes, deixando a interpretação e aplicação das normas regionais para as jurisdicionais nacionais23. Isto leva problemas aos particulares, beneficiados com as decisões, já que pode não sentir seus efeitos, assim como dificulta a interpretação uniforme das normas do MERCOSUL pelos juízes nacionais que venham a aplica-las em litígios internos. Esse déficit de efetividade é um problema porque fragiliza o mecanismo de solução de controvérsia, prestigiando-se a soberania nacional em detrimento do respeito às normas de integração.
Há, todavia, uma tentativa de mitigação desse problema com a previsão das medidas compensatórias, que permite ao Estado-parte beneficiário da decisão do mecanismo de solução de controvérsia praticar atos de restrição ao comércio contra o Estado derrotado, justamente para forçar o cumprimento da decisão e reduzir o dano provocado pela demora neste cumprimento24. Segundo Raphael Carvalho de Vasconcelos,
as medidas compensatórias consistem basicamente na suspensão de obrigações assumidas no âmbito do acordo regional que sejam do interesse do estado supostamente faltante” e devem ser proporcionais ao dano provocado pelo não cumprimento da decisão do laudo25.
Outro problema apontado no mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL é a possibilidade de submissão de um mesmo conflito tanto para organização regional, quanto para outros sistemas - desde que se escolha um deles -, havendo, pois, competência concorrente. Sobre o tema, Ernesto J. Rey Caro afirma que, embora tal possibilidade vise a proteção da coisa julgada, evitando decisões conflitantes, isto também provoca o enfraquecimento da integração, na medida em que deixa de consagrar a primazia do foro regional26.
Embora isto possa representar o enfraquecimento do projeto regional de integração, acaso optem os Estado-membros do MERCOSUL por recorrer mais a outros mecanismos de solução de controvérsias como o da OMC, também revela a salutar conexão dos sistemas regulatórios do comércio, que muitas vezes concorrem na governança que exercem. Ou seja, o choque entre os sistemas de regulação é natural no mundo globalizado, ainda que possa representar um risco aos interesses regionais do MERCOSUL enquanto bloco econômico.
Por fim, a crítica que também se faz ao sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL diz respeito ao acesso do particular. É que, a apresentação de reclamações do particular que se sente prejudicado pela adoção de medidas discriminatórias por Estados-membros do MERCOSUL, deve ser feita à Seção Nacional do MERCOSUL do Estado no qual estão sediados seus negócios. Assim, é analisado se existem elementos suficientes que demonstrem a veracidade das alegações e a existência de ameaça de prejuízos, hipóteses na qual a Seção Nacional estaria obrigada a entabular contatos diretos com o Estado reclamado27.A participação do particular é, pois, mitigada, o que é contrário aos ditames do DAG que impõe cada vez mais a presença dos interessados nos sistemas de regulação para conferir maior legitimidade.
Assim, apesar da possibilidade de reclamações de particulares no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, isto depende da intermediação da Seções Nacionais, que são compostas por membros indicados pelos governos. Desta forma, os interesses dos particulares são submetidos a uma primeira decisão que pode ter caráter político, o que certamente diminui a proteção a eles conferida. Inclusive isto leva ao questionamento quanto à possibilidade ou não de o particular se insurgir contra ato de seu próprio Estado parte28.
Para resolver esta questão, cumpre mencionar a mudança da redação que era conferida no Protocolo de Brasília em relação à que consta do Protocolo de Olivos. Isto porque no primeiro se previa que, constatando a respectiva Seção Nacional do MERCOSUL os elementos que permitam determinar a veracidade da violação e a existência ou ameaça de um prejuízo ao particular, “poderá entabular contatos diretos” com o Estado reclamado. Já o segundo, prevê que, neste caso a Seção Nacional “deverá entabular contatos diretos”29.
Assim, abre-se margem à interpretação de que a análise na reclamação seria um direito do particular, visão defendida nesta pesquisa, inclusive em respeito ao princípio da participação, que é uma das bases do DAG. Se o MERCOSUL realiza governança transnacional e se o DAG se propõe justamente a disciplinar e conferir padrões substantivos e procedimentais a esta atividade, seus princípios devem ser respeitados. Neste caso, já que há dúvida quanto à interpretação de normas do MERCOSUL, o princípio da participação deve socorrer o intérprete para suprir a lacuna, reconhecendo-se o direito subjetivo do particular de levar adiante sua reclamação no mecanismo de solução de controvérsia do bloco econômico.
Outro ponto crucial do sistema inaugurado pelo Protocolo de Olivos foi a criação do Tribunal Permanente de Revisão (TPR) que, além da competência de revisão das decisões do Tribunal Ad Hoc (TAH), funcionando como segunda instância no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, acumula a função de instância única nos casos em que assim optarem os Estados-partes da controvérsia, bem como a função consultiva e de apreciação de medidas excepcionais de urgência30.
Há ainda, a competência do TPR de apreciar opiniões consultivas feitas pelos Tribunais Supremos dos Estados-membros e pelos órgãos decisórios do MERCOSUL para uniformização e harmonização do direito regional mercosulino. Todavia, as interpretações não são vinculativas, conforme dispõe o artigo 11 da decisão nº 37/03 do CMC, de modo que aqueles que se valem do instrumento não têm obrigação jurídica de seguir a interpretação do TPR na matéria sobre a qual recai a consulta31. Isto demonstra, mais uma vez, o caráter insuficiente do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, na medida em que a previsão de decisões não vinculativas enfraquece o TPR e desperdiça seu potencial estabilizador do bloco.
Nota-se, portanto, que a criação do TPR consistiu em um importante avanço do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL. Todavia, o fato de estar fincada em uma lógica arbitral e com limitações em seus poderes, ainda mantém o sistema muito flexível. Se, por um lado, isto facilita a solução negociada das controvérsias - que muitas vezes é comemorada pelos Estados-membros em razão de sua instabilidade política e econômica, bem como pela significativa influência externa -, prejudica a integração regional em razão da insegurança e instabilidade que provoca. A falta de vinculatividade e o limitado acesso às opiniões consultivas é mais um exemplo das ideias de pragmatismo, realismo e gradualismo, que marcam o processo de consolidação do MERCOSUL32.
Apesar das críticas, demonstrando-se que o atual sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL ainda não é o ideal para a estabilização do bloco, não é o definitivo (por previsão expressa nesse sentido), bem como que também não respeita integralmente os ditames do DAG, é preciso reconhecer avanços, sobretudo no que se refere à maior clareza dos aspectos procedimentais em relação ao sistema anterior. Outrossim, a inovação consistente na criação do TPR também foi salutar, já que uma instância uniformizadora permite maior harmonização na interpretação das normas do MERCOSUL.
5. A PROBLEMÁTICA DOS PNEUS REMODELADOS E O MERCOSUL ENQUANTO ATOR DO DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL
Um dos temas que revela a importância, dimensão e repercussão global da atuação do MERCOSUL, diz respeito ao comércio de pneus remodelados. No âmbito do mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL a questão foi debatida pela primeira vez em 2002 - portanto, pelo procedimento do Protocolo de Brasília -, por provocação do Uruguai contra medida administrativa adotada pelo Brasil, que proibia a importação deste produto33.
Em síntese, alegou o Uruguai, que a medida restringia o comércio, violava o pacta sunt servanda e o princípio da boa-fé, já que a comércio deste produto entre os países já ocorria há muito tempo e sem entraves. O Brasil, por sua vez, alegou que a medida tinha como fito a proteção ao meio ambiente, o que justificaria a restrição ao livre comércio. Isto, todavia, não foi acatado pelo TAH instaurado, que, adotando uma postura neoliberal e favorável ao livre comércio, entendeu que não poderia ser admitido no âmbito do MERCOSUL tal medida, que, inclusive, violaria a decisão CMC nº 22/2000, que veda a adoção de medidas restritivas ao comércio recíproco34.
Percebe-se, portanto, que a fundamentação da decisão do TAH, além de considerar o princípio do livre comércio, utilizou uma norma emitida pelo próprio MERCOSUL, portanto, sem a força dos tratados, reconhecendo a ampliação das fontes normativas da regulação regional do comércio e revelando, no âmbito do bloco, uma nítida aproximação com o DAG. É que, para este, uma das características da governança global é justamente a incidência de normas com menos característica de hard law típica do Direito Internacional Público.
Destaque-se, ainda, que, ao cumprir a decisão do TAH, o Brasil foi além e, anulando a medida restritiva, permitiu a importação de pneus remodelados de todos os membros do MERCOSUL, demonstrando que a atuação do mecanismo de solução de controvérsias não se limitou à relação entre Brasil e Uruguai35. Houve, portanto, uma repercussão transnacional com ares de governança global e, portanto, regulada pelo DAG.
O tema continuou gerando repercussão - desta vez revelando dimensão ainda mais global -, já que em 2005 as Comunidades Europeias demandaram no sistema de solução de controvérsias da OMC. A alegação desta vez foi a de que, a despeito da proibição da importação de pneus recauchutados pelo Brasil, havia a exceção com relação aos membros MERCOSUL, de modo que deveria ser aplicada a cláusula da nação mais favorecida36.
Ao final, já em segunda instância, as Comunidades Europeias lograram êxito na demanda, de modo que ficou decidida e contrariedade da medida brasileira ao livre comércio, facultando-se ao Brasil a adoção de duas medidas alternativas: abertura generalizada das importações dos pneus remodelados ou fechamento total do mercado brasileiro a este produto, inclusive com relação aos membros da OMC. O Brasil escolheu a segunda opção e vetou por completo a entrada deste produto, inclusive com origem nos dos países do cone sul37. Assim, se as Comunidades Europeias haviam sido atingidas por decisão do MERCOSUL em procedimento do qual não faziam parte, agora foram os países do MERCOSUL que sofreram consequências da decisão da OMC em procedimento que também não participaram.
O outro caso - que será analisado - ainda envolvendo pneus remodelados consistiu, em síntese, em proibições impostas pela Argentina por medidas administrativas e, posteriormente, por decreto e por lei, de importação destes produtos. Neste caso, que já se deu sob o a égide do Protocolo de Olivos, também se discutiu se a proibição imposta corresponderia à violação ao princípio do livre comércio ou se consistiria em exceção justificável pela proteção ao meio ambiente.
O procedimento no TAH, frustradas as negociações diretas, se iniciou em 2005 e foi marcado por ampla discussão técnica, com a indicação por ambas as partes de peritos, sobretudo para dirimir a controvérsia quanto à nocividade ou não dos pneus remodelados ao meio ambiente, o que justificaria ou não aplicação da medida restritiva ao comércio38.
O laudo arbitral, cotejando as alegações de ambas as partes e as provas produzidas, julgou improcedente a reclamação do Uruguai, na medida em que considerou que as restrições argentinas tinham fundamento, visto que a importação de pneus remodelados de outros países aumentaria o passivo ambiental da Argentina. Seria diferente, portanto, da produção doméstica de pneus remodelados, uma vez que eram utilizados seus próprios pneus usados, de modo a diminuir este passivo.
Assim, entendeu o tribunal arbitral que a proibição, que não se dirigia tão somente ao Uruguai, não violava as normas do MERCOSUL, que também impõem a proteção ao meio ambiente, consistindo o referido caso em exceção aceitável à livre circulação de produtos entres os países-membros, já que este princípio não seria absoluto. Desta forma, ainda que não tenha mencionado expressamente, realizou um sopesamento de bens e interesses o TAH e, mesmo sem de debruçar tecnicamente sobre esta questão, considerou a proteção ao meio ambiente um valor mais importante do que o livre comércio no caso em apreço39.
Foi apresentado recurso de revisão pela Argentina, levando o caso ao TPR, que, de início - analisando o direito que incidiria no caso - asseverou que seriam aplicadas as normas do MERCOSUL para saber se a exceção ambiental prevaleceria neste caso concreto ou não, mas que as demais normas de Direito Internacional somente seriam aplicadas subsidiariamente40.
No que tange à justificativa da exceção imposta, o TPR entendeu que a medida não tinha a fundamentação devida, uma vez que nos próprios antecedentes legislativos da lei restritiva em questão, foi citado como um dos objetivos da sua edição, a proteção da indústria nacional41. Apesar disso já ser motivo suficiente para se determinar a revogação da medida restritiva, o TPR analisou detidamente o critério da proporcionalidade. Cumpre salientar que isto já demonstra a tendência do TPR de exigir a boa governança do comércio, seja pelos Estados-membros, seja pelo próprio MERCOSUL, exigindo motivação de decisões e proporcionalidade, em consonância com os ditames do DAG.
Com relação à proporcionalidade, foi constatado que a proibição não reduziu o impacto ambiental, de modo que não seria uma via adequada para o fim que supostamente almejava a Argentina com a proibição. Por outro lado, esta também não seria o meio menos gravoso para promover a prevenção dos alegados riscos ambientais, de modo que a medida não era estritamente necessária. Poderiam ser adotadas medidas, por exemplo, de limitação e de eliminação de resíduos, mas com aplicação geral, que certamente reduziriam os danos ambientais. É que os pneus remodelados podiam ser usados em solo argentino - pela lei nacional -, de modo que, havendo a demanda, iriam continuar sendo produzidos e comercializados e, portanto, o resíduo continuaria sendo gerado42.
Com base em tais argumentos, o laudo do TAH foi revisto, sendo determinada a revogação das medidas restritivas pela Argentina pelas vias próprias no prazo de 120 (cento e vinte) dias e a abstenção de adoção, no futuro, de medidas semelhantes. Da decisão, foi apresentado recurso de esclarecimentos (embargos de declaração), que foi rejeitado pelo TPR, mantendo-se a decisão original.
O laudo foi descumprido pela Argentina, o que levou o Uruguai a aplicar medidas retaliativas, que foram questionadas pela Argentina em solicitação de pronunciamento sobre excesso de aplicação de medidas compensatórias. O TPR, todavia, não deu razão à Argentina, julgando que as medidas compensatórias eram proporcionais e poderiam ser mantidas pelo Uruguai. Isto é mais um indicativo de fortalecimento da regulação transnacional do comércio no âmbito do MERCOSUL, porque, apesar da impossibilidade de aplicação de sanção pecuniária, é um mecanismo de dar efetividade a suas normas e decisões, desde que se respeite a proporcionalidade que, como dito, é princípio basilar do DAG.
Estes casos demonstraram a importância do mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL, inclusive em interação com a OMC, ambos componentes da rede global de regulação do comércio. No caso das restrições do Brasil, percebeu-se que uma decisão mercosulina repercutiu mundialmente, já que a admissão de importação pelo Brasil de pneus remodelados somente de países do MERCOSUL afetou o comércio das Comunidades Europeias, que precisou se valer do sistema de solução de litígios da OMC.
Há, portanto, uma dimensão global na atuação do MERCOSUL que precisa ser reconhecida para que se submeta aos princípios do DAG, elevando o nível de sua governança. Neste sentido, no caso das restrições promovidas pela Argentina, embora com menor efetividade - em razão da falta de cumprimento da decisão - percebeu-se uma nítida evolução do sistema de resolução de controvérsia, já que foram destacados no julgamento alguns destes princípios como o dever de fundamentação e a proporcionalidade, seja em relação às restrições ao comércio, seja em relação às medidas compensatórias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa, inicialmente, demonstrou a existência do fenômeno da governança global, a regular importantes setores socioeconômicos - dentre os quais o comércio -, que têm repercussão para além das fronteiras nacionais e, em razão da celeridade dos avanços científico, tecnológicos e nas relações internacionais, já não podem ser contornados tão somente pelas normas do Direito Internacional.
Diante disso, surgem na doutrina estudos que visam o reconhecimento de uma nova disciplina do Direito, capaz de dar os contornos jurídicos a esta atividade regulatória, que vem sendo chamada de Direito Administrativo Global. Esta disciplina teria princípios que a caracterizariam e que precisam ser observados quando do exercício da regulação global para que se garanta certo nível de accountability e legitimidade a esta atividade. Destacou-se nesta pesquisa os seguintes princípios: a proporcionalidade, da proteção à expectativa legítima, da participação, da transparência, da motivação das decisões e o do direito ao recurso.
O estudo se preocupou, ainda, com o mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL, analisando-o criticamente de acordo com os ditames do DAG, passando por sua construção histórica até o momento atual, em que se transformou em um sistema arbitral, mas com um tribunal permanente de segunda instância, responsável pelo julgamento de disputas em grau de recurso ou como instância única, se assim optarem os contendores, bem como por apreciar opiniões consultivas de Estados-membros, seus tribunais supremos e órgãos do próprio MERCOSUL, interpretação e aplicação do Direito mercosulino.
Assim, compreendeu-se que a criação do TPR foi um importante avanço no sentido de estabilização da jurisprudência do Direito do bloco, mas ainda apresenta um déficit de institucionalização, já que não é considerado um tribunal supranacional, como se percebe, por exemplo, da não obrigatoriedade de adoção das interpretações do Direito do MERCOSUL na prolação das opiniões consultivas. Este problema, associados a outros como a não exclusividade do foro do MERCOSUL para resolver litígios de sua competência; o acesso do particular meramente indireto (dependendo da proteção diplomática do seu respectivo Estado); e a não especificação das medidas que devem adotar os Estado derrotado em uma disputa para cumprir a decisão, em respeito exacerbado à soberania nacional; consiste em dificuldade que precisa ser superada para evolução do sistema.
Para percepção da repercussão global da regulação exercida pelo MERCOSUL, sobretudo seu sistema de resolução de controvérsias, levando o bloco ao respeito aos princípios do DAG, analisou-se o caso dos pneus remodelados que gerou disputas tanto no âmbito regional, quanto no âmbito da OMC.
Assim, restou demonstrada a dimensão global da regulação exercida pelo MERCOSUL e, consequentemente a necessidade de respeito aos princípios do DAG. Isto já começa a ser sentido na própria dinâmica do mecanismo de solução de controvérsias, que, julgando outra disputa relacionada à importação de pneus recauchutados, condenou a Argentina a permitir a importação deste produto, levando em consideração vício na motivação e falta de proporcionalidade na medida restritiva ao comércio que aquele país havia adotado. Ou seja, a própria decisão do TPR neste caso, levou em consideração princípio do DAG, que devem permear a atividade regulatória do MERCOSUL.
Diante destas considerações, percebeu-se que o MERCOSUL vive um momento transitório e de desenvolvimento de sua integração, mas que seu mecanismo de solução de controvérsias ainda precisa evoluir. Assim, para o sistema mercosulino alcançar seu objetivo de integração sem olvidar do respeito ao DAG, é necessária a ampliação da sua competência, incluindo o controle de atos que não digam respeito ao comércio e a proteção e efetivação de direitos humanos; o reconhecimento da vinculatividade das opiniões consultivas, a ensejar o fortalecimento do bloco - além do uniformização da interpretação e efetividade do direito regional; e a possibilidade do acesso direto dos particulares ao mecanismo de solução de controvérsias, concretizando a democratização do sistema.