1. INTRODUÇÃO
O direito internacional privado tem como ponto de partida teórico principal a extraterritorialidade das leis e instrumentaliza, ao menos excepcionalmente, os efeitos internos de pronunciamentos jurisdicionais e a aplicação plena do direito estrangeiro.
Quando dispositivos de diferentes ordenamentos são convocados à solução do caso concreto e o aplicador do direito faz uso das regras estabelecidas pelo direito internacional privado para definir a lei aplicável ou para decidir quanto à possibilidade de concessão de efeitos internamente a pronunciamentos estrangeiros, as distintas soluções apresentadas pelos sistemas legais envolvidos podem indicar solução atentatória aos preceitos morais e jurídicos localmente obrigatórios.
A ordem pública do direito internacional privado surge, então, como instrumento habilitado a resguardar o núcleo moral inegociável de determinado ordenamento. O instituto funciona como verdadeiro escape garantidor dos valores locais considerados essenciais.
O gradativo desenvolvimento da doutrina internacionalista não logrou estabelecer, entretanto, técnica segura e previsível à dotação de conteúdo à ordem pública, é dizer, à sistematização da determinação do rol de situações, nas quais a exigência de proteção da moral local incidiria. A devida fundamentação das decisões poderia preencher essa lacuna considerada inerente ao instituto.
Importante se faz antes enfatizar, contudo, que a exigência da devida fundamentação das decisões no código de processo civil não conforma novidade e está consagrada desde 1988 na constituição.
A investigação proposta parte da análise da perspectiva histórica e atual do princípio da proteção da ordem pública do direito internacional privado - especialmente no que se refere aos motivos de sua instabilidade conceitual - e pretende apresentar a fundamentação das decisões como técnica hábil a dotar o instrumento de um núcleo semântico estável e capaz, portanto, de trazer maior segurança e previsibilidade às situações jurídicas multiconectadas.
O objetivo indicado tem como vértice a transposição do debate conciliador ante o universalismo e o multiculturalismo da doutrina da proteção internacional dos direitos humanos - refletido na constituição federal - à conceitualização da ordem pública do direito internacional privado. Propõe-se, na verdade, sua aplicação como parâmetro de aferição da necessidade de se proteger a moralidade do ordenamento jurídico instado a permitir efeitos internos a direito ou a decisões judiciais estrangeiras.
Na primeira parte do trabalho, busca-se demonstrar a indeterminabilidade como a principal característica da ordem pública, o que conduz ao conflito doutrinário e jurisprudencial quanto à definição das circunstâncias e dos critérios de sua aplicação. Logo, faz-se análise da relação entre a ordem pública nacional e a constituição, com ênfase na positivação dos direitos fundamentais como superiores. Em seguida, apresentam-se as linhas gerais da obrigatória aferição do conteúdo da ordem pública para afastar a legislação alienígena e proteger a moralidade do foro.
Observam-se, finalmente, os preceitos do novo código de processo civil brasileiro que conduzem à obrigatoriedade da motivação das decisões e suas repercussões não somente na concessão de exequatur ou homologação de sentença estrangeira, mas em quaisquer circunstancias relativas à cláusula geral da ordem pública do direito internacional privado.
2. A ORDEM PÚBLICA NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
As duas acepções mais comuns da expressão “ordem pública” se referem às normas internas que limitam a autonomia privada e ao instituto do direito internacional privado que permite o afastamento do direito estrangeiro pelo aplicador do direito ou a negação da homologação de sentenças ou da concessão de exequatur a cartas rogatórias provenientes do exterior1. Essa multiplicidade de sentidos acaba semeando, observa-se, discórdia doutrinária na delimitação de conteúdo e de limites a sua aplicação.
Nesse sentido, é de se perceber que da dificuldade de se estabelecer um rol taxativo de circunstâncias, nas quais se aplicaria a exceção da ordem pública, extrai-se a principal característica do instituto apontada pela doutrina: a relatividade. A ordem pública do direito internacional seria, portanto, relativa e instável2. O instrumento dependeria de sua incidência no caso concreto para ser preenchido de conteúdo e não poderia ser, desse modo, pré-determinado.
Valendo-se desse parâmetro, torna-se possível concluir que, ao se estabelecer a indefinição prévia do rol de circunstâncias sujeitas à aplicação do instrumento, caberia afirmar, consequentemente, que o legislador não enumerou os casos de afastamento do direito estrangeiro3. Permitiu-se tão somente, portanto, que tal repulsa ocorresse e estaria a cargo da discricionariedade judicial a decisão acerca da conveniência ou não de seu uso4.
À autoridade judicial competiria, assim, a determinação das situações jurídicas que exigiriam a aplicação do instituto da ordem pública como óbice ao direito estrangeiro5. E restaria indagar, todavia, quais seriam os limites dessa discricionariedade ou, ainda, se haveria limites a essa atuação.
Ainda que a doutrina aponte que a atividade jurisdicional na aplicação da ordem pública do direito internacional privado estaria vinculada aos “princípios consagrados pelas instituições e pela opinião pública mais ‘saudável’ (saine) do país” - o que poderia ser resumido nos princípios jurídicos e costumes de uma determinada ordem jurídica - subsistiria considerável margem ao arbítrio do julgador6. Exatamente nessa possibilidade de quase absoluta sujeição às convicções pessoais do magistrado se encontra o maior dos desafios à sistematização da aplicação da ordre public e a grande ameaça ao correto funcionamento das regras de direito internacional privado.
A falta de critérios previamente estabelecidos dá margem a aplicações equivocadas do instituto - mais em situações de excesso que de omissão. O exagero na identificação de situações que se enquadrariam no modelo de atentado à ordem pública do foro é frequentemente denunciado pela doutrina - brasileira e estrangeira - na análise de julgados, os quais acabam, muitas vezes, refletindo absoluto desconhecimento da matéria pelos tribunais7.
No atual panorama de crescente aumento do número de relações multiconectadas - resultado, principalmente, do incremento do comércio internacional, da maior facilidade e rapidez de locomoção e comunicação - torna-se insustentável o encerramento dos judiciários dos países em seus ordenamentos jurídicos8. Possível se faz verificar, nesse sentido, avanços na tolerância ao direito alienígena principalmente em tribunais mais integrados como aqueles dos estados membros da União Europeia9.
Não apenas os judiciários devem aplicar a exceção ao direito estrangeiro e seriam, consequentemente, responsáveis pela determinação de conteúdo da ordem pública do direito internacional privado. Também outros meios jurisdicionais de solução de controvérsias, como a arbitragem privada, aplicam o instituto e constroem seus limites10.
3. A ORDEM PÚBLICA E A CONSTITUIÇÃO
A observação da forma como os ordenamentos jurídicos locais, ao estabelecerem direitos fundamentais inegociáveis, dialogam com a doutrina da proteção internacional dos direitos humanos pode auxiliar a compreensão dos reflexos da atual centralidade do ser humano para o direito11. Essa análise pressupõe, entretanto, a preliminar caracterização da maneira como ocorreu o reconhecimento dos direitos humanos e, mais diretamente, o estudo do papel da positivação nesse processo.
No caso específico dos direitos humanos, a positivação teve lugar inicialmente na incorporação de garantias individuais às declarações modernas e às constituições dos estados nacionais que se seguiram12. Os movimentos de constitucionalização se destacaram entre os aspectos fundantes dessas conquistas e os direitos e garantias inicialmente declarados em documentos sem força vinculante não foram, em sua grande maioria, positivadas internamente em meros textos legais, mas acabaram introduzidos nas constituições que posteriormente surgiam13.
Nas estruturas eminentemente hierárquicas da técnica jurídica moderna - modelo ainda predominante atualmente - as garantias individuais estabeleceram-se de forma gradual no topo das pirâmides normativas e, mediante paulatino desenvolvimento das práticas interpretativas, acabaram adquirindo força cogente e passaram, via de regra, a vincular, como no caso brasileiro, todo o sistema legal abaixo delas.
Da leitura da atual carta de direitos brasileira percebe-se nítida opção do legislador originário pela textura aberta da terminologia empregada na redação de seus princípios fundamentais, os quais, muitas vezes, estabelecem direitos e garantias que necessitam de atividade legislativa ordinária ou de forte trabalho hermenêutico efetuado no caso concreto para a aquisição da devida eficácia. A amplitude conceitual dos direitos fundamentais constitui hoje, de fato, uma de suas maiores características14.
Os direitos fundamentais estabelecidos pelo constituinte originário na carta constitucional de 1988 traduziriam a moralidade fundante do estado brasileiro. Essa estabilização conceitual da moralidade deve ser levada em consideração no diálogo intercultural, é dizer, no momento da aferição da ordem pública que exigiria, no caso concreto, a repulsa da lei estrangeira como mecanismo protetivo da tolerância do foro.
Independentemente da vinculação da ordem pública nacional aos direitos humanos e, consequentemente, aos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, o magistrado instado a aplicá-la para afastar a eficácia de lei ou de decisão estrangeira estaria, conforme anteriormente mencionado, obrigado a fundamentar sua decisão15. Com a identificação da absoluta identidade entre a moralidade local, objeto do instituto protetivo de direito internacional privado, e as garantias constitucionais, a motivação da opção pela aplicação da exceção da ordem pública ganharia novos contornos e passaria a exigir, necessariamente, argumento constitucional balizador.
Confrontado com direito ou pronunciamento estrangeiro, o magistrado nacional apenas poderia afastá-lo, assim, caso verificasse lesão a direito constitucional fundamental hábil a preencher o conteúdo relativo e instável da ordem pública nacional. A aplicação da exceção de direito internacional fora desses limites apresentaria vício caracterizador de nulidade passível de declaração de inconstitucionalidade.
4. ORDEM PÚBLICA, FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
A neutralização do arbítrio dos aplicadores do direito pode ser considerada central nos esforços para o estabelecimento de parâmetros capazes de dar maior segurança e previsibilidade à aplicação da ordem pública do direito internacional privado. Esforços que devem ser conciliados com a textura aberta desse instituto - sua principal característica16.
Percebe-se, nesse sentido, que a normatividade da cláusula geral da ordem pública não deve ser compreendida como um fenômeno estático, passível de ser completamente definido e preenchido aprioristicamente. Pelo contrário, o instrumento é dotado de proposital flexibilidade e exige concreção para que seu sentido tenha alcance fixado no caso concreto17.
A referida concreção de cláusulas abertas, quando excessiva ou não técnica, pode ameaçar o sistema e dá ensejo à criação de mecanismos capazes de moderar o livre convencimento18. O constituinte originário, por exemplo, inseriu no inciso IX do art. 93 da constituição brasileira a obrigatoriedade da devida motivação e fundamentação das decisões. O dispositivo deveria asseguraria a determinabilidade do caso concreto e deve ser interpretado de maneira conjugada com o contraditório e com a ampla defesa19.
A obrigação da devida fundamentação das decisões voltou a despertar interesse da doutrina com a entrada em vigor do novo código de processo civil. Se o novo diploma, de um lado, renovou as expectativas em relação ao cumprimento do texto constitucional, trouxe à luz, por outro lado, a equivocada e recorrente interpretação da constituição à luz da legislação ordinária20.
Percebe-se, nesse sentido, que o art. 11 do código de processo civil de 2015 reproduz ipis litteris o referido inciso IX do art. 93 da constituição e, portanto, que a exigência de fundamentação dos pronunciamentos judiciais não pode ser tratada como inovação21. A percepção da regra como revolucionária apenas denunciaria, assim, falta de efetividade do texto constitucional e grave falha na aplicação das técnicas hermenêuticas disponíveis aos profissionais do direito22.
Não bastassem os equívocos apontados nas práticas interpretativas recorrentes no judiciário brasileiro - “intérpretes autênticos”, também a natureza da norma constitucional reproduzida pela lei ordinária deve ser esclarecida23. Nesse sentido, o inciso IX, do art. 93 da constituição conforma norma de aplicabilidade plena, mas - ao ser interpretado à luz do código de processo civil - parece ter sido erroneamente transformado em norma de eficácia limitada, ou seja, em dispositivo que exigiria lei posterior para ter eficácia24.
No que se refere especificamente à ordem pública do direito internacional privado - e seguindo sua lógica e tradição, o novo código dispôs diretamente sobre o tema em dois momentos: ao regulamentar a concessão ou não do exequatur à carta rogatória (art. 39)25 e como elemento indispensável à homologação de sentença estrangeira (inciso VI do art. 963)26.
A partir disso, dois pontos de confluência entre eles merecem destaque: i) uma decisão deve ser proferida e, ii) essa decisão terá seu alcance fixado por um juiz necessariamente vinculado ao conceito jurídico indeterminado “ordem pública”. Ambos os institutos estão, ainda, submetidos ao inciso II, § 1o do art. 489 do código de processo civil, por meio do qual “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”.
A exigência de fundamentação tem dupla teleologia: i) a função endoprocessual, permitindo às partes conhecer as razões daquela decisão e, ii) a função extraprocessual, que viabilizaria o controle por via difusa da democracia participativa, “exercida pelo povo em cujo nome a sentença é pronunciada”27. Assim, a decisão judicial tem duas faces: uma dirigida às partes na tentativa de solucionar o caso; e outra que se dirige à coletividade, no intuito de manter a decisão íntegra, coerente e estável, para possível aplicação em casos semelhantes - o que reduziria o espaço da discricionariedade do julgador.
Muito além de aplicar a lei, fundamentar seria, portanto28: i) demonstrar a essência - o porquê daquela decisão; ii) explicitar o caminho percorrido, ponto por ponto, questão por questão, até o final daquela estrada - a decisão29; iii) evitar que o magistrado atue com exacerbada discricionariedade, com solipsismo e com arbitrariedade30; iv) traçar parâmetros condizentes com o ordenamento jurídico capazes de dar segurança e previsibilidade aos jurisdicionado, e repercussão para a orientação de outros julgamentos; e, por fim v) permitir o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa.
No que se refere à forma, portanto, o conteúdo indefinido da ordem pública do direito internacional privado dá à fundamentação das decisões especial relevância. Em relação ao conteúdo material, por outro lado, a possibilidade de identificação da moralidade média da sociedade no rol de direitos fundamentais constitucionalmente elencados permite que se proponha seu uso para balizar a aferição de ameaças ou lesões à ordem pública nas situações multiconectadas31. Apenas quando direito fundamental fosse ameaçado seria possível, então, obstar a aplicação de legislação estrangeira, a concessão do exequatur ou a homologação de sentença estrangeira32.
A decisão fundamentada que aplica a ordem pública do direito internacional privado não significa, gize-se, qualidade do trabalho ou zelo excessivo do julgador. A fundamentação conforma requisito mínimo para que o ato decisório possa ser considerado válido. Assim, com base no dispositivo da constituição federal agora reiterado no código de processo civil, a decisão não fundamentada seria nula e contra ela caberiam embargos de declaração para que o vício fosse definitivamente sanado33.
CONCLUSÃO
Ao término desse trabalho, é de se estabelecer fundamentalmente que a exigência de motivação dos pronunciamentos judiciais que aplicam - ou que negam a aplicação - da ordem pública do direito internacional privado está necessariamente vinculada aos direitos fundamentais contidos no texto constitucional.
Metodologicamente, partiu-se da análise da perspectiva histórica e atual do princípio da proteção da ordem pública do direito internacional privado, com ênfase na fundamentação das decisões como técnica apta a dar segurança e previsibilidade aos jurisdicionados. Assim, os pronunciamentos judiciais devem ser motivados e capazes de dar, em situações jurídicas semelhantes, respostas íntegras, coerentes e estáveis aos jurisdicionados.
Ao reiterar o estabelecido na constituição federal, o novo código de processo civil brasileiro pode trazer definitivamente efetividade à obrigatoriedade de devida fundamentação das decisões. A decisão desmotivada deve ser considerada nula. E o aplicador do direito deve buscar elementos capazes de trazer estabilidade de conteúdo aos instrumentos jurídicos aplicados.
Na primeira parte do trabalho, buscou-se salientar que a relatividade do conteúdo da ordem pública do direito internacional privado ocasiona desacordos tanto da parte teórica doutrinária quanto na aplicação concreta pelos magistrados. Fez-se, logo, análise da relação entre a ordem pública e a constituição, com ênfase na positivação dos direitos fundamentais como cerne da moralidade do ordenamento. Em seguida, as linhas gerais da obrigatória aferição do conteúdo da ordem pública para afastar a legislação alienígena e proteger moralidade do foro foram apresentadas.
Foram observados, então, os preceitos do novo código de processo civil, copiados de forma idêntica ao estabelecido na constituição federal, para enfatizar que a obrigatoriedade de motivação na fundamentação das decisões não serviria apenas à concessão de exequatur ou à homologação de sentenças estrangeiras, mas à perseguição de um núcleo estável para a ordem pública do direito internacional privado.
Enfatizou-se, finalmente, que para que seja possível extrair o sentido e o alcance da ordem pública do direito internacional privado, ao magistrado não resta outra opção que pautar-se, necessariamente, pela essência do ordenamento jurídico, ou seja, pelos direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos como núcleo da moralidade local. Qualquer decisão desmotivada não apenas viola a ordem pública, mas também torna a decisão nula de pleno direito.