INTRODUÇÃO
A integração hemisférica, notadamente a sul-americana, é tema dos mais recorrentes na produção acadêmica brasileira em relações internacionais. Nesse sentido, merece destaque o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), objeto do fascínio de muitos pesquisadores que, malgrado a atual fase de estagnação vivenciada pelo projeto, têm lançado todos os anos publicações versando a respeito das iniciativas desenvolvidas a partir do marco do Tratado de Assunção. Tal interesse por parte dos estudiosos atribui-se, em grande medida, à convicção de que a cooperação recíproca se apresenta como um dos poucos caminhos disponíveis para a superação de desequilíbrios estruturais e deficiências históricas entre os países da região.
Essa corrente de autores compartilha também a idéia de que a consolidação do processo de integração regional, ainda mais no que se refere a Estados de proporções gigantescas como o Brasil e a Argentina, depende diretamente da atuação dinâmica dos entes subnacionais. É hoje pensamento unânime o de que a contribuição dos governos dos estados, províncias e municípios, por intermédio da paradiplomacia, e, assim sendo, o estímulo à cooperação transfronteiriça são fundamentais para o fortalecimento do MERCOSUL. Tanto o são, que a própria instituição criou recentemente o Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos. Embora não goze de poder de decisão, é encarado formalmente como a instância que, a partir da perspectiva local do processo de integração, acabará por constituir um MERCOSUL mais visível, democrático e socialmente sustentável1. Sobre esse nicho repousa ainda escasso referencial bibliográfico, e é a ele que vai remeter o presente estudo2.
Este trabalho pretende, sobretudo, resgatar o CODESUL/ CRECENEA-LITORAL, projeto de integração subnacional que une os governos dos estados da região Sul do Brasil com os das províncias do Nordeste Argentino e Litoral. Suas raízes remontam a meados da década de 1980, em um período que antecede a própria constituição do Mercado Comum do Sul, e ao longo destes mais de vinte anos produziu uma série de compromissos e acordos significativos.
Com efeito, o presente estudo visa chamar atenção para uma iniciativa que, apesar das dificuldades enfrentadas, intimamente ligadas aos limites da paradiplomacia brasileira, é relativamente exitosa em seus objetivos e deve ser fortalecida progressivamente. Sob esse intuito, o trabalho traça a evolução histórica do CODESUL/CRECENEA-LITORAL, destacando suas ações para a dinamização das relações Brasil-Argentina; e dedica-se a demonstrar como em uma realidade específica a contribuição deste projeto, para o fomento em áreas como a educação e infraestrutura, foi marcante.
A ideia é a de que a iniciativa, pioneira e ainda única do gênero na região, também possa se constituir em referencial para processos semelhantes vindouros. Ademais, sem querer ser pretensioso, este artigo busca suprir a escassa bibliografia existente sobre o CODESUL/ CRECENEA-LITORAL, ao fazer valer-se principalmente de entrevistas concedidas por autoridades ligadas ao projeto e documentos recolhidos junto às instituições pertinentes.
O artigo dedica-se, em essência, ao resgate histórico da iniciativa sub-regional. Parte-se da evolução das relações Brasil-Argentina com o objetivo de firmar compreensão mais apurada a respeito das origens e consolidação do bloco.
CODESUL/CRECENEA-LITORAL: ORIGENS E CARACTERÍSTICAS DE UM PROJETO DE INTEGRAÇÃO SUBNACIONAL
O CODESUL/CRECENEA-LITORAL consiste em projeto de cooperação que envolve estados federados brasileiros e províncias argentinas, cujo marco fundante se encontra no Protocolo 23-Regional Fronteiriço, de 1988. Entretanto, sua devida compreensão perpassa necessariamente alguns outros aspectos, que não apenas os da perspectiva estrita do surgimento e evolução do processo de integração subnacional. É preciso que se atente para o Conselho de Desenvolvimento e Integração Sul e a Comissão de Comércio Exterior do Nordeste Argentino e Litoral, as iniciativas locais que lhe deram origem; além da contextualização mais ampla do histórico das relações entre Brasília e Buenos Aires. Estas são marcadas tradicionalmente por desavenças, mas a partir da década de 1980 vivenciam um clima de inédita aproximação, sem a qual o CODESUL/CRECENEA-LITORAL dificilmente teria se concretizado.
O CODESUL e o CRECENEA-LITORAL: Aspectos Introdutórios a respeito de dois Mecanismos de Fomento Regional
O Conselho de Desenvolvimento e Integração Sul (CODESUL) foi criado em junho de 1961, por meio de um convênio assinado entre os governos dos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. Em suas origens, constituiu-se em um bloco político cujo objetivo central era o de inserir a região Sul do Brasil, tradicionalmente marginalizada dos centros de decisão e do poder nacional, aos processos de desenvolvimento econômico e sobretudo industrial pelos quais o país atravessava. Com a coordenação de políticas que visassem áreas de interesse comum e a atuação conjunta dos três entes federados, na verdade esperava-se um incremento dos investimentos do governo federal na região, ao menos proporcional à contribuição das atividades econômicas locais na geração do total de riquezas do Brasil. Em 1992, o estado do Mato Grosso do Sul também adere ao Conselho3.
O CODESUL é constituído fundamentalmente por um corpo administrativo e técnico, trabalhando com seções temáticas que abrangem as áreas de Defesa Civil, Educação, Energia, Segurança Pública, Turismo e Meio Ambiente. À frente dessa autarquia interestadual existe o cargo de Presidente do Conselho, função assumida, de forma alternada anualmente, pelos quatro governadores dos estados-membros. A estrutura é complementada por um Secretário Executivo, nomeado pelo Governador-Presidente; pelos três Governadores Vice-Presidentes e outros três Secretários Assistentes, da confiança destes últimos4.
O CODESUL está intimamente ligado ao BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul), agente técnico-financeiro que foi criado junto consigo, para dar o necessário aporte material aos seus objetivos gerais de promoção do desenvolvimento econômico e social integrados dos estados-membros. Os fundos desse Banco provêm principalmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Agência Especial de Financiamento Industrial (FINAME) e Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR)5.
Já a Comissão Regional de Comércio Exterior do Nordeste da Argentina e Litoral (CRECENEA-LITORAL), nasceu da premente necessidade que as províncias dessa região do Estado platino sentiam, no que concerne a um órgão especializado na temática das relações internacionais, e que prospectasse oportunidades para seus produtos. A instituição acabou por ser constituída em 1984; e hoje vincula formalmente as províncias de Chaco, Corrientes, Entre Rios, Formosa, Misiones e Santa Fe, sob os auspícios do propósito comum de coordenação das políticas de comércio exterior, e principalmente de aproximação econômica mais consistente com os países vizinhos.
O organograma do CRECENEA-LITORAL é semelhante ao do CODESUL, sendo composto centralmente pelos governantes das seis províncias-membras, amparadas por um Secretariado que cumpre funções técnicas e administrativas. Hoje, a Comissão, que compreende uma região pouco populosa6 embora com sólida produção agroindustrial7, já desenvolve acordos de integração subnacional com múltiplas localidades, dos quais o mais evidente é com o próprio CODESUL.
Breves Apontamentos Históricos acerca das Relações Brasil-Argentina
O CODESUL/CRECENEA-LITORAL não está descontextualizado das relações históricas produzidas entre Brasil e Argentina. Na realidade, o próprio Projeto é resultado da evolução do contato bilateral. Por isso é importante resgatar os seus principais aspectos a fim de que se firme compreensão mais acurada acerca do tema em tela neste artigo.
As relações entre Brasil e Argentina são marcadas historicamente pela instabilidade. Já no Império emerge a luta pela supremacia regional entre os dois países, que permearia suas políticas externas até a década de 1980, com algumas rupturas. Mesmo com o advento da Primeira República, marcado pela complementaridade da economia local frente a do Estado platino, o que predominou foi o recrudescimento das rivalidades, tensões e crises. O cerne da controvérsia era a eventual aliança preferencial com os Estados Unidos, que definiria a pretensão de um dos países à liderança no continente sul-americano.
A partir da década de 30 ocorre a ascensão de regimes revestidos por um forte apelo social, notadamente Vargas no Brasil e Perón na Argentina. O período é de inédita cooperação, reflexo de governos que convergiam na matriz ideológica. Mesmo com a Segunda Guerra Mundial, quando Rio de Janeiro adere ao bloco dos Aliados e Buenos Aires prefere optar por uma posição neutral, em que pese as retaliações dos norte-americanos, o relacionamento não é abalado. Em verdade, o Brasil não hostilizou seu vizinho geográfico pela interdependência que já marcava suas economias, mas, sobretudo, por temer “criar um precedente que, no futuro, pudesse ser utilizado contra ele próprio”8.
Na década de 50 e começo da de 60, Brasil e Argentina fortalecem os termos de intercâmbio, além de unir esforços para que os Estados Unidos revissem suas relações com a América Latina, tradicionalmente marginalizada de suas diretrizes de política externa. Grandes iniciativas são lançadas, frutos do clima de harmonia e compreensão que regia o relacionamento bilateral, dos quais os mais notórios são o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Associação Latino- Americana de Livre Comércio (ALALC)9.
O advento de regimes militares constitui ponto de inflexão, e inaugura um período de progressivo desgaste no contato entre Brasília e Buenos Aires. Devido à percepção geopolítica que orienta, por excelência, as Forças Armadas, o projeto de potência regional é retomado por ambos os governos. A intenção de isolar politicamente, dentro da América do Sul, o vizinho marca ininterruptamente as relações entre Brasil e Argentina por pelo menos duas décadas. Um dos símbolos desse momento é a assinatura do Tratado que instituiu a Hidrelétrica Binacional de Itaipu (1975); firmado entre o Presidente Médici e o General Stroessner, do Paraguai, à época simplesmente desconsiderou o contencioso histórico que envolvia Brasil e Argentina, pelo aproveitamento dos recursos energéticos do Rio Paraná10.
Na década de 80, o mundo subdesenvolvido enfrenta uma forte crise econômico-financeira. O momento é de um novo pacto entre os Estados ricos, e de eliminação completa da capacidade negociadora do Terceiro Mundo frente à supremacia norte-americana. Nesse contexto, é que se impõe a Brasília e Buenos Aires, igualmente acuados, a recuperação de suas relações recíprocas. O marco desse entendimento ocorre já em outubro de 1979, quando é estabelecido um Acordo Tripartite, em conformidade com Assunção, que punha termo justamente às controvérsias acerca da exploração hidrelétrica do Rio Paraná. São outros dois fatores, entretanto, que desanuviam em definitivo o ambiente de amarga rivalidade e ressentimento: o Acordo de Cooperação Nuclear de 1980, que encerrou um decênio maculado pela corrida nervosa por armas de destruição em massa; e o apoio do Brasil à Argentina, contra o Reino Unido, durante a Guerra das Malvinas (1982). O conflito, caracterizado pela atuação vexatória do Estado Platino, acabou apressando a derrocada do regime militar e a ascensão de governos democráticos e civis, dispostos a aprofundar o diálogo aberto com Brasília11.
Em meados da década de 80, a distensão da Guerra Fria e a consolidação de grandes blocos econômico-regionais (Comunidade Econômica Européia, Estados Unidos/Canadá, Japão/Ásia-Pacífico) ampliam a vulnerabilidade da América Latina, e impõem como prioridade uma agenda baseada na cooperação. Prelecionam Cervo & Bueno (2002), que para Brasil e Argentina, em particular, a integração sub-regional se desfralda como um dos poucos caminhos viáveis para o enfrentamento, no campo das relações internacionais, das dificuldades emergente às vésperas do fim do século XX.
Nesse ensejo, Brasília e Buenos Aires firmam, em novembro de 1985, a Declaração de Iguaçu, para muitos analistas o verdadeiro gérmen do MERCOSUL. Tal proclamava1212 expressamente a necessidade de se somar esforços, no que concerne aos interesses comuns, com vistas a que os países fortalecessem suas pretensões em nível mundial. Além disso, o documento destacava a importância da democracia, como forma de governo que conduziria inequivocamente a uma maior aproximação dos povos da região. Acordaram-se iniciativas que abrangiam desde os campos econômico, financeiro e comercial, até áreas mais específicas como transportes, comunicação e energia. Entretanto, cabe ressaltar, a Carta tinha conteúdo e propósitos eminentemente políticos. Afinal, pela primeira vez na História, Brasil e Argentina compartilhavam o desejo de construir uma parceria “simétrica e baseada em interesses mútuos, diante de problemas comuns”13. É neste contexto de reaproximação entre os dois países que vai nascer o CODESUL/CRECENEA-LITORAL, apresentado a seguir.
O Advento do Protocolo 23: Nasce o CODESUL/ CRECENEA-LITORAL
Em julho de 1986, o processo de integração entre Brasil e Argentina ganha contornos mais nítidos, com a assinatura do Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE). Ao privilegiar as trocas comerciais, adotou princípios de flexibilidade e equilíbrio para viabilizar a aproximação gradual das economias. No seu âmbito foram firmados 24 Protocolos, que tratavam da integração em temas específicos e a partir dos quais foi possível criar um processo para dinamizar os setores industriais e ampliar a competitividade internacional dos dois países14.
O Protocolo número 23 - Regional Fronteiriço, firmado em 1988, previa a união de esforços, por parte dos governos nacionais brasileiro e argentino, para a integração e o desenvolvimento das regiões limítrofes dos dois Estados. Para tanto estabeleceu a criação dos intitulados Comitês de Fronteira; esses seriam escritórios localizados em áreas estratégicas, dirigidos por autoridades consulares e cujos propósitos centrais eram os de fomentar o crescimento e coordenar medidas que promovessem a fluidez na circulação de pessoas, mercadorias e veículos das localidades vizinhas do Brasil e Argentina. Os primeiros seriam construídos nas divisas que envolvem Paso de los Libres - Uruguaiana e Puerto Iguazu - Foz do Iguaçu15
Mas, sobretudo, o Protocolo implementou um Grupo de Trabalho Permanente, constituído pelos Ministérios das Relações Exteriores de ambos os países, além dos estados integrantes do CODESUL e as províncias que compõem o CRECENEA-LITORAL. Esses, como retro citado, eram dois mecanismos de fomento regional que, entendeu-se, poderiam ser tomados como base para a audaciosa iniciativa da paradiplomacia. As funções básicas do grupo perpassavam a elaboração e proposição de projetos que aprofundassem as relações entre as regiões de fronteira e desenvolvessem a cooperação técnica, de Brasil e Argentina; além do estudo da viabilidade para aumentar as vinculações materiais, bem como os sistemas de telecomunicações e complementação energética16.
Com efeito, o Protocolo número 23 resultava já do reconhecimento mútuo de que a aproximação entre Brasília e Buenos Aires deveria avançar em seus termos; e que, para consumá-la, seria imprescindível uma participação mais contundente das localidades limítrofes “no estabelecimento realista, gradual e equilibrado do espaço econômico que deverá resultar da integração entre os dois países”.
Em verdade, o CODESUL e o CRECENEA-LITORAL desenvolvem contatos antes mesmo do advento do Protocolo número 23. Era um intercâmbio tímido, que enfrentava fortes entraves burocráticos e que, por isso mesmo, motivou pressões que acabaram redundando no estabelecimento desse compromisso entre os governos brasileiro e argentino. Com o Tratado de Assunção, de 1991, pelo qual se cria o MERCOSUL, a margem de ação dos entes federados amplia-se e ocorre a consolidação do CODESUL/CRECENEA-LITORAL17.
Nesse sentido, em dezembro do mesmo ano, é assinado um Protocolo de Intenções que tinha o objetivo de desenvolver o Programa de Integração de Fronteiras do MERCOSUL (Programa Sul Fronteiras). Comprometia os quatro membros do projeto de integração sul-americano (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e destacava entre suas finalidades fulcrais, o estabelecimento de projetos prioritários para a região do MERCOSUL, além da viabilização de recursos para executá-los; o levantamento completo dos planos e eventuais obras já em desenvolvimento, nas áreas limítrofes dos quatro Estados; e a avaliação ecológica “das bacias hidrográficas das regiões de fronteira com vistas a definição de programas de preservação, recuperação e conservação do ambiente18”. Dos lados brasileiro e argentino, a implementação do Programa coube ao CODESUL e o CRECENEA-LITORAL, além das Chancelarias respectivas.
Em fevereiro de 1995, na cidade de Foz do Iguaçu, os governadores dos estados e províncias que compõem as sub-regiões decidem pela institucionalização de suas relações. As reuniões, que antes eram permeadas por um tom de informalidade, passam a ser periódicas e institui-se o Foro Permanente de Governadores. Doravante, esse compreenderia encontros semestrais, alternados em cidades do Brasil e Argentina, que constituiriam “mecanismos permanentes de consulta e tratamento dos diversos temas que fazem parte do processo de integração de ambas as regiões19”. Seu propósito central era o de discutir agendas de reuniões prévias, apontadas por representantes do CODESUL e CRECENEA-LITORAL em separado, e teria a função primordial de aprovar os trabalhos debatidos paralelamente nos onze Grupos de Integração Temática (GITs), comitês técnicos que setorizariam as conversações (Aspectos Fronteiriços; Infra-estrutura; Conselhos Profissionais; Ciência e Tecnologia; Cooperação Científica; Educação; Cultura; Meio Ambiente; Segurança; Saúde; e Turismo).
O CODESUL/CRECENEA-LITORAL tem uma história rica e repleta de nuances, que abrangem desde os dois mecanismos de fomento regional que lhe deram origem até as complexas relações bilaterais desenvolvidas contemporaneamente entre Brasília e Buenos Aires. Nesse sentido, os contatos entre os estados brasileiros e as províncias argentinas limítrofes se conformam com o advento do Foro Permanente de Governadores. Tal instituto, representativo do diálogo subnacional, consolidou a institucionalidade da iniciativa.
A EVOLUÇÃO DO CODESUL/CRECENEA-LITORAL: A PARADIPLOMACIA EM AÇÃO
O CODESUL/CRECENEA-LITORAL se consolida institucionalmente com o advento do Foro Permanente de Governadores. Suas reuniões passam a ser periódicas e produzem uma profusão de acordos formais, registrados por Declarações e Atas. As ações firmadas, possíveis em razão da conciliação dos interesses de unidades subnacionais brasileiras e argentinas, constituem uma expressão da paradiplomacia no continente sul-americano. Tal conceito refere-se às relações mantidas entre entes federados de países diferentes e ganha notoriedade principalmente com o fim da Guerra Fria20. Ao mesmo tempo, explica a evolução do Foro Permanente de Governadores, cujas iniciativas impactaram materialmente sobre toda área de abrangência do Projeto.
Paradiplomacia: Um Olhar sobre o CODESUL/ CRECENEA-LITORAL
A síntese das Atas das reuniões do Foro Permanente de Governadores permite observar que ocorre no âmbito do CODESUL/ CRECENEA-LITORAL uma forma de relações internacionais específica e que pode ser caracterizada como uma típica iniciativa do tipo diplomacia subnacional. Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Chaco, Corrientes, Misiones Santa Fe, Formosa e Entre Rios, conscientes da importância de somarem esforços para a resolução das necessidades comuns, fizeram reuniões de discussão para identificar interesses mútuos. Este trabalho de cooperação vem se materializando em pontes, rodovias, programas de intercâmbio científico e outros projetos diversos.
Tal iniciativa se inscreve no movimento de mudanças mais recente do sistema internacional, que impôs desafios à própria atuação da diplomacia. Esta, historicamente é uma atribuição dos governos nacionais, a quem cabe por excelência a formulação e aplicação da política externa; contudo, com o advento da globalização e a interdependência econômica pautando as relações entre Estados no mundo pós-guerra fria, novas questões internacionais passam a afetar diretamente os entes subnacionais. Com isso, estados federados e municípios começam a sentir a necessidade de uma política mais individualizada no plano externo e que permita ação mais dinâmica e eficaz, já que, muitas vezes, suas pretensões não são acolhidas pelos governos centrais21.
Assim, em todo Mundo, a partir da década de 1980, começa a haver um forte movimento para que unidades subnacionais, em nome de seu próprio desenvolvimento econômico e social, também possam atuar internacionalmente. Tal competência poderia ser concorrente, complementar ou mesmo tutelada pela União; a essência da reivindicação era legitimar de certa forma a participação de estados, províncias, departamentos e municípios na elaboração da política externa de seus respectivos países22. Somado a isso, a constatação foi cada vez mais no sentido da precariedade que envolvia a condução exclusiva das relações internacionais pelos governos centrais. Esses eram marcados por formulações que, via de regra, careciam de uma projeção nacional e que, eram por assim dizer, insensíveis aos reclames locais; ao mesmo tempo fortaleciam a idéia de uma estrita diplomacia presidencial, no que acarretou, por vezes, a políticas que correspondiam unicamente aos caprichos de um Chefe de Estado alheio às diferenças regionais dentro de seu próprio país.
Em diferentes lugares, os Estados começaram a se sentir impelidos a modificar suas legislações nacionais, para permitir que os estados federados pudessem atuar internacionalmente. Nesse momento o conceito de paradiplomacia se difunde como um mecanismo de inserção estratégica no plano externo. A idéia subjacente é a de que para se efetivar, a política externa de um país deve tomar em consideração os interesses dos respectivos entes subnacionais.
Contudo, não se deve confundir essa atuação com uma formulação independente; ao contrário, a mesma deve ser levada a cabo em firme coordenação com os governos centrais, sob pena de se ter um Estado com posturas difusas e paradoxais em suas relações internacionais. Assim, a União, no que cabe principalmente ao Ministério das Relações Exteriores ou instituição correlata, não pode abdicar do monopólio das relações interestatais e sua função deve contemplar necessariamente a definição e implementação dos interesses gerais do Estado no cenário internacional; já às unidades subnacionais facultaria o desenvolvimento de iniciativas horizontais, ou seja, no estrito contato com entes congêneres estrangeiros, de caráter pontual23.
No caso do CODESUL/CRECENEA-LITORAL, projeto que integra entes federados brasileiros e argentinos, as relações entre unidades subnacionais só foi possível devido à reaproximação de Buenos Aires e Brasília em meados de 1980, após décadas de um contato deveras tumultuado. Seu propósito central é o de constituir um foro privilegiado para a resolução de questões comuns, que nem sempre são acolhidas pelos governos centrais respectivos. Exemplo representativo, nesse sentido, é o da poluição e uso inadequado dos recursos da Bacia Internacional do Uruguai.
O CODESUL/CRECENEA-LITORAL também pode ser pensado como um exemplo da paradiplomacia regional transfronteiriça. Essa remete, de acordo com a classificação doutrinária24, às relações firmadas entre unidades desprovidas de personalidade jurídica internacional de países vizinhos. A ação de entes subnacionais, nesse sentido, é vista como uma conseqüência natural da proximidade geográfica e é estimulada por questões como as de comércio e infraestrutura. Entraves de ordem comum têm motivado a aproximação de regiões separadas apenas pelo marco político fronteiriço em todo mundo, e na América do Sul não é diferente.
Com efeito, o CODESUL/CRECENEA-LITORAL nasceu em razão da ocorrência de problemas semelhantes, que, entendeu-se, poderiam ser resolvidos de modo mais eficiente por intermédio de uma atuação conjunta dos estados brasileiros e províncias argentinas limítrofes. Nesse sentido, o objeto de suas tratativas sempre apontou para temáticas sensíveis basicamente à região, que demandam soluções céleres e poderiam ser resolvidas sem uma intervenção direta de Brasília e Buenos Aires. Basta um olhar panorâmico sobre as reuniões do Foro Permanente de Governadores, para se averiguar que os temas suscitados de forma mais recorrente envolvem a construção de estradas e pontes binacionais, além da promoção de uma circulação mais fluida de pessoas, mercadorias e serviços.
Por fim, hoje, sobretudo com os países desenvolvendo francos processos de integração, a paradiplomacia tem sido encarada como um instrumento facilitador; e é nesse ensejo que, cada vez mais, “se atribui condições legais de cooperação local aos municípios e estados, para que no exercício de uma autonomia limitada, possam contribuir harmoniosamente e em conjunto com questões regionais de alcance internacional”25.
No Brasil, a Constituição Federal promulgada em 1988, caracterizada pelo trato raso das questões internacionais26, possibilita a estados e municípios a prática da paradiplomacia, ainda que de forma velada. A mudança de postura adotada pelo constituinte originário, irrompendo frestas sobre uma prerrogativa antes exclusiva dos governos centrais, refletia, na verdade, o avanço da diplomacia subnacional em países vizinhos como a Argentina. A partir desse momento, estados e municípios desenvolvem ações externas e criam estruturas específicas para a área, como assessorias, núcleos e departamentos. Os pioneiros e que serviriam de modelo para iniciativas posteriores, foram os governos do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Esse último, já no final da década de 80, implementara uma “Secretaria Especial para Assuntos Internacionais”, cuja chefia coube ao eminente Professor Ricardo Seitenfus.
O marco histórico que expressa o reconhecimento implícito do Estado brasileiro ao exercício da paradiplomacia, é o Protocolo de Cooperação Regional e Fronteiriça, assinado ainda em 1988 com a Argentina. Tal documento é importante não apenas por tratar-se de marco fundante do CODESUL/CRECENEA-LITORAL, mas também por expressar a admissão formal de Brasília, pela primeira vez, de unidades subnacionais no cenário internacional27.
Com uma participação inconteste de estados e municípios na condução das relações externas, o Itamaraty institui, na segunda metade dos anos 90, a Assessoria de Relações Federativas e cria Escritórios de Representação Regional e Estadual em múltiplas cidades. Tal reavaliação de políticas por parte do Ministério das Relações Exteriores pátrio tributa-se, em grande medida, às reivindicações e próprias exigências inerentes ao desenvolvimento do CODESUL/CRECENEA-LITORAL, que à época consolidava-se com a instituição do Foro Permanente de Governadores. A estrutura montada apontava para uma interface entre o governo federal e os entes subnacionais nos temas de política externa, que vem sendo incrementada até hoje. Em 2003 o aparelho supracitado ganha em complexidade ao se implantar uma nova Assessoria Especial de Assuntos Federativos e Parlamentares (AFEPA), símbolo cabal da busca pela perenidade do diálogo intrafederativo28.
Entretanto, a paradiplomacia não está institucionalizada no Brasil, de modo que a condução do assunto pelos estados e municípios ainda padece de heterogeneidade. Como não há um modelo a ser seguido, diferem os enfoques e as formas de organização de acordo com os interesses e o perfil de cada região; além de, por vezes, até o partido político no poder determinar opções distintas29. Ao mesmo tempo, inexiste a regulamentação expressa da prática da diplomacia ad hoc no Brasil, o que traz ainda sérios empecilhos a uma atuação internacional ativa por partes das unidades federadas pátrias.
In casu, tal asserção ganha ainda mais relevância. Nesse sentido, é inegável que o que dificulta e retarda o avanço do CODESUL/CRECENEA-LITORAL, é a falta de autonomia de que persistem gozando, no Brasil e Argentina, estados e províncias. Inúmeros acordos firmados, sobretudo a partir do advento do Foro Permanente de Governadores, simplesmente esbarraram na burocracia dos governos federais respectivos, por vezes refratários às angústias e interesses locais. Nesse ensejo, não é à toa que, por ocasião de todas suas reuniões, o CODESUL/CRECENEA-LITORAL tenha ressaltado a necessidade do apoio e reconhecimento dos governos centrais brasileiro e argentino, além do próprio MERCOSUL.
A consecução de muitos dos objetivos do CODESUL/ CRECENEA-LITORAL foi frustrada pela imposição unilateral de altos impostos alfandegários, falta de incentivos fiscais e ausência de subsídios por parte de Buenos Aires e Brasília30. É bastante ilustrativa a questão do Projeto de Cooperação Internacional para Diagnóstico, Propostas Ambientais e Desenvolvimento da Bacia do Rio Uruguai. Este foi objeto recorrente de reivindicação, no âmbito do Foro Permanente de Governadores, por um longo período. O problema é que a aprovação do empréstimo internacional, que garantiria o pronto início das obras, dependia estritamente dos Chefes de Estado brasileiro e argentino. No fim, as resoluções tardias, por parte dos governos centrais, acabaram por agravar o problema transfronteiriço que se constituía a poluição e uso adequado dos recursos da Bacia do Rio Uruguai.
Merece destaque também o caso da CRPM, que chegou a discutir um programa de trabalho com o CODESUL/CRECENEA-LITORAL, a partir do Foro de Porto Alegre, em 1999, mas acabou interrompendo as conversações, pelas dificuldades em tratar com um projeto de integração subnacional com grau de autonomia muito aquém do europeu. Diante do exposto, parece restar claro que a iniciativa teve muitas de suas pretensões mitigadas e tantas outras obstadas, devidos aos limites impostos à atuação dos entes federados integrantes. Nesse sentido, não se pode prescindir da formalização da paradiplomacia e aos estados brasileiros e mesmo províncias argentinas deve ser conferido um caráter mais autônomo em suas relações internacionais; vale dizer, a consolidação do CODESUL/CRECENEA-LITORAL, hoje passa, de modo inequívoco, por uma maior liberdade de ação de seus membros.
Hoje, há uma série de Projetos de Lei e já tramitou mesmo uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC)31 no Congresso Nacional, visando à normatização da paradiplomacia brasileira. O que se objetiva, é um reconhecimento franco da lei, que permita formalmente aos entes subnacionais, no âmbito de suas competências, atuarem internacionalmente, algo que muito embora, a despeito das dificuldades, já ocorre na prática. Enquanto isso, “a paradiplomacia continua crescendo e sendo conduzida a margem de uma estrita legalidade32”.
Contudo, mesmo com dificuldades é possível observar que os membros do Projeto CODESUL/CRECENEA-LITORAL produziram avanços concretos a partir desta experiência da diplomacia subnacional.
CONCLUSÃO
Do exposto pode-se apontar que o CODESUL/CRECENEA-LITORAL constitui iniciativa expressiva de governos subnacionais brasileiros e argentinos. Como a pesquisa procurou demonstrar, este é um Projeto que se desenvolve no âmbito da paradiplomacia, cuja origem remonta a finais da década de 1980 e gera uma estrutura institucional propícia para a resolução das angústias comuns, que perdura ainda hoje.
Os Encontros do Foro Permanente de Governadores e todos os acordos produzidos sob sua égide são representativos de um fenômeno global recente, que surge da necessidade de se romper com o monopólio na formulação e execução da política externa dos governos centrais: a paradiplomacia. Esta estratégia não assume as competências formais da diplomacia, mas vem complementá-la. Desta maneira, o Projeto atuou em problemas como o regime de aduanas, na circulação de pessoas e a situação das ligações rodoviárias, que têm encontrado locus privilegiado no CODESUL/CRECENEA-LITORAL. É nesse sentido que regiões do Brasil e Argentina, separadas apenas pela artificialidade política das fronteiras, passaram a produzir uma atuação bilateral individualizada, já que suas pretensões, por vezes, eram obstadas por Brasília e Buenos Aires.
Entretanto, a pesquisa dos documentos e atas das reuniões do Foro Permanente de Governadores apontou que a trajetória do CODESUL/ CRECENEA-LITORAL é descontínua, de forma que o aprofundamento de suas tratativas não tem sido processo simples. Observou-se também que a diplomacia ad hoc carece de um reconhecimento formal por parte dos Estados brasileiro e argentino. Assim, apesar da atuação externa de seus entes federados ser possível, encontra sérios obstáculos na burocracia dos governos centrais e nas legislações nacionais. Brasília e Buenos Aires, talvez devido a um procedimento corporativo que os define como agentes exclusivos dos países no plano internacional, insistem em concentrar prerrogativas que há muito já poderiam ter sido delegadas aos municípios, províncias e estados respectivos. Para que isto aconteça seria necessário delimitar e estabelecer os temas e competências que as unidades subnacionais poderiam exercer no âmbito da paradiplomacia.
A pesquisa constatou que a apregoada ação dinâmica e eficaz, própria da paradiplomacia, nesse ensejo, por vezes se viu mitigada e muitos dos projetos do CODESUL/CRECENEA-LITORAL foram simplesmente frustrados, pelos limites formais impostos às unidades subnacionais brasileiras e argentinas. Ao mesmo tempo, à iniciativa sub-regional nem sempre concorreram governantes comprometidos com a causa da integração, que ignoravam supostas implicações internacionais sobre suas regiões e, por assim dizer, auxiliaram a refrear os impulsos da cooperação transfronteiriça.
É importante destacar, todavia, que o CODESUL/CRECENEA-LITORAL trata-se de um projeto relativamente bem-sucedido; seus trinta anos de existência e uma série de ações e obras concretizadas sob seus auspícios não fazem mentir. Pontes, rodovias, programas de intercâmbio científico, cooperação técnica e ambiental constituem necessidades comuns que muitas vezes só foram possíveis materialmente devido a essa inflexível congruência de interesses dos estados federados brasileiros e províncias argentinas limítrofes. Nesse sentido, a pesquisa demonstrou que a iniciativa subnacional produziu impactos interessantes.
Sob essa perspectiva, o CODESUL/CRECENEA-LITORAL pode e deve ser fortalecido progressivamente. Tal iniciativa é ainda a única do gênero na América do Sul, mas pode inspirar projetos semelhantes. Isso porque, cada vez mais, a cooperação subnacional se desfralda como alternativa viável para superar as dificuldades da integração no âmbito do MERCOSUL. Para tanto, é preciso que o CODESUL/CRECENEA-LITORAL seja tratado seriamente pelos gestores públicos. Vale dizer, o projeto não pode ser algo descontínuo, visto a partir da ótica conflitiva de governos pontuais, mas sim encarado como alternativa de política de Estado pelas unidades federadas. Ao mesmo tempo, é fundamental que seja conferida mais autonomia aos entes subnacionais brasileiros e argentinos em suas relações bilaterais, por intermédio da formalização da paradiplomacia nestes países. Até que tais fatores se consumam, o CODESUL/CRECENEA-LITORAL continuará a se desenvolver ou não, mas grande parte de seu potencial latente, profetizado há mais de trinta anos, invariavelmente restará desconhecido.